Aos 62 anos, Francisco Louçã recebe o DN na sua casa no centro de Lisboa, bem perto do prédio que durante décadas foi a sede deste jornal. Afastado de cargos políticos permanentes - integra apenas o Conselho de Estado, eleito pelo Parlamento -, recusa no entanto deixar de ter uma voz política no espaço público. Comenta a política semanalmente na SIC e hoje será um dos oradores do comício em Lisboa com que o Bloco de Esquerda assinalará os seus 20 anos de existência..Vamos começar pelo princípio. A história do BE já foi contada muitas vezes mas há muitas pessoas que não a conhecem. De quem foi a ideia de criar o Bloco? Foi do Luís Fazenda..Quando a ideia lhe chegou, não torceu o nariz? Não. O Luís Fazenda contactou, por via do Mário Tomé, o Fernando Rosas, o qual, sendo independente, tinha participado em listas do PSR, e que foi muito sensível à ideia e que ma comunicou. Quando surgiu a ideia do Bloco, o mais fascinante era não repetir nenhuma experiência de coligação, não ser um arranjo eleitoral. Era fazer um movimento que fosse um partido, criar uma entidade política nova virada para a proposta, para o que pudesse dizer às pessoas. Queríamos acabar com a genética amaldiçoada da fragmentação da esquerda....Aquela fragmentação em que cada pessoa com uma opinião fazia o seu partido... Exatamente. Uma doença aliás que está profundamente inscrita em toda a história da esquerda e que continuará a ter de ser contrariada. Queríamos projetar uma capacidade nova de ação política....Qual foi nesta história de 20 anos o momento mais difícil do BE, em que o partido teve de fazer opções mais complicadas? É muito difícil dizer... A praxe parlamentar que foi organizada [em 1999] para tentar subalternizar-nos no hemiciclo, a luta contra a guerra na Jugoslávia, que era uma guerra difícil de interpretar, como gerir a posição do BE quando o PS tinha 113 deputados e o resto da oposição 115 e o BE dois....Sentiu que houve uma grande dificuldade quando o BE contribuiu em 2011 para a queda de José Sócrates, abrindo assim espaço para uma maioria PSD-CDS? Foi um momento muito difícil, sim, e para toda a esquerda em geral... Porque foi esmagadora a perceção de que a intervenção da troika era não desejável mas inevitável e o país deveria submeter-se a ela. Havia a ideia de que não havia outro caminho naquele verão de 2011 senão aceitar a austeridade imposta pela troika... Foi um momento de grande dificuldade a votação contra o PEC 4 mas o Bloco repetiria sempre essa votação. E, aliás, hoje só há um acordo com o PS porque esse acordo não é o PEC 4, é exatamente o contrário do PEC 4..O Bloco é de extrema-esquerda? Como coloca o partido nessa terminologia? Nunca na vida utilizei para mim próprio a designação de extrema-esquerda. É uma designação que não bate certo, é errada, e sempre o achei, mesmo quando fazia parte de um pequeno partido revolucionário, o PSR. Extrema-esquerda é a presunção de que há uma margem política razoavelmente inútil e que depois há uma esquerda que é a social-democracia. É uma abdicação completa da vontade de lutar por uma maioria. Nós somos uma esquerda popular, de raiz socialista, que combate por soluções maioritárias para o seu país, quer fazer parte do grande debate nacional, quer ser referencial da política, quer determinar os governos..Quando o Francisco Louçã, ex-líder do BE, integra o Conselho de Estado, não teme o efeito disso como símbolo de um certo aburguesamento do partido, de uma certa institucionalização conformista do partido? Se ler Vasco Pulido Valente, com certeza que sim. Mas, se sairmos da anedota e olharmos para a política, eu estou eleito pela AR na representação de um espaço que conquistou força suficiente para obrigar a essa representação. Não faço favores a ninguém. É naturalíssimo que o PCP tenha estado desde sempre no Conselho de Estado e é naturalíssimo que o BE, que saiu das eleições como terceiro maior partido, tenha essa representação..Não vê com mágoa dissidências do partido que ocorrem em protesto contra o facto de - dizem - o BE se ter submetido a reformar o capitalismo por dentro em vez de tentar ruturas totais em direção ao socialismo? O Bloco é o que sempre foi: um movimento de luta pelo socialismo e contra o capitalismo, um movimento anticapitalista, que critica o capitalismo como ele existe e não como é fantasiado. O socialismo do século XXI é anticapitalista. É a origem do BE e sempre fomos fiéis a essa ideia..Alguma vez achou possível - ou acha possível - o Bloco ser