O ano de todos os perigos para Taiwan, o país que mais torce por Trump
Uma rixa por causa da decoração de um bolo demonstra que até nos mais pequenos gestos a política de Uma China é levada às últimas consequências. Suva, capital das ilhas Fiji. Num hotel de luxo, cerca de cem convidados da representação de Taiwan naquele arquipélago da Oceânia comemoram o dia nacional do país não reconhecido pela ONU. O que aconteceu a dado momento depende do ponto de vista.
Taipé acusou dois funcionários chineses de terem invadido a festa, fotografado os convidados e agredido um funcionário, que teve de ser hospitalizado. Já Pequim disse que os seus funcionários se encontravam numa "área pública fora do local da cerimónia em deveres oficiais" e que o pessoal da missão de Taiwan "agiu de forma provocatória", tendo causado "ferimentos e danos a um diplomata chinês".
A resposta do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês revelou o que deixou os chineses irados: "Uma falsa bandeira nacional foi ostentada abertamente no local, e o bolo também estava decorado com uma falsa bandeira nacional", disse o porta-voz do governo Zhao Lijian.
Os habitantes da ilha Formosa festejam a data de 10 de outubro de 1911, marco do início da revolta que iria acabar com a dinastia Ming e estabelecer a república. Mas a comunista República Popular da China, que depôs os nacionalistas em 1949, não reconhece Taiwan ou a República da China, o país fundado naquela ilha liderados por Chiang Kai-shek. Pequim considera o território uma província rebelde e tem como objetivo tomar a ilha, a bem ou a mal.
A contenda na longínqua República de Fiji surge num momento de alta tensão entre ambas as partes. Dias depois o líder chinês Xi Jinping, de visita a uma base naval na província de Guangdong, instruiu os militares para "se prepararem para a guerra". Embora não tenha referido qual o hipotético inimigo, a leitura é inequívoca.
Xi Jinping declarou publicamente que a reunificação de Taiwan é um "requisito inevitável para o grande rejuvenescimento do povo chinês". O calendário para a conclusão do seu projeto é 2049, ano do centésimo aniversário da revolução comunista. Mas há quem pense como Steve Tsang, diretor do Instituto da China na Escola de Estudos Orientais e Africanos de Londres, de que o líder chinês tem outro calendário. "Xi Jinping quer Taiwan de volta antes de entregar o poder a quem vier a seguir", crê.
A eleição, em 2016, da presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, do Partido Democrático Progressivo (DPP), representante de uma linha dura para com Pequim, teve como consequência o regresso de uma política de pressão diplomática e militar chinesa, que tinha sido aligeirada nos oito anos anteriores, quando esteve no poder o partido Kuomintang.
Em consequência, na competição pelo reconhecimento internacional, Taiwan perdeu em quatro anos oito aliados. Neste momento, só 15 Estados, incluindo a Santa Sé e outros microestados do Pacífico, mantêm relações com a República da China em detrimento da República Popular da China. Em 1971, ano em que Taiwan foi expulsa da Organização das Nações Unidas e viu Pequim tomar o seu lugar no Conselho de Segurança, 68 países, Portugal incluído, reconheciam a República da China.
Em sentido oposto à perda de reconhecimento, Taipé abriu no verão um escritório na Somalilândia, o território de facto independente da Somália, que por sua vez reciprocou o gesto. À falta de embaixadas ou consulados, os taiwaneses têm dezenas de centros económicos e culturais um pouco por todo o mundo, como em Lisboa.
A política de pressão da China continental estende-se um pouco a todos os setores. O caso mais premente é o da Organização Mundial de Saúde (OMS). Taiwan conseguiu obter o estatuto de observador, ao fim de 11 anos de pedidos, tendo por fim entrado em 2008 sob o nome de Taipé chinesa (nome sob o qual Taiwan compete no desporto internacional). Mas em 2016 a OMS mostrou a porta da saída aos representantes da ilha de 24 milhões de habitantes.
Há dias, o ministro da Saúde, Chen Shih-chung, escreveu um artigo de opinião publicado em vários órgãos de comunicação internacionais em que voltou a pedir a inclusão de Taiwan na OMS.
