O amigo indisciplinado do Papa que dirige a Escola do Vaticano pelo mundo

É amigo pessoal do Papa, a quem trata por Bergoglio. E, embora tenha sido expulso da escola várias vezes, foi a ele que Francisco escolheu para dirigir o projeto que criou em Buenos Aires, em 2001, e que desde março funciona em Cascais - a Scholas Occurrentes. Numa passagem breve por Portugal, José María del Corral falou ao DN.
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Quando chegamos à antiga Escola Conde Ferreira, mesmo no centro de Cascais, paredes meias com a residência do Presidente Marcelo, José María del Corral está ao telefone. Não para, a agenda está cheia e o tempo contado. São quatro dias a correr, para participar em atividades levadas a cabo pelo projeto que dirige há muitos anos a pedido do seu amigo Jorge Bergoglio, agora Papa Francisco - a Scholas Occurrentes, ou Escolas de Vizinhos, ou Escolas de Irmãos, em português.

O argentino, 60 anos, confessa que conhece Bergoglio, assim o trata, há mais de 20 anos, desde que era arcebispo em Buenos Aires. A amizade entre os dois surgiu e foi crescendo pelo trabalho que cada um desempenhava e em que cada um se empenhava. Hoje, diz José María del Corral, "continuo a ser empregado dele". Tem consciência de que aquilo que o Papa valoriza nele "é a fidelidade, não a obediência. É bem diferente".

José María del Corral assume que foi expulso várias vezes da escola. "Era um indisciplinado e continuo a ser. Não perdi essa faceta. Perguntem no Vaticano", diz a rir, mas acrescenta: "Dizem que Deus escreve certo por linhas tortas. A mim disseram-me que Deus, nessa altura, já me estava a preparar para esta missão, para esta loucura, como diz o Papa, de querer mudar a educação no mundo."

Foi a ele que Francisco pediu que fosse diretor mundial do projeto que criou para apoiar os jovens, para os educar na igualdade de géneros e prevenir a violência. Foi a ele que escolheu para fazer germinar o projeto que hoje está espalhado pelo mundo inteiro. O projeto que pretende integrar todos os jovens, sem preconceitos de culturas ou de religião. "É para todos", reafirma José María del Corral.

De África à América, da Ásia à Europa, o objetivo da Scholas Occurrentes é ser uma escola da vida, onde a aprendizagem vem da experiência, dos testemunhos de cada um, das preocupações e dos sonhos de quem nela participa. O objetivo é construir, edificar uma educação que cultive pontes e promova a cultura do encontro e do diálogo.

Hoje, este projeto de Jorge Bergoglio é uma Fundação Pontifícia transformada, uma rede internacional que trabalha com escolas públicas e privadas, com um programa educativo que assenta na arte, no desporto e na tecnologia. O objetivo "é ensiná-los a comprometer-se com o bem comum, com a paz", porque "só a paz pode desativar bombas".

A Scholas Occurrentes, que está presente em 82 países, envolve mais de 400 pessoas. Tem sede na Cidade do Vaticano, na Argentina, em Espanha, no Paraguai e em Moçambique. Agora, desde março deste ano, tem o seu lugar também em Portugal, em Cascais.

Até agora, o projeto coordenado por dois jovens argentinos, Andrea Sanchez e Julián de Marcos, tem apostado em workshop de arte. Em novembro, será iniciado um outro sobre cidadania, que irá juntar jovens de vários estratos sociais de escolas do concelho para trabalharem três áreas específicas: arte, desporto e pensamento. É através destas áreas que poderão falar deles próprios, das suas preocupações, dos seus sonhos, também, e que caminhos seguir.

Na segunda-feira, a Scholas juntou jovens da Escola Secundaria de Carcavelos, do Colégio Amor de Deus, da IBN Mucana e da Escola Matilde Rosa Araújo. Os jovens começaram por ser convidados a tocar diferentes músicas escolhidas por eles e depois a desconstruí-las e a criar uma nova versão. O objetivo do encontro era desenvolver a expressão e a comunicação entre eles, em vez de ensinar técnicas ou teorias musicais.

