Miúdo alemão que desembarcou com a família em Nova Iorque, Thomas Nast simboliza muito daquilo que é a América: o seu sucesso como cartoonista na segunda metade do século XIX é a prova de que o sonho americano existe, a liberdade com que praticou a sua arte só é possível numa democracia, o legado da criação de figuras como o Pai Natal (inspirado na imagem do St. Nikolaus da sua Baviera natal) ou o Elefante e o Burro que simbolizam os grandes partidos dos Estados Unidos é o triunfo da imagem como elemento de afirmação de cultura e de poder.."Certo dia, enquanto passeava em Richmond, o presidente da Confederação Jefferson Davis foi abordado por um soldado que lhe perguntou: 'Senhor, você é o Jefferson Davis?' Ele anuiu, ao que o soldado retorquiu: 'Pois, você é tal e qual a imagem no selo dos correios.' A Guerra Civil americana terá constituído um ponto de viragem na forma como as notícias do conflito chegaram a populações que dele estavam arredadas fisicamente. Apesar de a fotografia estar ainda a dar os primeiros passos, como evidencia a ausência de registo fotográfico do discurso de Gettysburg do presidente Lincoln - tão breve que, quando chegou ao fim, os fotógrafos ainda não tinham prontos os seus aparelhos -, ela contribuiu para criar uma maior proximidade face a eventos remotos; razão pela qual os periódicos de Nova Iorque criaram vastas equipas destinadas ao registo visual da frente de batalha. A fotografia confinou-se à dimensão informativa; veja-se, por exemplo, nos registos fotográficos dos corpos estropiados que funcionaram como instrumentos pedagógicos para os cirurgiões em campanha", contextualiza Mário Avelar, catedrático de Estudos Ingleses e Americanos da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa..E não se trata apenas da fotografia, sublinha Mário Avelar, pois a par desta "surge a gravura, prática que iria influenciar a pintura, como pode ser comprovado através das gravuras de Winslow Homer que o celebrizaram ainda antes de ele se afirmar como um dos nomes mais relevantes da pintura americana do século XIX. A cultura visual impôs-se na realidade americana a partir de meados do século XIX, algo que o poeta maior desses tempos, Walt Whitman, tornou indissociável da sua vertente criativa, chegando mesmo a afirmar que 'em Folhas de Erva tudo é literalmente fotografado'"..Acrescenta o especialista em cultura americana que "uma das vertentes desta cultura visual é a sátira, herdeira de Hogarth no seu caráter demolidor. E Nast levou bem longe nas suas caricaturas uma violência visual de denúncia desde os tempos da Guerra Civil: o racismo - a denúncia do Klan, a corrupção -, o ataque a Tammany Hall, o tratamento dado aos nativos americanos, a aliança de interesses na governação. E depois houve ainda o modo como ironizou certos estereótipos sociais - irlandeses, por exemplo. Nos tempos que correm, importa lembrar que a violência crítica do seu olhar sobre a América da segunda metade do século XIX só foi possível porque então se prezava o legado de liberdade proclamado por Jefferson: "Se tivesse de escolher entre governo sem jornais ou jornais sem governo, não hesitaria em escolher esta última""..Aos 15 anos, Nast já trabalhava como ilustrador e aos 18 começou a publicar na Harper's Weekly. Uma oportunidade de trabalho em Inglaterra permitiu-lhe ir também a Itália desenhar a marcha de Garibaldi, e a sua atração por temas políticos foi desde cedo evidente mesmo que muita da sua fama hoje seja pelo velhote de bochechas rechonchudas e grande barba branca que se tornou sinónimo de Pai Natal (ao ponto de a Coca-Cola se apoderar dele para a sua publicidade). A abolição da escravatura e a denúncia do racismo mesmo depois da Guerra Civil Americana foi uma das suas causas, tal como o ataque à corrupção..Sobre o génio criativo de Nast e a sua modernidade, diz o cartoonista André Carrilho, que já publicou na Harper's Magazine (parente da revista onde Nast trabalhou): "A profissão de cartoonista pode às vezes ser muito semelhante à de um DJ. Em vez de músicas, recombinamos clichés visuais de que raramente conseguimos identificar a origem. Mas podem ser os próprios artistas e escritores a criar de propósito esses clichés, à procura de representações gráficas de conceitos abstratos. São disso exemplos o Pinóquio e o seu nariz a crescer, para a mentira (1883), e o Zé Povinho para a identidade portuguesa (1875). Por volta da mesma altura Thomas Nast cimentou no panteão de recursos pictóricos três figuras a que é preciso recorrer vezes sem conta nos nossos dias: o Pai Natal (evoluindo a partir de 1862), o elefante do Partido Republicano (1874) e o burro do Partido Democrata (1870). Nast pode não ter sido o criador absoluto dessas figuras, mas gravou a sua fisionomia e a sua aplicação finais, num testemunho gráfico que é passado entre gerações. Se imagens criadas por um artista de há mais de cem anos continuam a ser a forma mais económica e eficaz de representar abstrações que ainda existem nos nossos dias, isso só é garante da sua modernidade.".Nast, casado e pai de cinco filhos, perdeu muito dinheiro em investimentos falhados e os últimos anos de vida foram de pobreza. Em desespero, pediu uma posição como diplomata e o presidente Ted Roosevelt, admirador dos seus desenhos, colocou-o como cônsul em Guayaquil em 1902. Mas pouco depois de chegar ao Equador, Nast contraiu febre-amarela e morreu. O chamado "pai dos cartoonistas americanos" e também "príncipe dos ilustradores" tinha então 62 anos.