maior do que o PS? Esse é um objetivo eleitoral do BE ou não? O centro da política portuguesa foi sempre a alternância entre um partido de centro, o PS, e um partido de direita, o PSD, com o seu satélite, o CDS. A estratégia do BE sempre foi substituir esta centralidade do centro político por uma referência da esquerda. É claro que no atual ciclo, com o BE com dez por cento e o PS com 30 ou 38, conforme as sondagens, o BE não está a disputar a alternância política com o PS. O que é inteiramente verdade é que o Bloco disputa com o PSD - ou com o lugar que o PSD ocupa - um puxar a política para a esquerda quando a direita vai mais para a direita por efeito de Trump..O que quer isso dizer? O PSD é o segundo partido. Mas o Bloco de Esquerda pode vir a ser o segundo partido, é claro que pode. O BE deve ambicionar que a alternância não seja sempre entre PS e PSD e portanto que passe a haver um polo à esquerda que seja um referencial. Se o PSD disputa 20%, não há nenhuma razão para que o Bloco de Esquerda não queira, um dia, ultrapassar esse nível..Há duas áreas nas quais o BE nunca conseguiu implantar-se: no poder local e no discurso ecológico. Reconhece estas falhas? A que se devem? São questões diferentes. O mapa autárquico tem um grau de "continuísmo" que não existe em nenhuma outra expressão política. Há dois partidos que são mais pequenos nas legislativas do que o BE - o CDS e o PCP - e têm grande expressão autárquica, sobretudo o PCP. O Bloco não tem expressão autárquica grande, está longe disso, tem de aprender muito, tem de fazer o caminho das pedras. A questão ecológica é diferente e há uma transformação em curso: as novas gerações tratam das questões das alterações climáticas como uma emergência social e o BE tem um grande peso nessas gerações. É uma reconfiguração completa do espaço da política. No Bloco isso tem de ter cada vez mais peso. A política portuguesa vai ter de ser determinada por quem disse que as cidades têm de ser cidades sem carros, que tem de haver outra organização dos transportes públicos, que teremos de abdicar de fatores muito importantes desta cloaca atmosférica, que está tão perto da irreversibilidade..Essa questão das alterações climáticas tem de ir ocupando cada vez mais espaço no discurso do Bloco? Acho que será cada vez mais determinante, até na forma de organização do pensamento sobre a economia e sobre o emprego..Em relação à Europa: o Bloco já foi pró-euro, depois tornou-se antieuro, e nos últimos tempos não temos ouvido nada. Como é que estamos neste momento? Acho que isso está errado - o Bloco nunca foi pró-euro. Com o euro, sempre que há uma oscilação económica - e estamos a aproximar-nos de uma - tem de haver recessão e austeridade. Está inscrito no euro que um dos preços a pagar, acentuado ainda por regras totalmente de ditadura neoliberal, chamemos-lhe assim, é que o ajustamento é feito por venda de ativos por privatizações porque o Estado não pode fazer o que é absolutamente evidente que tem de fazer, que é ter um sistema energético, ter um controlo do sistema bancário. O que o Bloco fez, com o tempo, foi concentrar a sua proposta nas propostas que eram operacionais - a reestruturação da dívida..Mas sobre a reestruturação da dívida o volume do discurso foi diminuindo. Com certeza, porque os juros estão no nível mais baixo desde sempre. Portanto, o peso da dívida no imediato da gestão da balança dos rendimentos não é o de quando tínhamos 7%, pois estamos com o nível mais baixo desde sempre. Mas há riscos cada vez maiores e, depois, há uma coisa que se chama Trump. Quando houver uma crise, quem está como comandante do navio é o homem mais perigoso à face da Terra. Para Portugal a proteção é a reestruturação da dívida ou, naturalmente, abandonar o euro, se não for possível esta reestruturação..Mas no discurso europeu do Bloco, se tivermos saída do euro, renegociação da dívida e revogação do Tratado Orçamental, o que é que deve vir primeiro, em sua opinião? O Bloco terá de fazer o seu programa europeu - eu não faço parte de nenhum organismo do Bloco e não me sobreponho à forma da organização, até porque uma coisa é a análise que eu possa fazer como economista, como cidadão, outra coisa é o que uma direção política tem de fazer na escolha da pedagogia. Acho que a Marisa [Matias] tem sido brilhante na campanha europeia, na forma de organização das suas prioridades. Agora, se olharmos para a Europa, vimos que ela precisa de exterminar o Tratado Orçamental. Quanto à a reestruturação