Novas negociações de paz após denúncia de que Rússia quer dividir a Ucrânia

Kiev alega que Moscovo, depois de não conseguir conquistar a capital ucraniana, tem um plano que passa por criar na Ucrânia versões da Coreia do Norte e Coreia do Sul. Líder da autoproclamada república de Luhansk quer um referendo para aderir à Federação Russa.
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Os negociadores ucranianos e russos vão voltar a sentar-se esta semana à mesma mesa, depois de uma série de contactos por videoconferência não terem atingido os objetivos. Segundo Kiev, as negociações começam já hoje na Turquia, mas Moscovo diz que só começam amanhã, sem revelar onde. O novo diálogo surge numa altura em que a Rússia terá mudado de estratégia na guerra da Ucrânia, alegando que se quer focar no objetivo de libertação do Donbass. Os ucranianos desconfiam, alegando que o presidente russo, Vladimir Putin, está a tentar dividir a Ucrânia ao meio, imitando o que se passou na Península Coreana.

"Há razões para acreditar que ele poderá querer impor uma linha de separação entre as regiões ocupadas e não ocupadas do nosso país. De facto, será uma tentativa de criar uma Coreia do Sul e uma Coreia do Norte na Ucrânia", disse num comunicado divulgado nas redes sociais o líder da secreta militar ucraniana, Kyrylo Budanov. Este responsável, que já em novembro alertava para a invasão russa (que só se concretizou a 24 de fevereiro), prevê agora uma campanha "total de guerrilha" ucraniana para evitar esse desfecho.

Segundo Budanov, a alteração da estratégia russa surge após as forças de Moscovo não terem conseguido capturar Kiev e removido o governo ucraniano. As duas Coreias ainda estão tecnicamente em guerra, 70 anos depois do conflito de 1950-1953 ter terminado na assinatura de um armistício e ter resultado na criação da Zona Desmilitarizada entre ambas - uma faixa de quatro quilómetros de largura e 248 quilómetros de comprimento.

A acusação de que os russos podem estar a planear dividir a Ucrânia surge no mesmo dia em que o líder da autoproclamada República Popular de Luhansk disse que poderá realizar um referendo para se tornar parte da Rússia. "Acho que num futuro próximo um referendo será realizado no território da república, durante o qual as pessoas vão expressar as suas opiniões sobre aderir à Federação Russa", disse Leonid Pasechnik, citado pelas agências russas. "Tenho a certeza que será esse o caso", referiu. A 21 de fevereiro, três dias antes de invadir a Ucrânia, Putin reconheceu a independência de Luhansk e de Donetsk, controlada pelos separatistas pró-russos.

Kiev já reagiu a esta ideia, com uma declaração do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros. "Falsos referendos nas zonas ocupadas da Ucrânia são nulos e sem efeito. Nenhum país do mundo irá alguma vez reconhecer a mudança pela força das fronteiras internacionalmente reconhecidas da Ucrânia", escreveu Oleg Nikolenko no Twitter. "Em vez disso, a Rússia irá enfrentar uma ainda mais forte resposta internacional, aprofundando mais o seu isolamento", acrescentou.

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Após um dia de aparente calma, as sirenes voltaram a soar em várias cidades do país já durante a noite, e os mísseis a cair em Lutsk e Kiev. A Ucrânia anunciou entretanto uma nova ronda de negociações de paz. O negociador ucraniano, David Arakhamia, disse que os encontros seriam entre 28 e 30 de março, na Turquia - foi em Antalya que se reuniram os chefes da diplomacia dos dois países, no dia 10, pela primeira vez desde a invasão. O principal negociador russo, Vladimir Medinsky, confirmou o diálogo, mas deu um calendário diferente, alegando que só começa na terça-feira, e não revelou o local.

Numa primeira entrevista a órgãos de comunicação independentes russos, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, admitiu ontem que a exigência de Moscovo referente à neutralidade da Ucrânia está a ser analisada. "Esse ponto das negociações é compreensível para mim e está a ser discutido, está a ser cuidadosamente estudado", afirmou aos jornalistas. Da mesma maneira, num discurso que tem os russos como alvo, terá rejeitado a ideia de recuperar o território ocupado pelos separatistas no leste de Donbass, dizendo querer um "compromisso".

Na entrevista por videoconferência, Zelensky acusou também Putin de arrastar as negociações para prolongar o conflito. "Temos que chegar a um acordo com o presidente russo. Mas para chegar a um acordo ele tem que se levantar de onde está e vir encontrar-se comigo", disse aos jornalistas. As autoridades russas alertaram os media contra a divulgação da entrevista de Zelensky, ameaçando com eventuais investigações e ações.

A visita a Varsóvia do presidente dos EUA, Joe Biden, ficou marcada por duas declarações sobre Putin. Numa, quando visitava refugiados, apelidou-o de "carniceiro". Noutra, no seu longo discurso, quando pareceu sair do guião e cometer mais uma das suas famosas gaffes ao dizer: "Por amor de Deus, este homem não pode continuar no poder." Ambas as declarações receberam pronta resposta e foram criticadas pelo Kremlin, mas não só.

O presidente francês, Emmanuel Macron, alertou ontem contra uma escalada "em palavras e ação" no conflito. Numa entrevista ao canal France 3, Macron disse acreditar que a sua tarefa é "alcançar primeiro um cessar-fogo e depois a retirada total das tropas por meios diplomáticos". E acrescentou que se esse é o plano, "não podemos escalar seja com palavras ou ações". Quando questionado sobre as palavras de Biden, respondeu. "Eu não usaria esse tipo de linguagem porque continuo a falar com o presidente Putin".

No rescaldo das declarações de Biden, também o chefe da diplomacia norte-americano, Antony Blinken, veio reafirmar que o presidente não defende uma mudança de regime na Rússia, seguindo o exemplo do que fez ainda no sábado a Casa Branca. "Tal como nos ouviram dizer repetidamente, não temos uma estratégia para uma mudança de regime na Rússia ou em qualquer outro país, já agora", disse Blinken, que está numa viagem oficial a Israel. "Em qualquer caso, cabe aos povos do país em questão. Cabe aos russos", afirmou. Uma mensagem repetida por outros responsáveis, numa tentativa de procurar conter o problema.

susana.f.salvador@dn.pt

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