O estranho caso do anestesista a 500 euros à hora

Três dias depois, o mistério mantém-se. O Estado ofereceu 500 euros à hora para anestesista na Maternidade Alfredo da Costa e ninguém quis, alguém os pediu e Estado não pagou, ou nem uma coisa nem outra? Ordem dos Médicos ameaça com tribunal, sindicato exige ver documentos, ministério diz que mantém o que disse - mas disse o quê?
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Anestesistas a 500 euros à hora? Ordem dos Médicos fala em "notícia falsa" e "mito de Natal" e ameaça processar "dado o caráter ofensivo e indigno para os médicos como resultado das declarações proferidas"; Sindicato Independente dos Médicos exige ver documentos; ministério "reafirma a veracidade das declarações" da ministra.

"O Centro hospitalar de Lisboa Central procurou realizar a contratação externa de um anestesista junto de empresas prestadoras de serviços, de forma a garantir o suprimento da necessidade de um especialista na escala da Maternidade Alfredo da Costa (MAC) nestes dias; uma das respostas enviadas por uma destas empresas ao CHLC referia que os vários especialistas contactados não estavam disponíveis para trabalhar pelos valores propostos (...) e incluía a possibilidade de um anestesista mediante o pagamento de 500 euros por hora. O Ministério reafirma, por isso, a veracidade das declarações proferidas neste âmbito, de que existiu uma proposta do valor referido por parte dos prestadores de serviço. "

Em esclarecimento divulgado na manhã desta quinta-feira, o ministério da Saúde responde assim às exigências dos representantes dos médicos no sentido de demonstrar a veracidade das declarações proferidas pela ministra a 24 de dezembro, quando justificou o encerramento das urgências da MAC na quadra natalícia.

Igualmente em comunicado, publicitado pouco antes do do ministério, a Ordem dos Médicos tinha vindo "publicamente negar a existência de propostas de contratação de anestesiologistas a 500€ à hora no Serviço Nacional de Saúde (SNS)", citando o bastonário -- "Qualquer pessoa de bom senso compreenderia que, se tal proposta existisse, num turno de 12 horas, quase triplicava o ordenado de um mês" - e concluindo: "Em face das afirmações públicas da ministra da Saúde, a Ordem exige que a situação seja totalmente esclarecida, desafiando a ministra a apresentar publicamente os documentos oficiais emitidos pelo CHLC que comprovem as suas palavras ou, em alternativa, a dizer a verdade aos portugueses." A mesma exigência já havia sido feita pelo Sindicato Independente dos Médicos, na terça-feira (dia de Natal), quando exigiu "saber a quem e onde foram feitos pagamentos desta ordem."

Comunicado contradiz ministra?

Mas que disse exatamente a ministra? O que os jornalistas perceberam e veicularam foi: "Neste Natal, nem os 500 euros à hora oferecidos foram aliciantes o suficiente para colmatar a falta de anestesistas."É este o título da notícia da SIC, canal ao qual foram feitas as declarações em causa. Ou seja, concluía-se que o Estado tinha oferecido aquele extraordinário valor à hora mas que nenhum médico tinha aceitado, o que tinha implicado o dito encerramento das urgências da MAC.

As palavras exatas da ministra foram: "Sempre resolveríamos, se houvesse anestesistas, a contratação pelo valor que nos é pedido e, no caso, o valor que nos é pedido é 500 euros à hora. Sucede que, todavia, não foi possível recrutar um segundo elemento e isso demonstra a necessidade que temos em determinadas áreas de mantermos no Serviço Nacional de Saúde os profissionais que formamos."

O que parece pois é que a ministra disse realmente que foi pedido um valor de 500 euros/hora e que esse valor seria aceite caso houvesse anestesistas disponíveis.

O que é diferente daquilo que está no comunicado do ministério: que "uma das respostas enviadas por uma destas empresas ao CHLC (...) incluía ainda a disponibilidade de um anestesista mediante o pagamento de 500 euros/hora", que parece traduzir-se por "havia um anestesista que pedia 500 euros/hora".

E diferente ainda daquilo que terá sido comunicado ao site Polígrafo por fonte do ministério da Saúde - que "a ministra se reportava a um caso circunstancial de um profissional que terá comunicado a uma das empresas com quem o CHLC negociou que nem por 500 euros iria trabalhar nessas noites."

Acresce que a tabela de contratação em vigor estabelece valores entre 26 e 39 euros/hora, pelo que legalmente não seria possível contratar um médico pelos 500 euros citados. Como sublinha o comunicado da Ordem: "A verdade é bem diferente: o Centro Hospitalar de Lisboa Central terá aberto um concurso para contratação de prestadores de serviços, por um valor de 39€ à hora, valor esse que seria pago à empresa, não aos médicos especialistas (cujo valor/hora é sempre inferior ao que é pago à empresa)."

Pelo que a representação da classe profissional conclui: "Perante uma discrepância de 461€, a Ordem dos Médicos exige que sejam apresentados os documentos/contratos onde conste claramente o referido valor e que seja explicado em que meios oficiais foram publicados e divulgados. Confirmando-se a verdade - isto é, que tais propostas de contratação por 500€/hora não existem - a Ordem exige um desmentido tão público quanto o foram estas falsas notícias, e reserva-se no direito de recorrer aos Tribunais dado o caráter ofensivo e indigno para os médicos como resultado das declarações proferidas."

Afinal, urgências estão ou não fechadas?

Recorde-se que a própria notícia sobre o encerramento das urgências da MAC, divulgada esta segunda-feira, 24 de dezembro, teve aspetos contraditórios.

Se uma "fonte oficial do CHLC afirmou à Lusa que. "a urgência está aberta, só se for algum caso em que o parto não seja urgente será encaminhado para outro hospital. As senhoras podem vir, serão observadas na Maternidade, depois da análise da sua situação, será decidido o que fazer. Se não for urgente, se não for iminente o parto, será encaminhado para outra unidade, no âmbito da rede do Serviço Nacional de Saúde", reiterando-se que havia 17 mulheres ali internadas que "caso entrem em trabalho de parto, serão assistidas", à TSF a médica responsável pela medicina materno-fetal da MAC, Maria José Alves, certificava: "Para manter a segurança das grávidas, não podemos receber senhoras de fora."

E explicava: "As internadas sofrem de patologia materna e patologia fetal, podendo em qualquer altura necessitar de uma intervenção cirúrgica, e o pior que poderia acontecer é termos duas emergências ao mesmo tempo e só termos um anestesista. Pelo que decidimos que o mais sensato era fechar a maternidade às senhoras que vêm de fora."

Garantindo que se a situação se mantiver a urgência terá de permanecer encerrada, Maria José Alves considerou-a "inexplicável" e foi mesmo mais longe, concluindo: "É difícil acreditar que tem havido vontade de resolver este problema. Os responsáveis sabem que há falta de recursos humanos, não só na nossa maternidade, e inexplicavelmente não abriram vagas."

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