Refugiados, sobreviventes, atletas e sonhadores. Farid Walizadeh e Dorian Keletela deviam estar esta sexta-feira (24 de julho) em Tóquio na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos se eles não tivessem sido adiados para 2021. Agora, o jovem pugilista afegão e o velocista congolês, que fazem parte da equipa de refugiados do Comité Olímpico de Portugal, têm mais um ano para se preparem para o cumprir de um sonho depois de sobreviveram à própria sina..Em comum têm um passado traumático, de perseguição, violência e o exílio em Portugal onde já conseguem pensar num futuro. E essa a maior vitória para quem um dia adormeceu sem saber se ia acordar. A história de Farid Walizadeh já foi contada muitas vezes. É tão impressionante que tem servido de inspiração e exemplo e já lhe valeu uma distinção na Assembleia da República e uma ida à ONU, mas cada vez que lhe pedem para a contar há sempre algo novo e surpreendente. E ele não conta tudo. Não quer chocar ou ser julgado, apenas que saibam que é rijo e já sobreviveu a muita coisa. O jovem pugilista afegão parece que leu o pensamento de Dorian. O velocista do Sporting também prefere esquecer as memórias que o atormentam "um bocadinho" e olhar para um futuro em Portugal e no atletismo..A incrível história do pugilista afegão que percorreu três países a pé e escolheu Portugal para o exílio.Farid nasceu no seio de uma família abastada de origem ismaelita (minoria perseguida no Afeganistão). Depois de o pai ser morto, a mãe grávida viu-se perseguida e fugiu para as montanhas do Paquistão, deixando-o com uma família amiga com receio que ele não sobrevivesse à viagem. Os pais adotivos morreram (ou foram mortos) e um tio vendeu-o a um traficante de seres humanos para que ele não voltasse e reclamasse os terrenos..Foi assim que com apenas oito anos de idade Farid saiu de Puli Khumri num grupo de cerca de 200 pessoas e iniciou uma longa caminhada que o trouxe a Portugal. Percorreu a pé, de burro ou à boleia de autocarros e camiões, as montanhas do Afeganistão, Paquistão e Irão antes de chegar à Turquia. "No Paquistão caí do autocarro e tive de ir sozinho até quase ao fim do Irão", contou ao DN, sem entrar em pormenores sobre como sobreviveu até chegar a Istambul. "Há coisas que é melhor não contar.".Pelo caminho viu desespero, miséria e morte. Ele agarrou-se ao sonho de uma vida na Europa e sem violência. Mas o calvário não acabou tão cedo: "Na Turquia pediram-me para transportar uns pacotes de açúcar em troca de uma passagem de avião para a Europa e afinal era cocaína e fui preso." Foi depois colocado num centro educativo, em Istambul, onde levava cargas de "porrada" todos os dias e de onde fugiu várias vezes. "Nunca tive um pai ou um irmão mais velho para me proteger, então tive de aprender a dar porrada, falando honestamente foi assim que tudo começou. Levei muita porrada de pessoas e da vida mas levantei-me sempre", revelou com um certo orgulho. Foi então ajudado por uma assistente social e fez então amizade com um turco que praticava artes marciais e começou a praticar taekwondo. Tornou-se bom e ganhou a "um turco filho de uma pessoa importante". Em vez de um prémio ganhou uns meses em coma. Foi atropelado e espancado e ficou muito mal tratado numa perna e num braço. "Os médicos diziam que eu nunca mais podia treinar. Enganaram-se." Mais uma vez ergueu-se e foi à luta. Ao fim de cinco anos e de seis tentativas falhadas de chegar à Grécia por barco, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados apresentou-lhe duas propostas de países que estavam dispostos a recebê-lo com o estatuto de refugiado. Entre os EUA e Portugal, ele, que "não tinha boa impressão da América por causa da guerra", escolheu "o país de Cristiano Ronaldo". Tinha 15 anos quando em 2012 chegou a Lisboa. Farto de fugir viu em Portugal