O dinheiro somos nós

A maior parte das relações em sociedade pressupõe alguma componente ou troca financeira. O que justifica uma pergunta sobre o nosso mundo iconográfico: como é que as imagens representam (ou não) o dinheiro?
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Tenho saudades do Tio Patinhas, confesso. Nas histórias aos quadradinhos (a classificação aristocrata de "BD" estava por inventar), não era das minhas personagens preferidas. Mas não quero arranjar desculpas: é bem provável que a sua avareza militante tenha corrompido de modo irremediável a minha frágil mente infantil, educando-me para uma convivência perversa com o dinheiro. Seja como for, nunca possuí a quantidade suficiente de moedas e notas, já para não falar de lingotes de ouro, que me levasse a compreender a sua relação com o dinheiro e, sobretudo, as bizarras componentes dos respetivos prazeres e tormentos.

De facto, ele nadava em dinheiro. Literalmente: sozinho ou na companhia dos atónitos sobrinhos (pobres crianças...), o Tio Patinhas dava mergulhos no seu tesouro, por vezes em pose de feliz veraneante, deslocando-se num pitoresco barco a remos. Com o passar dos anos, tendo falhado a minha carreira de milionário, tornei-me um intelectual. O que, com resultados certamente desiguais e discutíveis, me leva a conceptualizar os eventos mais díspares, discutindo de modo potencialmente infinito as suas significações. Ou seja, o Tio Patinhas legou-me uma herança iconográfica que muito prezo: o dinheiro ainda acedia ao mundo das imagens, era possível representá-lo nas imagens.

Agora, só mesmo algumas formas de publicidade se atrevem a representar o dinheiro, mas a sedução perdeu-se. Observem-se alguns anúncios de jogos de azar: quase sempre, os potenciais milionários são representados como seres de triste boçalidade, sonhando com praias tropicais... Podiam até ambicionar comprar uma pintura de Francis Bacon num leilão da Christie's, o que, além do mais, seria infinitamente mais caro do que umas férias nas Bahamas... Mas não: a imaginação do marketing prefere não arriscar em duvidosas derivações artísticas.

A questão complica-se face ao desigual tratamento mediático do dinheiro ganho por determinadas personalidades públicas. Assim, o país pode ser abalado por homéricos debates em torno de alguns milhares de euros auferidos por alguém que, melhor ou pior, desempenha um cargo oficial. O certo é que uma qualquer personalidade do mundo do futebol pode ser paga em milhões sem que tal situação desencadeie o mais ténue torpor social.

Lembram os mais sensatos que aquilo que é pago com o dinheiro dos contribuintes não se pode confundir com o universo dos negócios privados. Assim será, mas permito-me dar conta do meu ceticismo face a tal racionalização. Não porque tenha qualquer dúvida em relação à legitimidade e transparência de tais negócios. Antes porque seria interessante enriquecer o debate e perguntar quem paga os dinheiros de que o futebol se alimenta: as quotas de sócios, os bilhetes dos estádios, as assinaturas de televisão por cabo, os produtos promovidos nas camisolas dos jogadores, as próprias camisolas dos jogadores, etc. Dir-se-ia que, face ao Estado, o cidadão comum é um contribuinte; quando financia um clube de futebol, passa a ser um anjo da guarda.

A carência de imagens do dinheiro ilustra um processo de desumanização dos próprios modelos cognitivos em que vivemos. Há alguns anos, quando a expressão "mercados financeiros" passou a integrar a gíria jornalística, Jean-Luc Godard (cineasta sempre empenhado em avaliar como vivemos através das imagens e das palavras) perguntava porque é que se citavam os "mercados" como uma espécie de entidade mágica para explicar todos os dramas decorrentes da circulação do dinheiro, sem dizer o que quer que fosse sobre as "pessoas" que fazem existir esses mesmos "mercados". Lembrava ele uma cândida verdade: "Os mercados são pessoas."

Algo de semelhante se poderá dizer a propósito da circulação do dinheiro. Afinal de contas, o dinheiro somos nós: o essencial das relações em sociedade pressupõe alguma componente ou troca financeira. No universo das imagens, seria interessante, por exemplo, mostrar as moedas e as notas que fazem um salário mínimo, colocando ao lado as moedas e as notas ganhas por alguns profissionais de futebol. Entenda-se: não por qualquer suspeita ou insinuação malévola. Apenas para termos uma outra perspetiva sobre o mundo à nossa volta.

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