José María del Corral esteve presente e, numa conversa com o DN, falou do projeto também já conhecido como a Escola do Vaticano.

Porquê Cascais para este projeto da Scholas Occurrentes, criada pelo Papa Francisco ainda em 2001 em Buenos Aires?
Houve vários encontros com outras cidades de todo o mundo para a abertura de mais um projeto Scholas, e as autoridades de Cascais, tendo visto os resultados que o programa alcançou na América Latina, em Espanha, em Itália e em muitos outros países, tendo visto a forma como temos lidado e abordado vários temas com os jovens - como o suicídio, a droga e outras problemáticas -, convidaram-nos a instalar-nos aqui. Cascais proporcionou-se. A comunidade local - que integra jovens de todas as classes sociais - tem feito muito trabalho nas escolas da zona sobre o que pensam e o que sentem e isso foi um dos aspetos que achámos importante, porque uma das motivações da Scholas é a necessidade de brindar a educação dos jovens com um aspeto mais universal e humano. Primeiro, definiu-se que seria um projeto-piloto de um ano.

Mas não vai ser só um projeto de um ano, pois não? A Câmara de Cascais cedeu as instalações da antiga Escola Conde Ferreira por vários anos, uma década. Portanto vão continuar...
Sim, vamos continuar. Mas primeiro avançou-se com um grupo de 300 alunos de diferentes níveis sociais e económicos, de diversos tipos de escolas para uma experiência-piloto. Mas a partir da evolução desta experiência decidiu-se que iria instalar-se aqui um programa Scholas e assumiu-se um compromisso com as autoridades locais de permanência. A Scholas Occurrentes é uma experiência que tem mais de 20 anos, foi criada por Jorge Bergoglio quando ainda era arcebispo de Buenos Aires, e os resultados que tem vindo a alcançar mostram que é possível mudar a educação, que é possível juntar crianças e jovens de diferentes níveis sociais e económicos e fazer que a educação seja para todos.

Acredita que a educação passada pelo programa Scholas Occurrentes pode mudar a vida dos jovens?
Acreditamos que a educação não passa só pelas quatros paredes de uma sala de aula, que a educação não tem que ver só com a Matemática, a História ou Línguas. A educação tem que ver com a experiência de vida de uns e de outros. Um grupo de jovens que têm trabalhado com a Scholas em Cascais deram agora o seu testemunho num encontro na Universidade Nova, em Carcavelos. Foram 20 jovens que contaram, perante o mundo académico e outras figuras, o que tem sido a sua vida e o que têm aprendido com o projeto Scholas. Isto é muito importante, porque estes jovens dizem não ter um lugar de permanência na sociedade e encontram na Scholas um espaço de partilha.

Digamos que Scholas é mais uma escola da vida onde se aprende com experiências e testemunhos...
Houve um jovem que contou perante os outros que um dia tentou pôr fim à vida. São situações muito concretas e fortes. A Scholas tenta adaptar a educação às necessidades dos jovens. E o que os jovens querem não são os títulos ou os cargos, o que eles mais querem é poder viver. Querem aprender a viver e pedem, aos gritos, para ser escutados.

O saber viver não é hoje ensinado nas famílias e nas escolas?
Não. Senão não tinha nascido a Scholas quase há 20 anos. Se fosse ensinado não teríamos hoje o mundo que temos nem a taxa de suicídio na adolescência mais elevada da história a nível mundial. Não é só em África que os jovens estão a matar-se, é também em países como o Japão e os EUA. Os jovens estão a matar-se e não estamos a ser realistas, estamos a ser hipócritas, porque estamos mais a olhar para os PIB e para os resultados do PISA do que a ouvi-los. Por isso, dizemos que há uma grande hipocrisia em todo o mundo sobre a educação.

