"É a praça mais importante da cidade. Tem um simbolismo especial em termos de ocupação de espaço público, de visibilidade para as questões LBGT e está próximo de locais de poder - ministérios e câmara municipal." Marta Ramos, diretora executiva da associação ILGA, não tem dúvidas sobre a importância de trazer para o Terreiro do Paço o Arraial Pride. Não se chama assim à toa. Pride quer dizer orgulho, em inglês. E é assim, nesta noite, já há 23 anos: um arraial onde a comunidade LGBT se mostra, expressa, e, dessa forma, se integra.."É uma catarse", resume Marta. "E para quem está no público é um momento de enorme liberdade. É a possibilidade de se estar onde se quer - na rua - sem ninguém a olhar. Aqui somos todos iguais", diz a diretora da ILGA. "É muito diferente trabalhar para o homem do que trabalhar para uma causa", confirma a produtora, Maria Ravasco, que, durante o ano, é responsável por muitos outros eventos com objetivos diferentes..O palco no canto direito da Praça do Comércio, de costa voltadas para o rio Tejo, vai ter luzes, sistema de som, mas o mais importante são as simbólicas bandeiras arco-íris, que foram das primeiras a ser hasteadas à volta da praça. O arraial, que começou discreto, nos anos 1990, tem hoje a dimensão de um festival - na última edição, cerca de 70 mil pessoas -, e a equipa conta com mais de 400 pessoas (200 voluntários e cerca de duas centenas de profissionais que se associam por uma valor simbólico)..À semelhança do ano passado, esperam outros milhares para assistir aos concertos, à arruada (17.00) e às várias atividades do programa. Há ainda dois arraias paralelos: um para os mais novos (arraialito) e outro para os mais velhos (arraial maior), onde vai ser tricotada uma imagem da primeira marcha do Orgulho LGBT em Portugal, há 20 anos. A animação musical conta com a participação do cantor brasileiro Johnny Hooker, cujo disco de estreia foi eleito como um dos melhores álbuns do ano pela revista Rolling Stone, e com os DJ Batida..O primeiro arraial."O arraial agora é um monstro", diz Luísa Corvo, 59 anos. É uma veterana na festa, esteve envolvida na organização da primeira edição no jardim do Príncipe Real, zona da cidade onde apareceram os primeiros espaços dedicados à comunidade LGBT, e continua a marcar presença no evento. "Já não aguento as noites", confessa. A energia já não é a de 1997, quando começou a montar o arraial na véspera e só se deitou no dia a seguir ao evento, depois de tudo arrumado..No dia 28 de junho de 1997, data da primeira edição, "era quase um grupo de amigos", recorda. Marcaram presença essencialmente as pessoas ligadas à ILGA e pouco mais. Eram dois mil participantes, quando em Paris o mesmo evento tinha juntado 300 mil e em Nova Iorque 500 mil.."Havia meia dúzia de barraquinhas que vendiam cerveja, havia música. Só lhe faltava a sardinha assada para ser um arraial de bairro", lembra Luísa. E as dificuldades logísticas passavam não por coordenar uma equipa de 400 pessoas, mas por assegurar que "as barraquinhas para os comes e bebes compradas no supermercado não voavam com o vento quando os autocarros passavam"..O "salto de fé".Depressa o jardim se tornou pequeno à medida que as lutas se tornavam maiores. Depois, passou para a Praça do Município, que a organização foi forçada a deixar uns anos depois, na altura em que Pedro Santana Lopes presidiu a câmara municipal (2002 a 2004). Durante dois anos, acordaram deixar o centro da cidade para poderem continuar a festa, segundo Luísa. "Fomos parar a Belém, a um relvado inundado, e depois ao Parque do Calhau [em Benfica] - onde espaço não faltava", diz com ironia. Era longe das vistas mais conservadoras..No ano seguinte, voltaram à Baixa Pombalina, à Praça da Figueira, que também se revelou pequena. "Foi um período importante para os direitos LGBT. Começava-se a falar na aprovação do casamento [que aconteceu 2010] e na adoção [em 2016]. Foi uma altura de grande visibilidade e de reivindicação da igualdade legal. A associação começou a profissionalizar-se e no arraial também se sentiu isso", explica Miguel Pinto, tesoureiro da ILGA entre 2005 e 2014..Foi a partir da Praça da Figueira que conquistaram o Terreiro do Paço com a ajuda da autarquia, desde sempre associada ao evento. "Foi um salto de fé. Deixou de ser um arraial e passou a ser um festival. Passou a ser uma coisa mais organizada, com mais gente", conta Miguel. Luísa concorda, mas considera que o arraial "perdeu muito do impacto que teve há uns anos". Por uma boa causa: "As pessoas agora já têm mais sítios para onde ir. Há mais bares, mais eventos.".Junho, o mês do orgulho LGBT.Este é o mês da comunidade LGBTI [o I acrescenta a intersexualidade] porque foi num junho de há 50 anos que os movimentos ligados à defesa de gays, lésbicas e transexuais começaram a organizar-se na sequência dos conflitos entre esta comunidade e a polícia à porta do bar Stonewall Inn, em Greenwich Village, Nova Iorque. Mais precisamente na madrugada de 28 de junho de 1969. Este incidente, considerado o momento fundador do movimento LGBT nos Estados Unidos, desencadeou uma série de protestos que duraram uma semana..Quase trinta anos depois, em Lisboa, aconteceu o primeiro Arraial Pride - já existente em 28 cidades. E passados outros três anos, a capital recebia a primeira marcha do Orgulho Gay - um momento tão festivo como reivindicativo, que desde então se repete anualmente. As próximas estão agendadas para 29 de junho em Lisboa e a 6 de julho no Porto.."O arraial ou as comemorações do orgulho são fundamentais, porque celebram o início da luta pela igualdade de direitos. Agora, as séries têm muitas figuras gays, lésbicas, trans. Há uma maior visibilidade, uma normalização. Mas aqui há 23 anos e até há dez anos não era assim. Esta festa é visível. É uma ocupação simbólica de um espaço central da cidade. Durante uma tarde e uma noite, o Terreiro do Paço é ocupado por um grupo de pessoas que geralmente são invisíveis", diz Miguel Pinto.