o seu porto de abrigo, calmo, afável e acolhedor: "Consegui sentir-me em casa.".As lesões sofridas na Turquia deixaram dúvidas sobre a prática de artes marciais, mas ele insistiu e começou a treinar no Clube Desportivo de Arroios. Treinado por Orlando de Jesus demorou menos de meio ano até ser campeão nacional de -57 quilos, em 2013. "O sonho foi ficando cada vez maior. Se eu consegui ser campeão nacional, vou tentar ser campeão europeu, se eu consigo ser campeão europeu vou tentar ser campeão mundial e se eu for campeão mundial vou tentar ser campeão olímpico", desabafou o afegão, confessando que não tem um ídolo: "Vou ser honesto. Eu gosto do Mike Tyson, do Ali, do Lomachenko, mas não posso dizer que tenho um ídolo. Bom ou mau eu quero ser o Farid." O título nacional foi o primeiro de muitos títulos, que depois perderia. Os atletas portugueses alegaram que ele não podia sem campeão nacional visto que não era português, pois tinha passaporte de refugiado. Ele garante que não ficou ressentido..Foi apenas mais um revés na vida... a que se seguiria um outro bem pior. Depois de fazer 18 anos teve de sair do centro de acolhimento. Como o boxe amador não dá dinheiro, ele não tinha trabalho e era "impossível" sobreviver com a pensão de pouco mais de 260 euros dada pelo Estado português, Farid colocou as luvas de lado e foi trabalhar para poder pagar um quarto. "Passei dificuldades, mas a palavra diz tudo, passei, no passado". Mais uma vez prefere calar o que passou. Arranjou emprego num hotel. Era rececionista, mas fazia de tudo um pouco..Sabendo das dificuldades do afegão e do potencial desportivo o Comité Olímpico de Portugal propô-lo para a bolsa internacional. Foi aceite e assim pode deixar de trabalhar. Mas já se tinham passado uns três anos sem boxe. Só em março de 2019 e já depois de duas lesões graves (no ombro e no joelho) que o levaram à mesa de operações voltou ao ginásio. Com pouco mais de um ano para o "meter em forma" para os JO, Paulo Seco chegou a duvidar da missão. "Um bom boxeur demora dez anos e alguns litros de sangue a construir, uma participação olímpica demora quatro anos e eu tinha meses para o por de novo num ringue e fazer mínimos olímpicos", explicou o treinador e dono do Boxing Club no antigo Casal Ventoso, que o afegão representa. Paulo já o tinha visto em torneios antes de ele lhe pedir para o treinar: "A evolução é brutal. As pessoas não têm ideia, mas a evolução de um atleta demora anos, em média um atleta demora 10 a 12 anos para se formar no boxe. Ninguém pode pensar que chega e vence logo, um ano só é para aprender a executar alguns golpes, depois vai evoluindo de combate em combate. O Farid é o tipo de atleta que tem de trabalhar muito porque não é um virtuoso, mas ele trabalha para chegar ao topo." E o que significa chegar ao topo? Podemos falar de uma medalha olímpica? "Sim. Nós temos um objetivo. Chegar aos Jogos Olímpicos e vencer. Se não conseguirmos temos mais quatro anos para tentar de novo. Ele tem apenas 23 anos e pode competir até aos 40, por isso tempos tempo.".O afegão sonha com isso e com a ideia de construir família Portugal, depois de ter conseguido encontrar a mãe biológica e a ter trazido para Lisboa juntamente com os cinco irmãos. Portugal é agora o seu país. Um país onde algumas pessoas ainda lhe chamam "terrorista" quando sabem que é afegão e muçulmano. "O rótulo é difícil de sair, mas eu não ligo, é a minha barreira de proteção", confessa Farid, que quando sai do ginásio é a pessoa mais pacífica do mundo: "Eu não gosto de bater em ninguém, não tenho brigas de ruas nem nada. Sou super calmo, ponho os meus óculos e nem parece que sou um boxeur. Na faculdade ninguém sabia que eu praticava boxe e quando contei não acreditavam e já nem disse que era campeão nacional." E nem sonhar em dizer que espera um dia