Como pode mudar-se a situação?
Fazendo. Disse muito recentemente que esta situação não se muda nem com papéis nem com discursos, muda-se com trabalho. Muda-se trabalhando com os jovens, mão a mão, permitindo-lhes que partilhem as suas experiências, quer seja pela arte, pela música ou por outra atividade. Atrás de mim, nesta sala, está um espaço que reflete a forma como os jovens se têm expressado através da arte, comunicando o que sentem. O Papa Francisco já disse: há que associar aquilo que os jovens pensam ao que sentem, o que sentem ao que fazem, e o que fazem ao que pensam e sentem. E tudo isto tem de resultar em harmonia. Um jovem que não tenha harmonia vive num mundo de guerras e de violência. Não poderá haver harmonia no mundo se os jovens não viverem em harmonia.

Acredita que é possível alcançar essa harmonia através deste programa?
Viemos para Cascais para trabalhar com a juventude portuguesa, não só a de Cascais, mas a de todo o país. Viemos para mostrar que os jovens não são só o futuro em Portugal, viemos para mostrar que os jovens são o presente.

Isso foi o que o Papa disse ao mundo...
Sim, disse-o a partir da experiência da Scholas. Foram os jovens que participaram já na Scholas que disseram ao Papa que queriam ser ouvidos porque são o presente.

Que conselho pode dar a pais, a educadores, a familiares, a amigos e vizinhos de jovens tendo em conta a sociedade de hoje?
Que não olhem para as estatísticas para saber se eles estão a ir bem ou mal, que não olhem tanto para os rankings para saber se estão na escola ou no lugar certo, mas que comecem a olhar mais para eles, para os jovens. Que pensem em estar com eles, porque é muito fácil falar deles, mas é muito mais difícil escutá-los. É necessário, muito mais, pensar neles.

As redes sociais prejudicam as relações e a comunicação dos jovens de hoje?
No primeiro congresso da Scholas levámos influencers e dois youtubers, e eles próprios reconheceram que têm de assumir a responsabilidade que lhes toca, porque por detrás de tudo o que aparece nas redes sociais, de onde muitas vezes surge o bullying, a violência e outras coisas, há um aspeto muito importante - a ausência de adultos. O mundo educativo não está nas redes sociais, os pais não estão lá, os governos, exceto quando é para fazer marketing político, também não, mas os jovens sim. Estão lá todos os dias, muitas horas, e estão sós. E quando estão sós podem cair nas mãos de qualquer um que não tenha bons interesses para eles.

Anda pelo mundo inteiro, a Scholas tem projetos em muitos países. Esta realidade é transversal ou só afeta alguns?
A realidade que afeta os jovens tem que ver com as necessidades que eles têm. A Scholas tem projetos nos EUA, no Dubai, em Israel - aqui, realizámos já um encontro entre jovens israelitas e palestinianos, que foi bastante complexo de fazer. Temos um projeto mais recente em Moçambique, onde o Papa Francisco esteve durante a sua visita e se emocionou. Deram-lhe uma bola de trapos, era a que tinham, e ele disse: "Eu joguei com uma bola assim porque a minha família não tinha dinheiro." Há uma coisa que estamos a preparar já que é um encontro de jovens portugueses e moçambicanos para breve, aguardamos a autorização dos dois governos para se organizar esse encontro.

E os jovens moçambicanos virão a Portugal?
Vamos organizar uma agenda conjunta. O objetivo é fazer que jovens de Maputo e de Portugal se formem uns aos outros, através do seu testemunho, da sua experiência. Como o Papa diz: "Não há um que ensina o outro, os dois têm muito a aprender um com o outro." Este é o nosso objetivo: gerar uma cultura do encontro através da educação, porque há muitos líderes mundiais que promovem a educação com muros. Nós queremos promover uma educação de encontros e de pontes.

É possível encontrar a paz através da educação?
Estamos convencidos de que a paz é uma tarefa da educação. A educação é a única que pode desarmar as bombas.

