No rescaldo do incêndio que destruiu horas antes parte da Catedral de Notre-Dame, em Paris, era impossível evitar a tragédia na entrevista que o intelectual francês, ativista político e social e filósofo, Bernard-Henri Lévy, deu ontem ao DN no Teatro Tivoli, em Lisboa..Cidade a que regressará no dia 6 de maio para subir ao palco e apresentar a peça À Procura da Europa, uma hora e meia de um monólogo em que apela ao voto nas eleições europeias para evitar que os políticos populistas obtenham vitórias. A peça já percorreu parte das capitais europeias e a digressão de Bernard-Henri Lévy terminará em Paris..A capital portuguesa é, no entanto, o palco que mais o atrai devido às memórias que tem da Revolução de Abril e ao modo como vê o relacionamento nacional com a União Europeia. Revela que irá fazer um vídeo especial para os jovens portugueses, com quem conta debater a situação europeia. E refere que está sempre em contacto com portugueses: "Os meus netos são portugueses, pois a minha filha casou-se com um português.".É impossível fugir à tragédia que aconteceu na Catedral de Notre-Dame. Diz respeito apenas à França ou é também uma perda europeia?.As duas situações, porque a Notre-Dame de Paris foi construída numa época em que, bizarramente, a Europa era mais viva do que a própria França, numa era da verdadeira Europa das catedrais. Portanto, foi uma parte da cultura europeia que se esfumou neste incêndio. Mas a cadeia de solidariedade verificada no mundo inteiro em redor da França prova que esse sentimento é partilhado. E há hoje italianos, portugueses e americanos, entre outros, que se consideram franceses e que [dizem que] Notre-Dame fazia parte deles também..Um desastre que não podia ser evitado?.É um desastre porque é uma perda irreparável. Mesmo que vá ser reconstruída da forma possível, nunca será reconstituída mas apenas substituída. Os telhados de madeira do século XII ou XIII poderão ser copiados, mas nunca se recuperará o sopro da matéria, a memória dos séculos ou o grão do pó de outros tempos. Tudo o que foi a obra da inteligência de um povo ao longo dos séculos perdeu-se, e creio que para todos os parisienses essa noite foi um momento de grande inquietação. E posso dizê-lo porque também não dormi, mantive-me acordado até saber que o fogo tinha sido dado como terminado e que as perdas não eram totais. Para os parisienses, era um pouco do seu coração e alma que ardia naquelas chamas..O presidente Macron prometeu a reconstrução imediata. Esta promessa é mais eleitoral do que outra coisa?.Creio que é uma promessa verdadeira. Macron tem defeitos - e qualidades -, mas tem o sentido da história de França..Vem a Portugal apresentar uma peça a 6 de maio. Lisboa já não é a cidade de um país que fornecia porteiras e trabalhadores para Paris, mas uma peça importante no tabuleiro europeu?.Claro, e nunca olhei para Lisboa como um lugar que enviava porteiras e trabalhadores. Para mim, é uma cidade heroica, de grandes homens e mulheres que fizeram a única revolução vencedora no século XX. Essa é a minha imagem de Lisboa, que tenho desde há muitos anos. É um lugar do mundo de onde o ideal revolucionário se espalhou por todo o lado em que havia ditaduras, um novo regime democrático. Tenho na minha memória homens admiráveis, de grande sangue-frio, sabedoria e inteligência política extraordinária que fizeram cair uma ditadura sem violência e, principalmente, sem se tornarem novos ditadores. Isso não se vê no Ocidente, ou no resto do mundo. Essa é a imagem que tenho de Lisboa..Temos uma solução governativa de esquerda muito diferente das da Europa. Essa coligação também deveria inspirar a Europa?.O que deveria inspirar a Europa não é isso. Diria que o país é um exemplo que pode inspirar, mas o mais importante é ver que Portugal tem a parte feliz da Europa. Os portugueses vivem sob uma identidade europeia com felicidade e não desespero. Os portugueses vivem uma dupla realidade, a de pertencerem a Portugal e à Europa, da nação e ao supranacional, sem estarem em contradição. Portanto, aqui não há populistas nem de extrema-esquerda nem de extrema-direita..Sente-se bem por cá?.Cheguei nesta manhã [ontem] de Berlim e vinha com uma mistura de sentimentos complicada: triste por causa de Notre-Dame de Paris e muito feliz por estar nesta capital. Um país onde eu não ouço falar de populismo, de Le Pen, de Salvini ou de Orbán, de tudo isso com que convivo há tanto tempo. Essa é a razão do tema de que vou falar aqui no Tivoli, pois será provavelmente a única sessão da minha peça em que se poderá ouvir um sopro de esperança. Só neste palco é que falarei dessas personagens que são um pesadelo, mas estarei num lugar onde há uma Europa que funciona e um Portugal que é uma exceção..Vai ser uma sessão fora do normal?.Sim, será a ultima das sessões desta digressão, pois não conto com a que acontecerá em Paris. E é bom pois creio que Portugal é a solução dos problemas com que tenho convivido nas sessões anteriores..Londres esteve logo no início desta digressão. É o pior pesadelo da Europa?.Sim, porque está lá tudo. As mentiras e a cegueira de um povo mal guiado, a disfunção da democracia ou a confusão entre