Uma mulher de camisa branca meio aberta e saia lápis vermelha a olhar, provocadora, o bem-vindo intruso do outro lado da vidraça da porta, enquanto a brisa de uma noite cálida sacode a coleção de espanta-espíritos no alpendre da casa. Esta é a imagem eterna de Kathleen Turner em Body Heat, o filme que a revelou - e de que maneira - no grande ecrã, chegando às salas americanas no dia 28 de agosto de 1981..Era na altura uma femme fatale esguia, de pernas longas e voz levemente rouca que lembrava as lendárias atrizes sedutoras dos anos 1940/50, em particular Lauren Bacall, a referência maior do realizador Lawrence Kasdan para a criação desta personagem: Matty Walker. Se dúvidas houvesse sobre a escolha acertada, quando a própria Bacall se cruzou com Turner numa festa, não deixou de lhe dizer: "És uma versão jovem de mim." A bênção estava dada..Kasdan, que também se estreava na realização, depois de assinar os argumentos de dois robustos sucessos de bilheteira - Star Wars: O Império Contra-Ataca (1980) e Os Salteadores da Arca Perdida (1981) -, mergulhou na essência do film noir para dar intriga a este corpo feminino. Com o título português Noites Escaldantes, o filme inspira-se numa das obras-primas do género, Pagos a Dobrar (1944), de Billy Wilder (com Barbara Stanwyck e Fred MacMurray), mas combina esse sabor a clássico com uma moderna e franca sugestão erótica, que o colocou no panorama como uma pedrada no charco. Ou simplesmente um impressionante "primeiro filme"..DestaquedestaqueSonho vaporoso com brisa noturna e sem ar condicionado, Body Heat será sempre o filme que estabeleceu Kathleen Turner como uma das atrizes mais sexy da sua geração..Tudo acontece numa pequena cidade do estado norte-americano da Florida. "É um verão quente", dizia o cartaz original. "À medida que a temperatura sobe, o suspense começa", acrescentava-se em linguagem publicitária. O protagonista masculino, Ned Racine (William Hurt), é um advogado algo ingénuo no exercício da sua profissão, mas sempre pronto para encontros casuais. Quando vê Matty Walker (Turner), vestida de branco, a atravessar o corredor central de uma plateia ao ar livre, como se fosse na sua direção, aparentemente sem o ver, o destino fica marcado: ela aparece, qual miragem estimulante, sublinha que é uma mulher casada, desaparece, e depois fá-lo segui-la até casa, onde finge que, afinal, não quer a sua presença... Estamos já na referida cena ao som dos espanta-espíritos, em que ele, movido pelo desejo ardente, pega numa cadeira e parte a portada de vidro para atravessar a entrada e perder-se no corpo dela..Depois disto vem o "espontâneo" plano elaborado a dois para assassinar o marido rico e ficar com a fortuna - sem que Ned/Hurt se dê conta que continua a seguir metaforicamente atrás do carro dela, até ao destino que convém a esta mulher. Kasdan parece levar à letra a definição da crítica de cinema Molly Haskell, que diz que a femme fatale americana é uma figura ligada às "forças verdes do capitalismo." Matty/Kathleen Turner encarna essa ideia, usando a sexualidade como arma..Ventoinhas ligadas, camisas suadas, banheiras com cubos de gelo dentro, cigarros acesos, a pele húmida dos corpos nus deitados após o ato adúltero são motivos recorrentes em Noites Escaldantes, um dos melhores filmes também nesta arte de simular uma condição climática. Logo na primeira cena, as chamas de um incêndio que Ned vê ao longe, a partir da janela do quarto, assinalam o calor dos dias e dão um tom alaranjado à imagem. Por sua vez, Matty diz que a temperatura do seu corpo ronda os cem graus Fahrenheit. Está tudo a postos para libertar as silhuetas de qualquer tecido....Por falar em nudez, Turner e Hurt - ela uma atriz então desconhecida, ele um ator ainda sem nome feito - corresponderam à ideia que Kasdan tinha de criar uma sensação de descoberta no espectador. Algo que funcionou na filosofia da própria rodagem, em que os dois atores fizeram questão de se apresentar a cada elemento da equipa... tal e qual como vieram ao mundo. O objetivo era que todos se sentissem confortáveis na hora de filmar as cenas tórridas..Em todo o caso, a sensualidade que nasce do encontro destes corpos jovens e esbeltos não é apenas mérito deles. Seguindo os códigos do film noir, Lawrence Kasdan aplicou o erotismo a uma certa expressão dos movimentos de câmara, quase sempre elegantes e à procura de ângulos peculiares, acompanhados pela justíssima banda sonora de John Barry (recorde-se, compositor de vários temas da saga James Bond). O calor, visível nas personagens e presente nos diálogos, seria responsável pelo resto: o atear da paixão e o impulso dos atos extremos. Assim como uma fantasia literária à flor da pele: "Queria que este filme tivesse a intrincada estrutura de um sonho, a densidade de um bom romance e a textura de pessoas reconhecíveis em circunstâncias extraordinárias." Palavras do realizador e argumentista..Sonho vaporoso com brisa noturna e sem ar condicionado, Body Heat será sempre o filme que estabeleceu Kathleen Turner como uma das atrizes mais sexy da sua geração. Não por acaso, uma estreia por muitos comparada à de Lauren Bacall em Ter ou Não Ter (1944), de Howard Hawks - uma das mais surpreendestes desses anos 1940, ao lado do seu Humphrey Bogart. "Quem foi a rapariga, Steve?", pergunta-lhe ela nesse filme. "Que rapariga?", devolve Bogart. "Aquela que te deixou com tão boa opinião das mulheres.".Ah a poesia do film noir, ah as femme fatales...