A Scholas aposta muito em três áreas: música, desporto e tecnologia...
Apostamos muito na música. Em Portugal estamos a fazer um workshop nesta área e os jovens que participam é porque querem partilhar a vida e não propriamente para aprender a tocar guitarra ou outro instrumento. A Scholas não é uma academia, aqui, os jovens partilham as suas preocupações e os seus sonhos e é a partir daí que fazem música. Improvisam, pois todos somos instrumentos originais de uma grande orquestra, em que cada um é valorizado por si e não por ser melhor ou pior do que o outro, como se faz na educação tradicional. Aqui, um jovem não está a competir com outros, só consigo próprio, para conseguir retirar o melhor que há em si. Retirar o melhor de cada um. É uma orquestra mundial.

Mas há outras duas áreas importantes, desporto e tecnologia...
O desporto é muito importante. Acabo de entregar a Messi a Bola da Scholas, uma bola de trapos, feita por jovens de Moçambique. E ele, que já recebeu a Bola de Ouro e tantos outros prémios, disse-me que aquela iria guardá-la para os seus filhos e para a sua família. Isto é importante.

Porquê?
O Papa já disse que os jogadores de futebol não jogam apenas futebol. O que dizem e fazem também educa os jovens. Há jovens que dão muito mais importância ao que dizem Messi ou Cristiano Rolando ou Ronaldinho do que se calhar os pais. Temos uma artista que se juntou a nós e que deu um espetáculo na sexta-feira, Cuca Roseta.

Foi expulso várias vezes da escola e dos colégios por onde andou, o que o fez mudar de uma certa indisciplina para um projeto que ajuda jovens a aprender a viver?
Foi perceber que a educação imposta é uma educação que vem de cima para baixo e o que a Scholas propõe é uma educação de baixo para cima. A educação imposta é a autoridade - aquela em que o aluno não fala. A Scholas propõe ao aluno que fale, porque os outros calam-se para o poder escutar. A educação imposta define o conteúdo que se tem de aprender, a educação da Scholas tem como aprendizagem os problemas dos jovens, como devem ser abordados, discutidos e tratados. A educação imposta é dada nas aulas, e estas podem dividir os alunos pela cor, pela religião ou pelo dinheiro, por aquilo que os pais podem pagar. Na Scholas as aulas são para todos. Todos são iguais.

Conheceu o Papa Francisco muito antes de o ser, quando era só Jorge Bergoglio. Como é trabalhar com ele há tantos anos?
Comecei a trabalhar com Bergoglio quando ainda era arcebispo de Buenos Aires, na década de 1990. A nossa amizade formou-se e foi crescendo através do trabalho que fazíamos. Eu fui e continuo a ser um empregado dele, e creio que é o mais importante. Digo muitas vezes que muitos podem parecer obedientes, mas o que o Papa valoriza em mim é a fidelidade, não é a obediência. Não é a mesma coisa.

Este projeto foi criado pelo Papa em 2001, em Buenos Aires, para permitir que os jovens argentinos fossem ouvidos, falassem dos seus problemas. Agora, o projeto espalhou-se pelo mundo e é uma rede internacional. Que conselhos é que o Papa ainda lhe dá relativamente ao projeto?
O Papa continua a dedicar-se a este projeto. Ele mesmo o diz: "Estou comprometido com este projeto. Não dou somente a cara, estou comprometido com a minha cabeça, as minhas mãos e o meu coração. O meu ser está posto neste projeto." É um projeto que não está feito só para acolher católicos, mas para acolher jovens do mundo inteiro, sem divisões de culturas ou de religião. É para todos. Por isso, este projeto não é só deste Papa, é um trabalho que vem de antes, que está a ser feito durante e para ficar depois deste Papa.

A Scholas começou a funcionar em Portugal em março deste ano, que balanço faz?
É altamente positivo. Os jovens foram espetaculares na forma como receberam este projeto e como olham para ele. Aqui, juntam-se jovens de escolas públicas e privadas e é isso que nos agrada e que pensamos que pode ser multiplicador. Trabalhamos com jovens que já estão a chamar outros jovens e acreditamos que eles a partir daqui vão poder partilhar as suas experiências com outros jovens, não só de outras zonas do país, mas também de outros países, trazendo também destes sítios muitas experiências. Isto é fundamental e importante para a inclusão na educação, para a interação das relações.

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