Quando o novo coronavírus surgiu, Taiwan distinguiu-se pela rapidez e eficácia no combate à pandemia. O vice-presidente, Chen Chien-jen, é um reputado epidemiologista que em 2003 se distinguiu pelo combate a outro coronavírus, o SARS, em contraste com a resposta de Pequim, tida então como opaca pela OMS.
Agora, perante o SARS-Cov-2, Taiwan entrou em conflito aberto com a direção da OMS. O governo de Taipé acusou a OMS de não comunicar um alerta seu aos países membros sobre a transmissão do novo coronavírus entre seres humanos, no que terá resultado num atraso à resposta global.
Os médicos de Taiwan receberam informações de colegas do continente que estava a adoecer em Wuhan. No mesmo dia, 31 de dezembro, em que a China avisou a OMS sobre uma doença desconhecida, já Taipé estava a informar o programa de intercâmbio de dados de prevenção e resposta a epidemias da OMS, o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), bem como as autoridades sanitárias chinesas da transmissibilidade do vírus entre seres humanos. A OMS nega que o alerta informasse sobre a transmissão entre humanos.
"A OMS não conseguiu obter informações em primeira mão para estudar e avaliar se houve transmissão de humano para humano da covid-19. Isto levou-a a anunciar a transmissão de pessoa para pessoa com um atraso e perdeu-se uma oportunidade de aumentar o nível de alerta, tanto na China como no resto do mundo", afirmou o vice-presidente de Taiwan ao Financial Times.
No final de março, os Estados Unidos deram um forte sinal de apoio a Taiwan. O secretário de Estado Mike Pompeo defendeu o regresso de Taiwan à OMS (antes de o presidente ter anunciado a saída da organização) e Donald Trump promulgou a lei TAIPEI, a qual defende a entrada da ilha em todas as organizações internacionais em que não seja obrigatória a condição de estado, além de prever a "alteração do compromisso dos Estados Unidos com nações que prejudiquem a segurança ou a prosperidade de Taiwan".
Em agosto, o secretário da Saúde da administração Trump, Alex Azar, visitou Taipé com o objetivo de reconhecer o papel de "líder mundial" na área da saúde e de "reafirmar Taiwan como um velho parceiro e amigo dos Estados Unidos". Foi Apesar de os EUA não reconhecerem Taiwan como um estado independente e soberano, em 1979 assinaram um acordo que estabelece "relações próximas" e permite a venda de armas.
Washington tem reiterado a "ambiguidade estratégica" sobre a ameaça da China continental, isto é, deixando no ar a hipótese de intervenção militar direta, mas desconhece-se se, caso Joe Biden vença as eleições, a Casa Branca irá aprofundar esta política ou revertê-la .
Na semana passada os EUA aprovaram uma venda de armamento a Taiwan no valor de 1,5 mil milhões de euros, entre mísseis de cruzeiro ar-terra, lança-foguetes e sistemas de reconhecimento. O Ministério da Defesa de Taiwan disse que esta aquisição permite "construir capacidades de combate credíveis e reforçar o desenvolvimento de um conflito assimétrico".
O conselheiro de segurança nacional da Casa Branca Robert O'Brien, apesar de não acreditar numa invasão a curto prazo, instou Taiwan a desenvolver capacidades militares para se proteger, tendo recorrido a uma metáfora zoológica. Para O'Brien, Taiwan precisa de "se transformar militarmente num porco-espinho", porque "os leões geralmente não gostam de comer porcos-espinhos".
Mas o animal a que Pequim tem sido comparado é um lobo. A diplomacia chinesa, mais agressiva nos últimos anos, valeu a cunhagem de "diplomacia do lobo guerreiro".
Outros países observam o desenrolar dos acontecimentos e medem oportunidades. A Índia, por exemplo, que também tem experimentado uma deterioração nas relações com a China - culminou num combate entre soldados de ambos os países em junho - não tem respondido ao desafio de Taiwan para um acordo comercial. Mas Nova Deli poderá de política, no que, a concretizar-se, seria um sismo geopolítico.