quer "ser campeão do mundo"..Aprendeu a falar português a ler Camões e Pessoa na biblioteca do centro de refugiados e assim que pode começou a estudar artes na escola António Arroios (Lisboa). Hoje fala fluentemente português e está no primeiro ano do curso de arquitetura. "Gosto de criar coisas novas e bonitas. Talvez seja por ter visto tanta destruição..." Falando em destruição, o que se lembra do Afeganistão? "Pouca coisa, tinha oito anos quando vim embora, pequenos flashes de guerra", respondeu, revelando que nunca mais voltou, nem quer voltar. Sabe que há uma grande probabilidade de não sair de lá vivo..O velocista dos pés tortos que fugiu do Congo e acabou no atletismo do Sporting e a treinar com Obikwelu.Os pais morreram quando ele ainda era jovem e por isso Dorian foi morar com uma tia, uma politica da oposição que se viu perseguida e obrigada a fugir do Congo. A tia pediu exílio a um país europeu e com os conhecimentos que tinha conseguiu colocá-lo num avião para Lisboa. Quando chegou ao aeroporto Humberto Delgado, Dorian pediu exílio e foi-lhe concedido, depois de verificarem a sua história. E foi assim que o congolês chegou a Portugal em 2016..Era um jovem de 17 anos, assustado e de poucas palavras. Passou por dois centros de refugiados na zona de Lisboa e foi num deles que o atletismo entrou na vida dele. "Perguntei lá no centro onde podia fazer desporto e conheci o Carlos Silva, que é treinador e disse para ir para o atletismo. Disse que eu tinha potencial e mandou-me ir ao Sporting", contou o jovem congolês hoje com 21 anos. Entrou logo para uma das maiores escolas do atletismo nacional e foi treinador por um dos melhores treinadores da velocidade portuguesa (Rui Norte), mas ainda teve de aprender a correr. "Tinha um jeito meio desengonçado e corria com os pés para fora, parecia um pato a correr, e por causa disso foi operado duas vezes ao joelho porque o movimento dos pés causou problemas no movimento dos joelhos", recorda João Abrantes, selecionador nacional de velocidade e hoje seu treinador. Apesar dos pés tortos era muito muito rápido e especializou-se nos 60, 100 e 200 metros. "Ele tem evoluído técnica e fisicamente, mas a grande evolução do Dorian tem sido mais em termos de atitude, que incluiu disciplina, espírito de sacrifício, o rigor e o profissionalismo. Quando começou a treinar era muito vaidoso, achava-se muito bom e que não precisa de se esforçar muito para isso. A ideia que ele tinha de ele próprio não correspondia à realidade e isso fazia com que ele não se aplicasse como devia. Então os treinos de resistência, os que doem mais, era a desgraça completa, mas treinar em grupo fê-lo perceber que tinha de se aplicar mais, os colegas cobram mais dele. Ele tem percebido isso, percebeu que tem responsabilidades e tem melhorado imenso. Enquanto há uns meses ele não merecia muito estar neste grupo, agora já ganhou esse direito", explicou o treinador. João Abrantes não olha para Dorian como refugiado: "Para mim ele é atleta, esse é o único critério que me interessa. Se ele fosse só refugiado e não fosse um atleta com talento podia fazer atletismo, mas não a este nível. Ele está inserido num grupo de seis atletas, três deles atletas Olímpicos. Por isso para mim ele é um atleta, que tem um passado...".Dorian, tal como Farid, está integrado no programa Viver o desporto - abraçar o futuro desenvolvido pelo Comité Olímpico de Portugal (COP), apoiado pela Solidariedade Olímpica do Comité Olímpico Internacional (COI), que no Rio2016 estreou a inclusão nos Jogos de uma equipa de refugiados. "O programa mudou muito a minha vida. Esta bolsa olímpica ajuda-me muito. Neste momento, tenho condições para treinar e ser um atleta de alta competição", disse o velocista em jeito de gratidão. É na qualidade de refugiado que ele pode ir aos Jogos