Onde acaba o cinema clássico e começa o cinema moderno? Não há, obviamente, nenhuma resposta linear: a vida das formas e das narrativas não se rege por qualquer lógica burocrática, não muda de um dia para o outro, muito menos através da obra de um único autor. Em todo o caso, não será escandaloso - é mesmo uma verdade canónica - dizer-se que a multifacetada modernidade cinematográfica, que teve o seu apogeu na década de 1960, não pode ser compreendida sem passarmos pela obra imensa, rigorosa e fascinante de Michelangelo Antonioni (1912-2007). Pois bem, aí está uma bela oportunidade para reencontrarmos alguns momentos emblemáticos da sua trajetória: a partir de quinta-feira, dia 26, a Leopardo Filmes apresenta sete filmes de Antonioni, em cópias restauradas, incluindo a lendária trilogia a preto e branco formada por A Aventura (1960), A Noite (1961) e O Eclipse (1962)..O evento corresponde à segunda parte do ciclo Os Grandes Mestres do Cinema Italiano, iniciado em junho, com títulos de Vittorio De Sica e Valerio Zurlini. Para já, os filmes de Antonioni estarão no Cinema Nimas, em Lisboa; a partir de 1 de setembro, começarão a surgir em salas do Porto (Teatro Campo Alegre), Setúbal (Cinema Charlot), Coimbra (Teatro Académico de Gil Vicente), Braga (Theatro Circo) e Figueira da Foz (Centro de Artes e Espetáculos)..Num contexto mediático em que a produção made in USA (melhor ou pior, não é isso que está em causa) goza de todos os privilégios de difusão, este é um acontecimento de especialíssimo valor cultural e comercial (na certeza de que as duas dimensões se cruzam e contaminam). Por um lado, confirmando que há distribuidores e exibidores independentes que não desistem da pluralidade histórica do próprio cinema; por outro lado, relançando-nos nas memórias de uma cinematografia, a italiana, que ocupa um lugar-chave na história do cinema moderno - na Europa e mais além..É uma revisitação tanto mais sedutora quanto, felizmente, a produção italiana não desapareceu dos nossos ecrãs. Desde logo, graças a essa iniciativa anual que é a Festa do Cinema Italiano; depois, através de estreias em tudo e por tudo ligadas a temas do nosso presente - recordo dois lançamentos notáveis de meses recentes: Noturno, documentário de Gianfranco Rosi sobre as convulsões do Médio Oriente, e Laços de Família, com Daniele Luchetti a redescobrir a energia do melodrama familiar (distribuídos, respetivamente, pela Leopardo Filmes e Midas Filmes)..Como todos os movimentos de renovação artística, a modernidade que Antonioni simboliza não pode ser desligada de uma pesada (entenda-se: riquíssima) herança histórica. Talvez possamos mesmo dizer que o seu cinema ilustra uma "segunda" modernidade. Porquê? Porque Antonioni, tal como Federico Fellini, pertence à geração dos que começaram a filmar depois do fulgor do neorrealismo - sem esquecer, claro, que nos primórdios das respetivas carreiras, quer Antonioni quer Fellini colaboraram com Roberto Rossellini, e também que o argumento de O Sheik Branco (1952), primeira realização a solo de Fellini, contou com a participação de Antonioni..Podemos, então, classificar Antonioni como discípulo de Rossellini ou até de Vittorio De Sica, outro nome fundamental do neorrealismo? Afinal de contas, tudo estava a acontecer ao mesmo tempo: o título mais antigo de Antonioni que agora podemos redescobrir, Escândalo de Amor (1950), surgiu apenas cinco anos depois de Roma, Cidade Aberta (Rossellini) e dois depois de Ladrões de Bicicletas (De Sica)..Escândalo de Amor possui um especial valor sintomático porque, de facto, não é um filme neorrealista: a sua recuperação das matrizes clássicas do melodrama, mais ou menos policial, confere-lhe até a dimensão insólita de objeto algo nostálgico. Mas não deixa de ser um filme filtrado por esse desejo de devolver às atribulações da vida social uma verdade dramática que, definitivamente, já nada tem que ver com o espírito redentor do neorrealismo. O adultério do par central, interpretado por Lucia Bosè e Massimo Girotti, antecipa mesmo um desencanto que irá pontuar toda a filmografia de Antonioni: o masculino/feminino tornou-se estranho a qualquer ilusão romântica..Algo de semelhante se poderá dizer sobre O Grito (1957). O par interpretado por Steve Cochran e Alida Valli já não pertence a nenhuma paisagem estável, seja ela afetiva ou social. Os seus encontros/desencontros terão contribuído decisivamente para o rótulo de Antonioni como retratista da "incomunicabilidade". Em qualquer caso, mesmo não esquecendo que as suas personagens se debatem com a fragilidade das palavras com que (não) comunicam, seria precipitado reduzir tal tema a uma espécie de assombramento metafísico: a