democracia e plebiscito..Disse que o Brexit não acontecerá. Mantém essa opinião?.Tenho sempre essa esperança. A acontecer, tenho a certeza de que farão mal..Esperava por esta teimosia de Theresa May?.Há uma total confusão de convicções, ambições e interesses pessoais... O que acho que é verdade é que mentiram aos ingleses e que por isso o povo ainda não compreendeu que o Brexit é uma catástrofe..Esta peça é um corte na sua forma de atuar na vida pública?.Sim, mas também uma continuidade. Sou fiel às minhas ideias e constante com os outros. Esta peça retoma as minhas preocupações de sempre e que neste momento da minha vida são muito importantes. Quero analisar a Europa..A peça tem mais de uma hora e meia de monólogo. Como o faz se não é um ator?.Há uma coisa que substitui a prática do ator: a sinceridade e a verdade. Dizer o que se pensa e viver é também o trabalho de um ator e há um grande escritor francês, Antonin Artaud, que dizia que no teatro não era preciso representar mas ser. E eu acredito nisso. É uma representação diferente a cada noite, que segue uma matriz e um troço comum apesar das diferenças. Em Lisboa, espero que além dessa noite haja um grupo de jovens que queira debater o tema e prosseguir a conversa. Até posso ficar dois dias em Lisboa, de modo que se pegue o touro pelos cornos e falemos das questões do texto..Acha que os jovens ainda se interessam por política?.Sim, até porque se não estiverem interessados será a política que se interessará por eles, e da pior maneira: através de uma ditadura. É muito perigoso o desinteresse pela política..Portugal é uma peça soft no problema europeu. Vai ser uma atuação mais fácil a de Lisboa?.Creio que sim, e ainda bem, porque acredito que essa sessão será daquelas em que sairei do palco mais feliz. É o reencontro com europeus felizes e um público que não é o problema mas a solução..Tem feito bastantes críticas a Steve Bannon e acusa-o de ser um dos criadores de uma nova ordem internacional de extrema-direita na Europa. O que espera desta eleição?.Espero que ele seja vencido na sua campanha e que as suas ideias não passem de minoritárias. Ninguém pode impedir a sua presença em democracia, mas é preciso que seja derrotado..Bannon não é um inimigo muito claro?.Ele não é um inimigo, antes um adversário - eu não tenho inimigos - que pensa que a União Europeia é um erro, que Putin tem muita influência no seu pais, que a Europa não deve ter imigrantes, e tudo isso é contrário ao que eu penso..Está numa cruzada contra Trump?.Não, Trump foi uma má solução para a América e para o resto do mundo, fundamentalmente contra a Europa, mas apoio todos os americanos que não desejam que ele se perpetue..Os populismos europeus estão em crescimento. O que acontecerá com eles?.Eles vão instalar-se, mas um dia desaparecerão. É um acontecimento singular, importante e durável, mas não será eterno. É mais uma batalha política para a Europa..Considera que existe uma vaga populista nestas vésperas das eleições. Qual será a dimensão nas urnas?.Não acredito que vençam. Até posso dizer que antes de começar esta digressão não o sabia, mas ao longo dela reencontrei tantos entusiastas europeus, que só precisam de um sinal para se mexerem, que estou mais otimista..Diz que a Europa está em perigo. Quase parece que está a fazer uma peregrinação religiosa pelas suas capitais?.Não é religiosa, nem estou numa cruzada, é uma atitude política e intelectual. Neste texto que represento falo de Dante, de Erasmo, de Fernando Pessoa, de José Saramago, de Lobo Antunes. É literatura e não religião..Tem o apoio de mais de duas dezenas de escritores a propósito desta peça. Isso foi importante?.Bastante, porque estar só é o pior que há. Os 22 escritores que se juntaram são os homens e mulheres que mais admiro no mundo, e estarem comigo desde o princípio desta aventura é ótimo..Iniciou muitas batalhas. Esta contra o populismo é mais uma?.Sim, é uma batalha, porque eu bati-me pelos bósnios, pelos curdos e agora pelos europeus que querem quebrar o populismo. É sempre pelo mesmo que me bato: os valores de liberdade e da fraternidade..O que os europeus mais receiam não é a perda de soberania?.Enganam-se quando pensam assim e perdem a força da Europa. O ditado diz que a união faz a força e temos exemplos de como foi importante contra vários impérios que ruíram, persa, otomano, porque se lhes fez frente de forma unida..O que não se vê, por exemplo, no entendimento entre Macron ou Angela Merkel..O importante não é que eles se compreendam, mas que os povos de Lisboa e de Paris se entendam. O importante é que quando Lobo Antunes vai a Paris cria um caos, tantos são os seus admiradores, e que quando eu estiver em Lisboa a sala do Tivoli esteja cheia. É a ponte entre os dois povos que interessa. O importante é defender a Europa..O seu próximo desafio será o de salvar a França?.O meu próximo desafio é fazer que as pessoas votem e deixem os populistas em minoria. Creio que os problemas da França e de outros países tem a sua solução na Europa..De todas as sessões que já fez, qual é que o surpreendeu mais?.A próxima..À Procura da Europa.Bernard-Henri Lévy.Teatro Tivoli, Lisboa.6 de maio