A vista do Okah é espectacular, com o Cristo Rei e a Ponte 25 de Abril em destaque no céu azul, mas não deixo de comentar com Luís Barradas, chef setubalense deste restaurante lisboeta, que até parece traição o nosso brunch ter o Tejo em fundo e não o Sado, o nosso Sado, o rio da cidade onde ambos nascemos. Mas tal como eu trabalho num jornal lisboeta, agora com sede perto do estádio do Benfica, o Luís ganha a vida num dos sítios mais bem frequentados do cais da Rocha do Conde Óbidos, com um Rooftop onde se pode comer uma tábua de queijos e enchidos (o nosso "brunch" das 17 horas!) ou o restaurante propriamente dito, que na apresentação fala do meu convidado/anfitrião assim: "O nosso chef Luis Barradas vive e trabalha entre dois rios, mas é pelo Sado que nutre o verdadeiro amor. O seu estuário está repleto de uma fauna e flora incríveis e pelas suas margens colhe, pesca e coleta vários dos ingredientes que utiliza na sua cozinha. Esta caracteriza-se por uma alma profundamente portuguesa mas com um sentimento japonês, impossível de dissociar da sua paixão por este país do Oriente, o qual visitou, onde trabalhou e estagiou diversas vezes levando sempre a sua cidade ao peito"..Bairrismo à parte, mesmo sendo inegável que o nosso à vontade um com o outro tem que ver com Setúbal, tento perceber como é que dos salmonetes na grelha tão afamados na nossa cidade o Luís chegou ao sushi, mesmo não sendo a única gastronomia que pratica. "Tinha 20 ou 21 anos quando fui com a minha namorada, mais tarde mãe da minha filha, trabalhar para Inglaterra. Fui experimentando tudo, aprendendo sempre com uns e outros, até que tive a minha primeira experiência num restaurante japonês em Londres. E aprendi muito, mesmo", conta o chef do Okah, também por estes dias no Barriga de Freira (Convento de Jesus em Setúbal) e do Wine Corner (restaurante da José Maria da Fonseca em Azeitão)..Rimo-nos os dois a pensar na nossa infância, o que pensaríamos se alguém nos desse a provar peixe cru, mas Luís chama-me a atenção para o sabor a mar dos berbigões ou das navalhas que comíamos crus, assim que apanhados nos bancos de areia junto a Tróia ou na Figueirinha, a maior das praias da Arrábida. Como nisto de conversar nunca se sabe bem que caminhos se seguem, dos berbigões do Sado ao famoso mercado de Tóquio, o Tsukiji, é um saltinho. Conto que um dia fui em reportagem ao Japão, por causa da ameaça nuclear da Coreia do Norte, com idas obrigatórias a Hiroxima e Nagasáqui, cidades das bombas atómicas em 1945, mas que não deixei de ir ver o famoso mercado onde os atuns são leiloados por verdadeiras fortunas, tudo em nome do melhor sushi..O Luís, claro, também visitou o Tsukiji, entretanto substituído por um outro mercado mais moderno mas menos central, onde os atuns continuam a ser a estrela por causa da paixão dos sushimen (em japonês itamae), capazes de fazer maravilhas com a carne vermelha desse peixe..Depois da aventura na Inglaterra, conta Luís enquanto bebemos um copo de vinho branco e nos entretemos com um pouco de presunto finamente cortado, o casal setubalense aventurou-se em Marrocos. "Fui lá abrir o primeiro restaurante de sushi do país", realça. E de repente trocamos algumas palavras em árabe, que ele aprendeu no dia à dia e que em mim são sobras dos tempos em que andei a estudar a língua..Da relação com Suzy, que o acompanhou também em Marrocos, nasceu Luna, hoje com 18 anos e a estudar em Inglaterra. "Quis dar-lhe as oportunidades que eu não tive ou que demorei mais a ter", conta Luís, que por causa do amor à música, paixão tão antiga como a cozinha, ainda tentou entrar no curso de professores de música da ESE de Setúbal, mas, admite, faltava-lhe a preparação teórica. Hoje a viver em Paio Pires com Rita, amiga de infância por quem se apaixonou há uns tempos, o chef explica que Portugal voltou a ser a sua base depois dos anos em Inglaterra e em Marrocos ("onde cheguei a preparar sushi para o rei Mohammed VI"), mas que no início, depois de "um esforço louco a quase não dormir", parou uns tempos com o trabalho nos restaurantes, nomeadamente o Assuka, e dedicou-se a100% à distribuição de produtos japoneses, de algas a arroz, tudo o que por cá não havia quando começou o boom dos restaurantes japoneses, muitos deles aquém do que deveriam ser. "Estamos a falar de qualidade. Da qualidade do peixe, da qualidade da mão-de-obra, de tudo. Não é possível sushi bom e barato. Em Portugal, não comes sushi em condições por menos de 70 euros por cabeça", diz. Desse tempo como distribuidor ficou a lembrança do bom dinheiro ganho. E que deu finalmente para comprar uma Harley-Davidson, a moto com que sonhava desde jovem, conta, a rir..A música, agradável, faz-se ouvir no Rooftop