errância das personagens funciona também como processo de revelação de um país de muitos contrastes económicos..Há mesmo em Antonioni um método de inserção das personagens nos lugares sociais que faz com que cada cenário não seja um "pano de fundo", antes uma entidade que funciona como personagem silenciosa, mas vital. Nada disso é estranho à sua colaboração com alguns dos maiores técnicos das imagens do cinema moderno, a começar, justamente, pelo diretor de fotografia de O Grito, Gianni Di Venanzo, ele que, além de outros títulos de Antonioni, viria a trabalhar em clássicos como Gangsters Falhados (1958), de Mario Monicelli, ou Oito e Meio (1963), de Fellini..Numa missiva que Roland Barthes escreveu para Antonioni ("Caro Antonioni", publicada na revista Cahiers du Cinéma, em outubro de 1980), o autor de O Prazer do Texto apresenta uma acutilante descrição do contexto do seu trabalho: "Ao contrário do padre, o artista espanta-se e admira; o seu olhar pode ser crítico, mas não é acusador: o artista não conhece o ressentimento. É por você ser um artista que a sua obra está aberta ao moderno. Muitos tomam o moderno como uma bandeira de combate contra o velho mundo e os seus valores comprometidos; mas para si o moderno não é o termo estático de uma oposição fácil: o moderno é, bem pelo contrário, uma dificuldade ativa para seguir as mudanças do tempo, não apenas ao nível da grande história, mas no interior dessa pequena história cuja medida é a existência de cada um de nós" (tradução de M. S. Fonseca, catálogo Michelangelo Antonioni, Cinemateca Portuguesa, 1985)..Que "mudanças do tempo" são estas? As que nos levam a perceber que a dimensão abstrata do cinema de Antonioni não exclui, antes pelo contrário, a atenção, metódica e obsessiva, ao concreto das suas personagens. Veja-se e reveja-se a luminosa presença de Monica Vitti nos filmes em que Antonioni a dirigiu (na década de 1960, durante a sua vida comum). Há nela qualquer coisa de câmara de eco de um tempo de muitas solidões: em A Aventura, num universo de relações humanas cada vez mais voláteis; em A Noite, expondo a vulnerabilidade do território conjugal; enfim, em O Eclipse, ao lado de Alain Delon, num ziguezague pontuado pela histeria do dinheiro (recorde-se a lendária sequência da bolsa de Roma), desembocando nos novos espaços urbanos, com tanto de ambiência realista como de pesadelo geométrico em que o fator humano parece já não poder exprimir-se..Por esta altura, a dramática reconversão das cidades era, de facto, um tema que pontuava as cinematografias mais diversas: em França, com Viver a Sua Vida (1962), de Jean-Luc Godard; em Portugal, com Belarmino (1964), de Fernando Lopes; nos EUA, com Rostos (1968), de John Cassavetes. No caso de Antonioni, a sua abordagem levou-o a experimentar para lá do classicismo das imagens a preto e branco, estreando-se na cor com O Deserto Vermelho (1964), ainda com Monica Vitti, agora com fotografia de Carlo Di Palma (que nos anos 1980-90 viria a manter uma longa e frutuosa relação criativa com Woody Allen)..Ver ou rever O Deserto Vermelho, para mais numa cópia primorosamente restaurada, envolve um misto de estranheza e familiaridade: com as suas fábricas, chaminés e fumos de cores inquietantes, a zona industrial onde vive Giuliana (Monica Vitti) espelha a desumanização gerada pela "sociedade de consumo"; ao mesmo tempo, não podemos deixar de sentir que aquele mundo de dantesca poesia existe para lá do seu tempo, confundindo-se com muitas formas de perplexidade e inquietação do nosso presente..Depois de O Deserto Vermelho, Antonioni assinou vários filmes "internacionais", ou melhor, em língua inglesa: Blow-up (1966), Zabriskie Point (1970) e Profissão: Repórter (1975). Os três terão sessões especiais neste ciclo, permitindo expor o universalismo do olhar do cineasta: a modernidade que ele personifica não é uma abstração estética, mas sim um território de observação e pesquisa a que, afinal, o espetador também pertence - ontem como hoje..Em termos cronológicos, o ciclo encerra com Identificação de Uma Mulher (1982), exercício sobre o amor, o sexo e a solidão protagonizado por Niccolò (Tomas Milian), um cineasta à deriva na sua vida privada e no seu trabalho artístico. Não se trata de um retrato autobiográfico, mesmo se nele pressentimos um irónico jogo de espelhos que Antonioni não explorou muitas vezes. Profissional do olhar e da contemplação do mundo, Niccolò acaba por considerar que a ficção científica talvez seja a via ideal para encenar o desejo humano de conhecer "todo o universo e a razão de ser de tantas coisas." O seu jovem sobrinho escuta-o atentamente, devolvendo-lhe a dúvida mais básica: "E depois?".dnot@dn.pt