"Nunca pensei ficar em estado grave". São jovens e saudáveis, mas a covid levou-os para os intensivos

Bruno Lopes, 35 anos, esteve 20 dias acordado no serviço de cuidados intensivos do São João. Ana Patrícia Duarte, 30 anos, esteve 15 dias, mas em coma. Não sabem explicar como lá foram parar, sabem apenas que ter doença crítica não é um exclusivo da população de risco.
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"Não acontece só aos outros e só aos mais velhos." Bruno Lopes sabia que a covid podia bater-lhe à porta, mas pensou que a máscara na rua, o desinfetante, o distanciamento físico seriam mais para proteger os pais e os sogros do que a si. Até que se viu deitado na cama de uma unidade de cuidados intensivos, sem uma razão clara. Tem 35 anos e esteve 20 dias acordado na ala dedicada a doentes críticos com covid-19 do Hospital de São João, no Porto. "Nunca pensei que ficaria em estado grave", admite.

Sem certezas sobre onde terá contraído o vírus, uma vez que não conhecia ninguém positivo confirmado, acha que terá sido durante uma ida ao supermercado. Era praticamente o único lugar onde ia e se encontrava com outras pessoas. Não via os pais e os sogros, sem ser a partir de um muro alto que marca a diferença entre a sua moradia e a rua e não tinha estado com amigos. No trabalho, tinha praticamente a empresa para si; é segurança de uma fábrica que esteve em lay-off e onde fazia turnos de noite e de madrugada. Por isso, quando lhe começou a doer a cabeça, atribuiu o sintoma ao cansaço, à luz da manhã a bater nos olhos que se habituaram ao escuro da noite.

Isto aconteceu em maio. Passaram-se dois dias, mas a dor de cabeça manteve-se. Ao terceiro estava de folga, acordou durante a noite a suar. Foi até à cozinha, mediu a temperatura. O termómetro marcou 38º. Tomou um ben-u-ron e dormiu o resto da noite.

Na manhã seguinte já tinha tosse compulsiva e expetoração com sangue, por isso telefonou para a linha SNS 24, onde o aconselharam a ir às urgências. Dirigiu-se para o Hospital de Santo Tirso, o mais próximo da sua casa. Acusou positivo no teste de rasteio à covid e a partir daí foi uma escalada. Só voltaria a casa dois meses depois. Ainda passou essa noite no Hospital de Santo Tirso a receber oxigénio, mas no dia seguinte foi transferido para a enfermaria covid de Famalicão, depois para os cuidados intermédios e depois para os intensivos do Hospital de São João, no Porto, o maior do norte. A febre não baixava e as dificuldades respiratórias foram-se tornando mais graves.

"Ao início até parecia que ia passar, mas depois chegou a noite. E vi-me negro para passar a noite. No dia a seguir fui para os cuidados intensivos", conta Bruno Lopes.

Nunca chegou a perder os sentidos e escolheu não ser intubado pela traqueia perante a opção de poder ser ligado ao ECMO (oxigenação por membrana extracorporal), uma máquina que aspira o sangue e o oxigena para depois devolver ao organismo, através de um tubo na virilha. "Estive sempre acordado, os 20 dias que lá estive", recorda.

As dores e os tubos não lhe permitiam mais do que conversar um pouco com os profissionais de saúde e fazer, de vez em quando, umas videochamadas para casa, para ver a mulher e a filha de 4 anos e com o polegar para cima mostrar-lhes que estava bem. Depois começaram a insistir para que se sentasse na cadeira ao lado da cama e que fizesse fisioterapia com uma pedaleira de mão. E ele tentava corresponder enquanto "via os outros a deteriorarem-se". "Cada dia que passava as coisas só pioravam. Eu olhava para as outras pessoas, deitadas na cama, todas cheias de tubos, sem se mexerem, com as máquinas a apitarem. Eu não queria ficar assim", diz.

"Ia passando o tempo. De noite custava a dormir, porque as luzes nunca se apagam. Eles só diminuíam por minha causa. Foram 20 dias lá dentro."

Citaçãocitacao"Eu não a conheço, só lhe vi os olhos, mas aquela pessoa foi o mais próximo de família que tive ali."

Vinte dias em que Bruno só podia contar com os enfermeiros e médicos que pairavam à sua volta e a quem só tem agradecimentos a fazer. Lembra-se de Melanie, uma enfermeira, que foi a pessoa que o levou para os intensivos e que o acompanhou nos primeiros dias. "Eu não a conheço, só lhe vi os olhos, mas aquela pessoa foi o mais próximo de família que tive ali, porque ela me disse que isto ia passar. Ela deu-me o apoio de que eu precisava quando eu mais precisei."

Esteve a seu lado no momento mais vulnerável, "porque quando uma pessoa vai para lá já não sabe se vem", explica. "Eu pensei que já não me vinha embora."

Bruno começou a recuperar, apesar de continuar a não aguentar "uma caminhada de 15 metros"; passaram-no para os cuidados intermédios, depois novamente para uma enfermaria em Famalicão. Voltou para casa em junho e no mês seguinte, no dia 17, regressou ao trabalho, depois da fisioterapia. "Sinto-me bem", diz. Em princípio conseguirá recuperar a 100%, mas continua a ser acompanhado. Dia 27 tem marcada uma prova de esforço no São João.

Continua sem saber o que o levou aos cuidados intensivos. Tem excesso de peso, mas os médicos não atribuíram a esse fator a razão para ter tido doença grave. Não é comum que sejam os mais jovens a ir parar aos cuidados intensivos, mas a história de Bruno não é um caso isolado. O São João tem duas salas dedicadas aos intensivos com covid e quando Bruno lá esteve "havia duas pessoas com mais de 60, mas o resto rondava os 30 e os 40 anos", recorda.

