No fio da navalha

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O vírus chegou pouco antes de 2020. Só os jovens o combateram, levando auxílio e mantimentos aos médicos que trabalhavam dia e noite em condições desumanas, arriscadíssimas. Ameaçados pelas autoridades, de um lado, e pelos movimentos anticientíficos, do outro, os clínicos faziam o que podiam para salvar vidas em desespero. O excesso de população fizera o mundo mergulhar no caos e, com apoio nas redes de computadores e em sofisticadas tecnologias de vigilância, crescera brutalmente a ameaça do totalitarismo. À espreita, a eugenia: o governo só garantia tratamento a quem aceitasse ser esterilizado, pois entendia que os que estivessem infectados e doentes não eram aptos a ter filhos. Escasseavam os remédios e os equipamentos, mas os médicos organizaram-se num sistema paralelo, quase clandestino, que, bem ou mal, ia funcionando como podia.

Quando apareceu a epidemia, poucos ligaram. Começou por ser uma gripe ligeira e vulgar, mas, passados alguns dias, a doença mostrou-se muito mais letal do que parecia. Para uns, era uma meningite mortífera, para outros um cancro de avanço fulgurante. Mais tarde, foi identificada a causa: o vírus B-23. Ao fim de afanosas investigações, descobrira-se uma vacina, ou o que aparentava sê-lo. Nos hospitais começaram os tumultos, a eterna e terrível luta pela sobrevivência. Os jovens, esses, continuaram na linha da frente: incansáveis, iam a toda a parte a levar o antídoto - ou medicamentos, máscaras, seringas, o que quer que fosse. Corriam velozes, cortantes como navalhas. Chamavam-lhes blade runners.

Inexplicavelmente, a infecção pelo vírus era acompanhada de um aumento descontrolado e frenético da actividade sexual. Isto na versão de William S. Burroughs (Blade Runner: A Movie, de 1979), bastante mais escabrosa do que a novela original, The Bladerunner, publicada em 1974 pelo médico e autor de ficção científica Alan Nourse. Na distopia de Nourse, passada em 2009, o epicentro era a cidade de Nova Iorque e o livro reflecte as angústias típicas dos alvores dos anos 1970, quando filmes como ZPG ou Soylent Green tinham também como mote um mundo devastado pela sobrepopulação e anunciavam tempo novos marcados por salas de suicídio, esterilizações em massa, medidas draconianas de controlo da natalidade e até práticas generalizadas de canibalismo.

No futuro imaginado pelo médico Alan Nourse, talvez não muito diverso do que vivemos já hoje, os médicos tinham sido substituídos por robôs "pantográficos", que registavam e replicavam os gestos humanos e todos os cidadãos estavam sob estrito controlo de aparelhos de segurança e vigilância biométrica. Segundo Nourse, "os burocratas dominavam a sociedade através de um sistema universal de saúde", uma frase que tem sido abusivamente usada pelos adversários do Obamacare, sendo vários os republicanos e neoconservadores que, aquando da discussão daquele programa social, recomendaram entusiasticamente a leitura de Bladerunner.

Porém, na altura em que foi publicado, o livro não teve grande sucesso nem despertou interesse de vulto entre os fervorosos adeptos da ficção científica. Ainda assim, não muito depois, William Burroughs sonhou adaptá-lo ao cinema, e para isso escreveu BladeRunner: A Movie, cuja acção é situada em 2014 e ganha, como é óbvio, contornos muito mais lúbricos e bizarros do que os da novela de Nourse, ou Burroughs não fosse Burroughs, o príncipe negro da beat generation, o génio atormentado por mil demónios, o devoto crente das artes mágicas, um homem que, durante a sua alucinante temporada no México, matou (incidentalmente?) a mulher com um tiro na cabeça num jogo homicida, após uma noite de loucura e drogas, um escritor maldito que julgava ser possuído por entes estranhíssimos vindos de outros mundos e que, nos últimos anos de vida, mergulhou a fundo no movimento Magia do Caos. Burroughs, blade runner, sempre no fio da navalha.