sem perturbar a conversa. Começa a chegar mais gente, pois estamos na Happy Hour. Luís aproveita de vez em quando para fazer um sinal a quem está a servir os clientes, afinal ele sabe bem os segredos da restauração e de como os pormenores contam. No entanto, nunca foi dono de um restaurante. "Sempre gostei da minha liberdade. Preciso sempre de coisas novas a acontecer na minha vida. Assim, fico nos sítios enquanto me sinto bem"..No mundo do sushi em Portugal há um nome incontornável, Takashi Yoshitake, que fundou o mítico Aya em Lisboa nos anos 1990 e morreu ainda antes de fazer 60 anos. Luís confessa que foi um dos que procurou aprender com o chef japonês, e com os seus ajudantes na época, sobretudo Aron, brasileiro que hoje é dono dos seus próprios restaurantes em Lisboa, e Luís Cardoso."Observei durante horas aquela minúcia toda. E ganhei um dia a atenção do Yoshitake. Depois foi sempre a procurar saber mais, a estudar, e daí a importância das viagens ao Japão. Um dos segredos é a chamada paciência oriental", acrescenta. Luís teve ainda formação dada por Tomo, dono do Kanazawa, antigo cozinheiro da embaixada e que entretanto regressou ao Japão. O sushiman português Paulo Morais foi quem depois ficou com o restaurante..De repente, damos o salto de novo para Setúbal, uns 30 km em linha reta, 50 por estrada a partir da capital. Não admira que com a fama das praias, também dos golfinhos do Sado, a cidade se encha de turistas. Mas aquilo que perturba um pouco ao Luís, e a mim, é a obsessão com o choco frito. "A maior parte daquele choco é importado. Chega congelado. O choco frito de Setúbal, à antiga, com azeite e alho, é mais rijo e muita gente não aprecia, mas é tão bom", diz, e só posso concordar..O modo de fazer choco que o Luís prefere mesmo é o grelhado com a tinta, depois temperado com azeite, cebola e coentros e misturado com batata com casca. Também falamos de uma boa caldeirada, que às vezes, em eventos especiais, chega a preparar a bordo, com um pouco até de água salgada pelo meio: "A caldeirada à setubalense não leva peixe com escama. É só tremelga, safio, xarroco e pata-roxa"..Voltam-nos a encher o copo com um branco fresquíssimo e acelero a conversa, pois percebo que para o Luís a aproximação da hora do jantar traz outras obrigações. Sobre sítios para comer peixe em Setúbal, fala-me do Batareo, na zona das Fontainhas, onde o salmonete é escalado, barrado com o próprio fígado e depois é que vai à grelha. Também me recomenda a Casa de Pasto Rodrigues, "perto da praça" (o reputado mercado do Livramento) onde adora comer esquilhas fritas com salada de favas.."Isto do prazer à mesa é mais uma combinação de sabores e de memórias. Tem uma parte muito sentimental. Por exemplo, um dia, num jantar vegetariano que organizei, preparei uma salmoura e pus nela gomos de maçã riscadinha de Palmela. Quando me perguntaram onde me inspirei, disse que foi na minha infância, quando ia para a praia com a minha mãe e ela levava maçãs e perinhas que lavávamos com água do mar. E aquele sabor salgado na fruta faz até hoje parte das minhas memórias", conta o chef. Uma vez mais, percebo perfeitamente. Temos várias memórias em comum, apesar de Luís, com 45 anos, ser um pouco mais novo..Quando vai almoçar ou jantar com amigos, diz Luís, toda a gente olha para ele na hora da primeira colherada ou garfada para lhe perguntar se está bom. "Sou muito boa boca. E também muito diplomático. Um restaurante tem que ver com expectativas. Mas nunca me armo. Não admito é ser enganado. Por exemplo, gosto muito de mexilhões, mas quero dos nossos, não dos em meia casca, importados da Nova Zelândia". Falamos de marisco e uma vez mais trocamos experiências, eu a fazer mergulho à apneia na adolescência para apanhar amêijoas, navalhas, raias, linguados e até alguma santola ocasional, e o Luís a contar que fazia o mesmo, e sem fato. "Aquelas santolas enormes, vazias, só água, chamávamos os contadores", lembra, e rimo-nos, tal como nos rimos da má fama que tinha então a Albarquel, a praia da Arrábida que dá para ir a pé desde Setúbal..Os pais do Luís conheceram-se na praia, em Tróia. Ele vinha do Lavradio, ela de Azeitão. Mas as raízes do pai são no Alentejo, Cuba, e se as comidas alentejanas não predominam na gastronomia de Luís o chef, já a ligação emocional de Luís o homem ao Alentejo é muito forte: "sabes aquele disco dos Rio Grande? Ouço aquilo e emociono-me. É a história de vida do meu pai". Nos anos em Inglaterra, emigrante ainda muito novo, conta que se emocionava a ouvir músicas como Senta-te aí. E na parede da cozinha, a fazer de janela, tinha um poster do Portinho da Arrábida. Saudades de Setúbal, com certeza. E do peixe do nosso Sado..leonidio.ferreira@dn.pt