Ana Patrícia Duarte pode muito bem ter sido uma das pessoas que Bruno encontrou acamadas. O internamento dos dois coincide no tempo e no espaço. A enfermeira do Hospital de Aveiro tem 30 anos e esteve nos cuidados intensivos do São João, em maio, sem saber também como é que lá foi parar. No seu caso, nem da ida se lembra, porque, ao contrário de Bruno, já chegou em coma.

"Foi tudo muito, muito rápido. Forte e rápido", diz. Familiarizada com os sintomas por causa profissão, a única coisa que fez soar campainhas na sua cabeça foi a tosse persistente durante três dias e, por isso, ligou para a linha SNS 24. Pediram-lhe para ir às urgências do Hospital de Santo António, no Porto: "Entrei pelo meu pé às 10.00, comecei a ficar muito cansada e com falta de ar, fizeram-me logo o teste [PCR], análises, raio-X. Por volta das 18.00 ligaram aos meus pais a dizer que tinha de ficar internada na infecciologia, mas nem sequer cheguei a ir. Fui logo para os intensivos, cheguei em coma, intubaram-me e ligaram-me a um ventilador."

Acordou 15 dias depois, já no São João. "Acordei ventilada pela traqueia, com sonda, não tinha força nenhuma no corpo, ainda tinha o ECMO ligado à perna. Aqueles primeiros dias achei mesmo... achei mesmo que não ia recuperar", confessa. "Pensei que ia ficar naquele estado para sempre, ainda para mais com o conhecimento que tenho dos meus doentes."

Citaçãocitacao"Qualquer um de nós pode ir parar aos cuidados intensivos, apesar de não ser doente de risco."

O primeiro teste negativo foi a 25 de maio, mas só voltou a casa no dia 19 de junho. Ainda foi para a enfermaria do Santo António e esteve, duas semanas, no Centro de Reabilitação do Norte, em Vila Nova de Gaia. Não demorou até regressar ao trabalho, tal era a vontade de ajudar os colegas com os doentes que continuam a chegar aos serviços de saúde. Agora, está no serviço de medicina covid, onde as pessoas "estão estáveis", mas tem uma ideia muito clara de que "qualquer um de nós pode ir parar aos cuidados intensivos, apesar de não ser doente de risco. Temos de ter cada vez mais cuidado com o nosso dia-a-dia".

Ana Patrícia não sabe ao certo onde contraiu o vírus, pode ter sido no trabalho ou em casa. Houve mais pessoas infetadas na família, mas no lar onde estava a fazer turnos - depois de ter respondido ao pedido de enfermeiros da Cruz Vermelha - também houve um surto.

A faixa etária dos 20 aos 29 anos é a que reúne o maior número de casos de covid-19 em Portugal, desde o início da pandemia. Seguida da dos 40 aos 49 e da dos 30 aos 39 anos. Em geral, os mais jovens têm doença menos grave ou nem sequer apresentam sintomas, mas isto não quer dizer que não possam ficar em estado grave ou transmitir a doença a quem possa ficar em estado grave: os mais velhos.

"O número de pessoas a recorrer à urgência e até a ser internadas nesta fase inicial da segunda onda são mais jovens do que na primavera", assume Jorge Artur Paiva, o diretor do Serviço de Medicina Intensiva do Hospital de São ​​​​​​​João, no Porto, e responsável pelo Programa para a Prevenção e Controlo de Infeções da Direção-Geral da Saúde. E, apesar de confirmar que nos cuidados intensivos recebem pessoas mais velhas, diz que há uma "latitude muito grande" de idades.

"Apesar de a transmissão se ter iniciado com pessoas mais jovens, porque se baseava até em agrupamentos relacionados com atividades de férias e até de recomeço de aulas, é uma questão de tempo até chegar aos mais velhos, uma vez que há transmissão comunitária", prevê Jorge Artur Paiva.

Portugal registou, nesta quinta-feira, o dia com mais internamentos por covid, desde o início da pandemia. Estão hospitalizadas 1365 ​​​​pessoas (mais 93 do que no dia anterior), 200 destas encontram-se nos cuidados intensivos (mais 13), segundo o boletim epidemiológico da Direção-Geral da Saúde (DGS). O documento mostra ainda que o país voltou a bater um recorde de novos casos em 24 horas. Foram confirmadas mais 3270 infeções e 16 vítimas mortais por causa da pandemia de covid-19.

Em casa de Bruno Lopes, a consciência sobre a gravidade de doença funcionou ao contrário. Foi o filho que abriu os olhos aos pais. O pai, 60 anos, é jardineiro e, quando a pandemia começou a acelerar, quis continuar a trabalhar. "Estava sempre a chateá-lo para não ir, mas ele só percebeu realmente quando eu fui parar ao hospital. Isto não é nenhuma constipaçãozinha. Para alguns pode ser, mas não é para todos", explica.

Lá em casa, nem a mulher nem a filha acusaram algum sintoma de covid, mas, mesmo que tivessem acusado, "o medo é o mesmo" e esse continua ativo. Evitam sair à rua, se for desnecessário, e uma vez lá fora usam sempre máscara. "Quando vou à cidade e vejo pessoas mais velhas de máscara no braço fico chateado. Não custa nada. Tem mesmo de ser."

"No outro dia, fui dar uma volta e vi as esplanadas cheias de gente e ninguém com máscara. Depois de apanhar o bicho penso: se estas pessoas levarem isto para casa e pegarem à família, se calhar alguém morre. Aí é que alguns vão ficar com um trauma: até podem não morrer, mas podem pegar a uma pessoa de quem gostam e esta morrer por causa disto. Não há pior."

Bruno Lopes e Ana Patrícia Duarte sabem que custa não sair de casa, mas pedem: "tentem pensar nos outros".

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