A Nova Iorque de Blade Runner, vista pelos olhos de Burroughs, era uma metrópole devastada por motins de violência extrema, com poucos ou nenhuns transportes públicos, uma fantasmagoria de arranha-céus vazios e semidestruídos, com a Baixa de Manhattan isolada por um muro colossal, à moda de Trump, e animais selvagens, fugidos do zoo, a percorrerem as ruas e avenidas desertas, tal qual os javalis que agora se passeiam às noites por Barcelona (ou o puma capturado há dias em Santiago do Chile). Os cuidados de saúde eram racionados não por necessidade mas como pretexto que o sistema encontrara para se ver livre dos negros, dos gays e de outros seres indesejáveis.

Alarmado pelos custos de produção desse projecto cinematográfico, estimados em cinco milhões de dólares, o autor de Naked Lunch acabou por desistir dele, ainda que mais tarde, em 1983, tenha sido feito um filme a partir do seu argumento: realizado por Tom Huckabee e Kent Smith, TakingTigerMountain contou com a participação de Burroughs como narrador. Obra experimental de vanguarda, inspirada igualmente em OEstrangeiro, de Camus, o filme teve passagem efémera por duas salas de cinema da América e durante décadas ninguém ouviu falar dele (só no ano passado foi lançada uma cópia restaurada, para home cinema). Além do argumento de Burroughs e da obra-prima do autor de A Peste, Taking Tiger Mountain baseia-se também num poema dedicado ao rapto do infortunado John Paul Getty III e a acção centra-se precisamente no sequestro do protagonista por um grupo de feministas radicais. Um filme no fio da navalha, portanto.

Foi por um singular acaso que Blade Runner acabou por ser o título do famoso filme de Ridley Scott cuja acção decorre numa Los Angeles não tão imaginária quanto isso, em finais de 2019 ou começos de 2020. Hampton Fancher, o argumentista, ensaiou vários títulos alternativos, como Android ou Dangerous Days, mas o realizador fixou-se obsessivamente em Blade Runner. Só então Fancher lhe confessou que esse nome não era da sua autoria, mas de uma novela de William Burroughs, que, contactado de imediato, acabou por ceder os direitos. Quanto ao conteúdo, o filme de Scott não tem, pois, nada a ver com os livros de Nourse e de Burroughs com o mesmo título, baseando-se antes no romance Do Androids Dream of Electric Sheep?, de Philip K. Dick, um livro que, ao que parece, o cineasta nunca leu até ao fim...

Nome maior, enorme, da ficção científica topo de gama, Philip K. Dick viveu tanto ou mais no fio da navalha do que William Burroughs. Morreu cedo, aos 54 anos, no culminar de uma existência atormentada, com cinco casamentos fracassados, várias tentativas de suicídio, a obsessão paranóica de que estava a ser espiado pela CIA, a vertigem do LSD e das drogas psicadélicas, a adolescência arrasada por um diagnóstico precoce de esquizofrenia, a vida adulta passada em tratamentos psiquiátricos - e a escrever obras de génio, muitas delas passadas à tela, como Total Recall ou Minority Report. E Blade Runner, claro, a primeira grande adaptação cinematográfica de uma obra da sua autoria.

Estreado em 1982, com escasso aplauso da crítica, o filme de Ridley Scott não procura figurar um futuro longínquo passado em galáxias distantes. A acção decorre em Los Angeles, algures em 2019 ou 2020, consoante as versões, e a personagem principal, Rick Deckard, interpretada por Harrison Ford, é um antigo polícia que se notabilizara como blade runner, isto é, como caçador de replicants, prodígios de bioengenharia fabricados pela omnipotente Tyrell Corporation e utilizados na colonização de outros planetas, mas que, pela ameaça que constituíam para os seres humanos, estavam absolutamente proibidos de regressar à Terra.

A Deckard é confiada a missão de localizar e liquidar um perigosíssimo bando de replicants, liderado pelo mau da fita, Roy Batty, encarnado pelo neerlandês Rutger Hauer. As últimas gerações de replicants eram de tal forma perfeitas que lhes tinham inoculado memórias na mente e, por isso, a distinção entre o artificial e o humano tornara-se ténue, quase impossível (aliás, uma das incertezas da trama, jamais dissipada, é a de saber se o blade runner Rick Deckard não será, ele próprio, um andróide concebido pela Tyrell Corporation). As fotografias de infância são convocadas em vários momentos da narrativa, como prova derradeira de que quem as exibisse tinha um passado, e a memória dele, e, logo, era humano, não máquina.

