No início deste ano, numa entrevista à Variety, Bryan Fogel lamentava o silêncio universal à volta de um documentário como The Dissident. "Em qualquer circunstância normal, este filme seria adquirido e distribuído." Ainda mais se estivermos a falar do trabalho de um realizador que venceu um Óscar pelo seu documentário anterior, Icarus (2017), sobre o doping no desporto. Mas o preço a pagar por se meter com assuntos pesados é este: uma distribuição demasiado discreta para um filme que, através da tragédia do jornalista Jamal Khashoggi, denuncia o controlo da liberdade de expressão na Arábia Saudita. O medo de dar visibilidade a tal matéria tem só que ver com "interesses comerciais e políticos e, quem sabe, talvez com pressão do governo saudita", esclarece o realizador americano. Congratule-se então o canal por cabo que teve a coragem de lançar por cá O Dissidente (TVCine Edition, 22h00)..O caso no centro deste documentário foi amplamente noticiado. No dia 2 de outubro de 2018, Khashoggi entrou no consulado saudita em Istambul, para obter uma licença de casamento, e não voltou a sair. As autoridades sauditas fizeram de tudo para dissimular a verdade e atrasar o processo de investigação, mas acabaram por ter de admitir que o jornalista morreu no interior daquele recinto. Veio a saber-se depois que foi torturado, morto e desmembrado numa sinistra operação que envolveu 15 homens, tudo indica, às ordens do príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman. Consequências? Até à data, apenas um ligeiro incómodo diplomático..O filme de Fogel não se limita a recontar a história conhecida. É precisamente por expor detalhes da investigação turca que O Dissidente se torna um olhar desconfortável para a comunidade internacional. Entre o muito que aqui se revela, há algo de perturbador nas evidências da incineração do corpo de Khashoggi, disfarçada pela encomenda do consulado de cerca de 30 kg de carne de um restaurante local, para que o cheiro do cozinhado cobrisse o do cadáver... E não é menos chocante a leitura da transcrição de áudio que dá conta do momento em que Khashoggi implora pela vida, enquanto os assassinos fazem piadas à volta do modo como o vão esquartejar..Antes da morte, porém, há a vida, e a de Jamal Khashoggi (1958-2018) foi a de um exemplar lutador pela liberdade de expressão no seu país. Uma postura que manteve sempre com moderação, tendo sido considerado, durante décadas, uma voz leal na Arábia Saudita. Foi só quando começou a perceber que Mohammed bin Salman e o seu discurso progressista - com o qual concordava na essência - escondiam um desejo de consolidação do poder a todo o custo, silenciando "outras opiniões", que o jornalista manifestou genuína preocupação. Inspirado pela Primavera Árabe, tornou-se uma voz cada vez mais crítica do governo e acabou por ver-se obrigado a trocar o país e a família pela segurança em território americano, onde trabalhou como correspondente e colunista do jornal The Washington Post..A certa altura, no documentário, há quem escolha bem as palavras: Khashoggi "era mais reformista do que dissidente". Mas foi na decisão de combater o chamado exército de "moscas" de Bin Salman (autênticos soldados trolls do Twitter, ao serviço da máquina de propaganda) que o jornalista se colocou definitivamente de um lado oposto. Fez amizade com um jovem dissidente saudita, Omar Abdulaziz, exilado no Canadá e com forte presença nas redes sociais, e financiou o projeto de contra-ataque das "abelhas-soldado"....O retrato humano que Bryan Fogel faz de Khashoggi é também o retrato daqueles que, como ativista Abdulaziz, continuam a sua luta, apesar de viveram num estado de alerta e ansiedade constantes. Abdulaziz, tal como Hatice Cengiz, a jornalista turca noiva de Khashoggi, que o esperou à porta do consulado no dia em que tudo aconteceu, são os testemunhos mais íntimos de O Dissidente, por um lado, devolvendo a imagem do homem que representou um ideal, e por outro, tentando que a sua morte e o seu legado não sejam esquecidos..Abrangente e muito esclarecedor, o documentário político de Fogel funciona como um thriller que mergulha o espectador numa narrativa dramática, ao mesmo tempo que reflete uma ferocidade jornalística capaz de despertar a mente mais adormecida. E essa convicção, que se sente na montagem, no uso da música (por vezes exagerado, mas necessário para a envolvência) e na própria linguagem apurada dos intervenientes, é quanto basta para o tornar um objeto, mais do que relevante, vital para a leitura da realidade. Desde logo, a realidade mediática..dnot@dn.pt