da dívida, Macron fala disso, António Costa também, vai-se falando disso; ela terá de ocorrer, mas eu só espero é que ocorra antes de uma crise e não no contexto de uma crise..Como é que o Bloco, sendo um partido crítico da UE, nomeadamente desta questão do euro, da dívida e do Tratado Orçamental, pode evitar ser confundido com essas companhias da extrema-direita que também são críticas da UE? Não há confusão nenhuma, a não ser em discursos que utilizam a linguagem nojenta como argumento da ação política. A esquerda foi sempre, historicamente, a barreira contra a extrema-direita, e quando há uma esquerda popular forte, como em Portugal, é muito mais difícil uma extrema-direita emergir. Ela cá chegará, porque o vento de Trump é assim, mas onde há esquerda popular é muito mais difícil que surja uma direita racista, xenófoba, machista, destruidora da democracia, ultranacionalista..O Bloco deve ambicionar integrar um governo ou deve excluir-se à partida de um cenário desses? O Bloco sempre disse o mesmo e sempre continuará a fazer o mesmo: lutará por uma relação de forças que lhe permita ser uma força determinante num governo, se maioritário ou minoritário, a história o dirá. Agora, ser força determinante é que é importante e isso não é ser um sócio do governo, não é fazer parte de uma secretaria de Estado, ter um posto no governo, não é lutar por lugares, é ser determinante nas políticas e na condução das políticas. O Bloco deve querer determinar a ação política. Pode fazê-lo com muita força e não estando num governo - por contratos políticos. E pode fazê-lo estando no governo e naturalmente um partido quer ser governo, é da natureza da ação política..Acha que o maior perigo das próximas legislativas é o PS ter maioria absoluta? O PS não terá maioria absoluta..Costa tem dito que se tiver ouvirá os partidos da esquerda à mesma, fará uma governação negociada, etc., etc. Acredita nisso? Não, se o PS tivesse maioria absoluta, mas eu não acredito que a tenha, acho que na antecâmara do primeiro-ministro estaria sentado em lugar cativo o António Saraiva [presidente da Confederação Empresarial de Portugal]..O que é que isso quer dizer exatamente? Quer dizer que o PS nunca faria nenhum acordo com a esquerda..Não se sente a engolir um grande elefante quando o BE, ao mesmo tempo que viabiliza Orçamentos do Estado, também vê o Novo Banco ser vendido a uma empresa como a Lone Star, que simboliza para si tudo o que há de pior no capitalismo internacional? Não, não há elefante nenhum. O Orçamento do Estado tem escolhas boas e escolhas más, e tem de se decidir se se recusa um Orçamento e se se provoca eleições antecipadas - o que teria sido o sonho delirante do PS - ou se, pelo contrário, se concretiza as medidas notáveis que conduzem ao aumento do salário mínimo nacional, ao aumento das pensões, à redução do IRS para a maior parte dos trabalhadores. O Bloco e o PCP fizeram muitíssimo bem em votar a favor de um Orçamento que tem rubricas com as quais estão em desacordo. A decisão da venda do Novo Banco é uma decisão que não é de Orçamento, é uma decisão diferente e é errada desde o princípio..Ainda é um socialista revolucionário? Sou, sempre fui. Defendo o socialismo, acho que o socialismo é o que tem sentido..Revolucionário? Sim, porque é preciso que haja uma transformação política que substitua o capitalismo por uma sociedade democrática..A pergunta foi se era socialista revolucionário. Mas ser socialista é essa revolução que é a democracia..Ainda admite voltar a ser candidato presidencial? Estamos tão longe disso....Mesmo contra Marcelo? Marcelo está tão feliz no seu cargo que eu nunca iria numa entrevista comentar alguma possibilidade de contrariar a pessoa que é mais feliz em Portugal no seu cargo [risos]..Queria saber se punha a hipótese, até para, talvez, corporizar uma alternativa à esquerda. Estamos muito longe disso, não darei respostas calculistas sobre essa matéria, até porque acho que o DN não quer isso..Gostava de ser governador do Banco de Portugal? Sente-se tecnicamente preparado para isso? Nunca me fizeram essa pergunta. Eu não sou especialista em assuntos bancários. Já houve casos de governadores do Banco de Portugal que eram grandes economistas ou pessoas muito capazes - certamente mais do que eu - e que provaram ser bons governadores do Banco de Portugal. Eu poderei cumprir essas funções, mas não tenho nenhuma especialidade nessa área. É uma pergunta que nunca me coloquei e que creio que não se colocará.