É esse o drama da heroína da história, misto de femme fatale e donzela indefesa, que, sabendo ser um andróide, tem a sensibilidade suficiente para lamentar tal facto, como se a aspiração ao humano fosse a razão maior da sua existência. O filme de Scott constitui, assim, um ensaio por vezes pouco subtil sobre a condição humana e o que a distingue e caracteriza (a memória, o passado vivido, não construído) e é nessa perspectiva que tem merecido os louvores aclamatórios de intelectuais como Fernando Savater ou Guillermo Cabrera Infante, entre tantos outros.

Blade Runner é também uma revisitação dos policiais negros dos anos 1940 e 1950, e para isso muito contribuiu o uso da voz off do herói, desastradamente suprimida por Ridley Scott na director's cut de 1992 e na final cut de 2007, que, além dessa malvadeza, eliminaram o happy ending da versão original e, pior ainda, os trechos que mantinham a dúvida sobre o estatuto artificial ou humano de Rick Deckard. Ora, a narração em off dava à obra a tonalidade de film noir que, desde as origens, constituiu a sua imagem de marca, a ponto de, logo na altura do lançamento, os produtores terem promovido Blade Runner como "uma história de detectives ambientada num futuro muito próximo".

Recurso próprio da ficção radiofónica, a voz off foi introduzida no cinema na década de 1930, mas só adquiriu a sua grande expressão em 1942, com Citizen Kane. Desempenha uma função que, em termos simples, se traduz em introduzir no relato sonoro e visual um ponto de vista subjectivo que questiona o enunciado explícito ou que o contradiz e o nega directamente, desvelando o verdadeiro discurso que se oculta por detrás da falsa ou enganosa aparência que vemos na tela.

Com isso, temos dois filmes em vez de um só: aquele que vemos na sucessão de imagens e o mais verídico e real que nos é dado pela voz do narrador escondido, mas omnisciente, como um deus discreto. O discurso off é o mais pessoal de todos, mas também, em simultâneo, o mais autêntico e objectivo de todos, pois é emitido não por um observador externo ao relato, mas por um narrador que participa na acção e embrenha-se nela a fundo, como era timbre do "cinema negro" de Hollywood das décadas de 1940 e 1950. Suprimir a voz off foi um dos golpes mais rudes que Ridley Scott infligiu ao seu filme, como bem refere Jesús Alonso Burgos no fascinante ensaio Blade Runner. Lo Que Deckard no Sabía. Em troca, o realizador aditou ao filme original uma inenarrável cena onírica com um unicórnio, um cúmulo de foleirice que os críticos qualificaram, sem piedade, como "um truque de filme barato". É questão de verem, uma desgraça.

Além da trama narrativa urdida à maneira de Raymond Chandler ou de Dashiell Hammett, com um ex-polícia cínico e duro e uma beldade frágil e desamparada, protagonizada pela belíssima Sean Young tendo por modelo a Rita Hayworth de Gilda, outros elementos adensam a atmosfera típica dos policiais negros. A arquitectura, acima de tudo. A Los Angeles de 2019 não era muito diversa de uma megalópole dos anos 1980, sendo a continuidade temporal assegurada, desde logo, pelos gigantescos anúncios de néon a marcas por demais conhecidas, como a Coca-Cola ou a Marlboro.

Ridley Scott, ao que parece, percorreu durante semanas várias cidades da América em busca da localização perfeita, até decidir-se por filmar nos estúdios da Warner Bros., onde num dos cenários colossais, o Old New York Street, construído em 1929, tinham sido rodados outros clássicos do cinema policial, como The Maltese Falcon/Relíquia Macabra, de 1941, e The Big Sleep/À Beira do Abismo, de 1946. Os técnicos remodelaram o cenário por inteiro, estreitando as ruas, demolindo edifícios e erguendo outros, escureceram as fachadas até ao negrume quase total, congestionaram o tráfego, encheram a rua de lixo e detritos urbanos, acentuaram as ruínas de prédios majestosos, como uma réplica do Bradbury Building, desenhado em 1893 por George Wyman. Por sua vez, o protagonista, o blade runner Rick Deckard, tem por morada uma adaptação de outro ícone da arquitectura norte-americana, a Ennis-Brown House, construída em 1924 por Frank Lloyd Wright.

