Artigo 490.º do Código Penal marroquino: "São punidas com prisão de um mês a um ano todas as pessoas de sexo diferente que, não estando unidas pelos laços do casamento, tenham mantido relações sexuais." Foi com base neste, bem como nos artigos 449.º a 458.º, relativos à criminalização das mulheres que recorram ou tentem recorrer ao aborto, que a jornalista Hajar Raissouni foi condenada a um ano de prisão efetiva na segunda-feira. O processo causou uma onda de indignação além-fronteiras. O tema já era grave, com as liberdades e os direitos das mulheres marroquinas em jogo. Há quem garanta, porém, que o processo é sobretudo político e não tanto um ataque moralista numa sociedade patriarcal dominada pelo conservadorismo religioso..No dia 31 de agosto, seis polícias à paisana prenderam Hajar Raissouni à saída de uma clínica médica em Rabat. Além da jornalista de 28 anos foram detidos o seu noivo, Rifaat al-Amin, um professor sudanês; o ginecologista Jamal Belkeziz, um profissional com 40 anos de carreira e condecorado pelo rei; o seu anestesista e um administrativo. Raissouni queixou-se de que, após a detenção, foi forçada a realizar um exame ginecológico e nos dias seguintes foi interrogada sobre o seu trabalho..Durante o julgamento, o par explicou que se haviam casado numa cerimónia religiosa e que estavam a preparar os documentos para oficializar a ligação. Raissouni disse também que não fez aborto algum. O ginecologista, por sua vez, explicou que a paciente tinha sofrido uma hemorragia interna..O procurador Abdeslam al-Imani, em comunicado distribuído aos órgãos de comunicação, ao mesmo tempo que rejeitava quaisquer irregularidades, dava pormenores da intimidade e da ficha clínica de Raissouni, ao arrepio do direito à privacidade. E disse que o processo não estava relacionado com a profissão da arguida..Um mês depois, Hajar Raissouni e o noivo foram condenados a um ano de prisão efetiva. O ginecologista foi condenado a dois anos de prisão efetiva, enquanto os seus assistentes receberam penas suspensas de um ano de prisão - e todos ficaram proibidos de exercer durante dois anos. Os advogados da jornalista apelaram da sentença..Segundo organizações dos direitos das mulheres, como a Association Marocain de Lutte contre L'Avortemente Clandestin, realizam-se entre 600 e 800 abortos por dia em Marrocos, com os riscos inerentes. Segundo a Organização Mundial da Saúde, 13% da mortalidade materna naquele país deve-se à interrupção da gravidez..Em 2018, a justiça marroquina processou 14 503 pessoas por deboche (relações sexuais fora do casamento), 3048 por adultério, 170 por homossexualidade e 73 por aborto, segundo dados oficiais..O caso teve um mérito: levou ao debate sobre o aborto e que outras leis fossem contestadas e debatidas. Mais de 470 marroquinos assinaram o texto publicado em França - com honras de manchete no Le Monde - "Nós, cidadãs e cidadãos marroquinos declaramos estar fora-da-lei". Escrito pela premiada romancista Leila Slimani e pela realizadora Sonia Terrab, afirma: "Estamos a violar leis injustas e obsoletas que já não têm qualquer razão de existir. Fizemos sexo fora do casamento. Fomos submetidas, realizámos ou fomos cúmplices de um aborto. Aprendemos a simular, a fazer de conta, a fingir. Por quanto tempo mais? "No preâmbulo, além do exemplo de Hajar Raissouni, fala-se do processo de adultério movido à atriz Najat El Ouafi (entretanto arquivado) e de uma sueca e do seu amante marroquino presos também pelo mesmo crime..Como a maior parte dos países de maioria muçulmana, as fronteiras entre justiça e religião são porosas. O regime monárquico encabeçado por Mohamed VI instaurou uma reforma em 2004 com o objetivo de proteger as mulheres e as crianças. Esse código, Moudawana, garante a proteção das mulheres contra todo o tipo de violência - apesar de só em 2014 ter acabado com a possibilidade de os violadores poderem casar-se com as suas vítimas; e continua a menorizar a mulher na questão dos direitos hereditários.."As leis também dão ao Estado uma ferramenta para interferir na vida íntima das pessoas como um meio de dominação e intimidação. É por isso que as autoridades marroquinas não têm tido pressa em livrar-se delas", comenta a escritora Ursula Lindsey no The New York Times ..E neste caso, a finalidade, apontam os defensores da jornalista, será atingir o jornal para o qual trabalha e a sua família. A própria diz que é um "processo político"..O seu primo Youssef é secretário-geral da Associação Marroquina de Direitos Humanos, a maior ONG de direitos humanos do país. Um dos seus tios, Ahmed Raissouni, foi líder de um partido islamista e preside a União Internacional dos Estudiosos Muçulmanos, com sede no Qatar. O outro tio, Suleiman, é o editor-chefe do jornal Akhbar Al Yaoum - onde trabalha Hajar Raissouni - e é conhecido pelos textos de opinião críticos ao regime..O periódico cobriu o julgamento aos líderes do Hirak Rif, um movimento de revolta popular que nasceu em 2016 de um caso de violência policial. Os líderes do movimento foram condenados a penas de 20 anos de prisão. Outro jornalista, Hamid El Mahdaoui, que cobriu os protestos na região do Rif, foi condenado em abril passado a três anos de prisão por não ter denunciado um crime contra a segurança do Estado.