Há filmes que parecem nascer do absoluto alheamento do presente - antes do mais, do presente industrial do cinema. Assim é Uma Mulher do Outro Mundo, no original Blithe Spirit. Não vem daí mal ao mundo. Tal alheamento, entenda-se, começa mesmo por suscitar curiosidade e até uma certa forma de admiração: em plena época de submissão da produção de língua inglesa a "formatos" ligados a modelos rotineiros de aventura e a uma certa retórica digital do cinema, quem se lembraria de adaptar a célebre peça de Noël Coward (1899-1973)?.Pois bem, lembrou-se a British Lion Films (com distribuição assegurada pelo departamento cinematográfico dos canais Sky), porventura procurando obter um título "híbrido", suscetível de ostentar um rótulo de prestígio e desembocar nas mais diversas plataformas de streaming. Aliás, com uma estreia que importa assinalar: este é o primeiro trabalho de realização para cinema do encenador teatral Edward Hall (inglês, nascido em 1966), filho do grande Peter Hall (1930-2017), figura tutelar do teatro inglês cujo trabalho também passou pelo cinema..Resta saber o que o filme faz com o delicioso texto de Coward... Dir-se-ia que ninguém parece ter acreditado muito nas respetivas virtudes, não só retalhando-o e "modernizando-o", mas também inventando (?) um final que, para evitarmos grandes esforços de descrição, se fica pelo disparate teatral & cinematográfico..A peça de Coward vive de uma sofisticada e muito divertida dramaturgia de contrastes. Tudo começa pelo escritor Charles Condomine (Dan Stevens) e o seu bloqueio criativo. No original, não consegue engrenar o seu projeto de romance, agora está apostado em escrever um argumento que o leve a Hollywood; casado com Ruth (Isla Fisher), a sua existência vai ser abalada pelo aparecimento da sua primeira mulher, Elvira (Leslie Mann), falecida há alguns anos....Falecida? É verdade. O texto de Coward vive da irónica naturalidade com que a personagem de Elvira se imiscui no quotidiano daquele universo de grande bem estar material, e tanto mais quanto apenas Charles a consegue ver... Dito de outro modo: a subtil crónica existencial de Uma Mulher do Outro do Mundo nasce da naturalização do surreal, não da forçada caricatura com que o filme de Edward Hall trata tudo e todos. Enfim, quase todos, já que Madame Arcati, a médium responsável pelo "renascimento" de Elvira (e por mais algumas tropelias...) é interpretada pela veterana Judi Dench. Não que a sua composição possa compensar o simplismo narrativo do filme, mas com ela pressentimos, pelo menos, as maravilhas e potencialidades do universo criado por Coward..Além do mais, ninguém parece ter tido a preocupação de, pelo menos, avaliar as soluções de mise en scène da primeira versão de Blithe Spirit (também lançada como Uma Mulher do Outro Mundo), dirigida por David Lean em 1945, com Rex Harrison e Margaret Rutherford, respetivamente como Condomine e Arcadi. A este cinema de recuperação de velhas referências culturais falta, afinal, uma verdadeira memória cinéfila..dnot@dn.pt