Todo o filme, de resto, é um exercício de enorme impacto visual, mesmo que por vezes o mesmo nos pareça datado, muito à anos 1980, ou com excessivas concessões a uma certa vulgaridade neobarroca, entremeada por música de Vangelis. Ridley Scott não é um cineasta que prime pela contenção e pelo bom gosto e o caudal de referências que mobilizou para Blade Runner chega a raiar o grotesco: desde Metrópolis, de Fritz Lang, a Howard Hawks e Orson Welles, passando pela estética dos videoclipes, pela publicidade, pelo imaginário barroco alemão, pelo comic de Métal Hurlant e de Moebius, pelo design italiano em versão 5.ª Avenida até à arquitectura medievalista da Escola de Chicago e ao pós-moderno de Frank Gehry.

A película alimenta-se, pois, de uma infinidade de alusões visuais que, por vezes, deixam o espectador confundido. E não ficamos por aqui: se Alien, outra obra maior de Scott, ficou celebrizada pelos delírios monstruosos de H. R. Giger, Blade Runner é dominado pela pena de Syd Mead, um antigo desenhador de publicidade que trabalhara para grandes empresas (a Ford, a construtora Hansen, a Sony, a Concorde, a Philips), antes de abraçar uma fulgurante carreira no cinema, onde pontuou em êxitos como Star Treck ou Tron, entre muitos outros. Ridley Scott tentou, sem sucesso, obter a colaboração de Moebius na concepção gráfica do filme, em que é patente, de igual modo, a influência de Bob Kane, o desenhador de Batman ou, para o que aqui interessa, de Gotham City.

A par disso, as gravuras de Hogarth, os interiores domésticos de Van Eyck e, acima de tudo, as pinturas de Edward Hopper foram outras influências marcantes no multifacetado design de Blade Runner. Entrevistado anos depois, Scott diria que passou o tempo a colocar em frente aos olhos da equipa de produção uma réplica de Nighthawks, a célebre tela de Hopper, pois era exactamente esse o ambiente que pretendia recriar, evocando a melancolia das cidades da América, o jazz nocturno e soturno, os silêncios pesados dos casais malditos. O filme é ainda credor de alguns antecedentes cinematográficos de vulto, como o já citado Soylent Green (1973), de Richard Fleischer, ou Alphaville, de Godard (1965). Como se vê, um festim de cultura, erudita e de massas, com resultados que nem sempre honram tão nobres antepassados.

Também no argumento confluem as mais diversas referências, desde os episódios bíblicos do filho pródigo e do anjo rebelde a William Blake e Descartes, ao Tao, a Frankenstein, numa conjugação sufocante que os mais benevolentes, como Fernando Savater, consideram ser "um dos maiores esforços metafísicos do cinema contemporâneo".

Talvez seja um exagero, mas o certo é que o filme, como um vírus no auge do contágio, conquistou uma infindável legião de adeptos, deu ensejo a teses de doutoramento e a análises eruditas, profundíssimas, invadiu a cultura popular e o mundo dos videojogos, deixou lastro em muitas obras cinematográficas subsequentes, desde Matrix a O Quinto Elemento, passando por Brazil, entre tantas outras. Marcou também as performances dos Fura del Baus ou a decoração de Steel Wheels, a tournée mundial de 1989 dos Rolling Stones.

Nas origens de Blade Runner há um vírus à solta na cidade em chamas. Também o filme tornou-se "viral", como agora se diz. Ou dizia, até finais do ano passado, quando um pangolim vendido num mercado chinês virou o mundo do avesso, e nós a ver, aterrados. Parece ficção, e da científica, mas não é, não foi, dirá um dia o narrador em off.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

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