Olímpicos. Tem de se qualificar tal como os outros atletas, mas os critérios são um pouco diferentes. Ou seja não precisa de fazer marca para se qualificar, mas precisa ser o melhor velocista entre os refugiados a nível mundial. Condição que ele cumpre atualmente, mas que tem agora de manter até 2021..A adaptação foi "complicada por causa da língua e da cultura", mas ele gostou de Portugal e optou por ficar quando fez 18 anos. Agora sente-se integrado e sem o rótulo de refugiado. Mora numa residência do Sporting e vive para treinar, mas agora que já sabe "minimamente português" quer estudar e tirar o curso de treinador e de educação física. Homem de poucas palavras, seja pela aparente timidez ou pouco à vontade com estranhos, fruto do trauma ou apenas porque as palavras em português ainda atrapalham o raciocínio, o atleta congolês confessa que tem um objetivo: "Ir aos Jogos Olímpicos. Tenho de trabalhar muito. Agora tenho mais um ano para me preparar para chegar a Tóquio2021." A pergunta sobre se gostaria de ir aos Jogos com a bandeira do país de origem arrancou-lhe um sorriso atrapalhado, daqueles que disfarça o nervosismo e incómodo assunto. "Tenho um bocadinho de pena, mas não posso fazer nada", atirou, confessando que ainda não voltou ao Congo: "Nem quero. É muito difícil enfrentar as memórias. Não foi fácil deixar tudo para trás e ter de fugir." Memórias que ele cala, que guarda para ele mesmo que não as queira e que por isso o atormentam "um bocadinho". Memórias que desaparecem quando está na pista. "A liberdade" que sente é "especial" e não a consegue explicar. Só sabe que quer ganhar a luta com o cronómetro, cortar a meta e "ver quantos ficaram para trás". Esta é a maneira de ele dizer que quer chegar em primeiro. Dorian tem como melhor marca nos 100 metros 10s80 e tem Francis Obikwelu como ídolo e revê-se um pouco na história do nigeriano naturalizado português, que foi vice-campeão olímpico (2004) e ainda hoje é recordista da Europa e de Portugal nos 100 metros (9s86", em 2004). De vez em quando treina com ele no Jamor e diz que até já lhe ganha.."Viver o desporto - abraçar o futuro". Que programa é este?.Tudo começou numa iniciativa da ONU, que em 2013 desafiou o Comité Olímpico Internacional a arranjar forma de o desporto ser inclusivo. O COI por sua vez pediu aos respetivos países para apresentarem projetos. O Comité Olímpico de Portugal aceitou o desafio e marcou a diferença com um projeto de iniciativa própria, acompanhado e orientado, e não de distribuição de verbas apenas. Um programa de integração pelo desporto apoiado pela Plataforma de Apoio aos Refugiados - já recebeu 163 famílias, 378 adultos e 381 crianças - e pela União Europeia, que faz o filtro e separa os praticantes dos atletas com potencial olímpico. Foi assim que se chegou a Farid e Dorian, os dois atletas do programa olímpico com uma bolsa internacional de cerca de 18 mil euros por ano. Desta forma puderam concentrar-se apenas no treino. Maria Machado é coordenadora do projeto Viver o desporto - abraçar o futuro, que o COP promove desde 2016 e que nestes anos já envolveu entre "1200 a 1400 refugiados", o que representa cerca de 65% dos refugiados que chegam a Portugal, e não esconde o orgulho nos seus meninos. Sabe o suficiente do percurso de vida deles para entender a dimensão do feito deles ao chegar a este nível no desporto, acredita no potencial deles e espera que possam cumprir o sonho olímpico em Tóquio2021. Quando chegam aos centros de refugiados e são convidados a preencher um formulário, onde é perguntado se praticam ou querem praticar desporto e qual a modalidade. Depois disso o Comité Olímpico de Portugal entra em ação, fornece equipamentos e encontra clubes ou associações dispostos a recebê-los: "A maioria quer ser jogador de futebol para ser como o Cristiano Ronaldo."