Fazer um documentário sobre Michelle Obama não se poderia limitar a uma conversa diante da câmara, uma chávena de chá e um álbum de fotografias. A descontração e espírito aberto da ex-primeira-dama dos Estados Unidos simplesmente não combina com grandes formalidades - ainda que ao lado do marido, enquanto Presidente, ela tenha experimentado todos os ambientes formais. A mulher no centro de Becoming: A Minha História (Netflix), de Nadia Hallgren, é fonte de inspiração para plateias gigantescas, como se vê pelas imagens da digressão do seu livro de memórias que o documentário acompanha, mas são sobretudo os jovens que veem nela a mensagem de esperança fundamental para se manterem resistentes face à realidade da América trumpista..Becoming parte do contexto dessa digressão, como se seguisse os passos de uma rock star nos bastidores, e conta a história de Michelle Obama através de excertos das entrevistas que tiveram lugar em várias cidades, conduzidas por personalidades como Oprah Winfrey, Gayle King, Reese Witherspoon ou Stephen Colbert. Aí dá-se a conhecer a criança que cresceu num bairro de Chicago, no seio da classe trabalhadora, a aluna do quadro de honra e a jovem que mostrou desejo de ir estudar para a Universidade de Princeton, sendo desencorajada pela própria orientadora vocacional que declarou, nestes termos: "Não me pareces material de Princeton"... Escusado será dizer que este episódio não a demoveu. Foi ali mesmo que ela se formou, seguiu depois para Harvard e começou a exercer advocacia. Por outras palavras: bofetada de luva branca..Vale a pena lembrar que a narrativa de Michelle é também "a" narrativa afro-americana na qual muitos se reveem. O documentário aponta para essa especificidade que moldou a sua experiência enquanto primeira-dama, e o antes e depois, desde logo evocando-se o comportamento perverso da imprensa durante a primeira campanha presidencial de Barack Obama, em que a postura dela foi alvo constante de escrutínio maledicente. Ele, Barack, dá aqui o ar de sua graça mas apenas para oferecer um ramo de flores à mulher numa das entrevistas em que ela descreve o primeiro telefonema dos dois ou fala do primeiro encontro. Se dúvidas houvesse, o momento agora é dela..Além da tour, a câmara de Nadia Hallgren segue as iniciativas ligadas ao livro (Becoming está editado em Portugal pela Objectiva) que envolvem clubes de leitura e conversas com jovens. Este é o principal foco de Michelle Obama, que tem grandes expectativas nessa juventude e se mostra genuinamente interessada nas suas histórias, incentivando a que cada um procure dentro de si o que o tornará "visível" na sociedade. Ainda que possa parecer, não se trata de um simples conselho com pancadinha nas costas, mas de uma verdadeira atitude inspiradora, um olhar de confiança que vale ouro para uma geração apreensiva com a atual conjuntura política americana..Os olhos são a chave. Michelle faz questão de sublinhar a importância de se olhar nos olhos das pessoas. E essa atenção pelos outros - que não é vã nem se confunde com estratégia de imagem pública - é particularmente notória quando vemos a chefe de gabinete, o guarda-costas e a estilista pessoal serem destacados no documentário como figuras essenciais no seu quotidiano e, acima de tudo, como amigos. A informalidade dela, o jeito para quebrar a etiqueta é o coração e dinâmica de Becoming. Talvez mais do que um filme centrado em Michelle Obama este seja um apelo à América "decente", palavra de peso no discurso da anfitriã.