A beleza do inverno em Nova Iorque está nos galhos das árvores despidas, no bulício da cidade pré-covid e em Nicole Kidman a atravessar a passadeira envergando um sobretudo chique e aveludado, com o seu longo cabelo ruivo ao sabor da brisa fria. The Undoing podia fazer-se só disto, não fosse preciso uma trama para justificar os seis episódios..A nova minissérie da HBO, escrita por David E. Kelley (Big Little Lies) a partir de um romance de Jean Hanff Korelitz, e realizada por Susanne Bier, é uma daquelas produções que assumem a atmosfera urbana como personagem - em caso de o resto não ser suficiente para segurar o espectador, há sempre a visão confortável da vida em Upper East Side..Com efeito, o casal protagonista de The Undoing representa a elite nova-iorquina que leva o dia-a-dia sem grandes preocupações, a não ser as inerentes aos respetivos cargos profissionais. Ela, Grace Fraser (Kidman), é uma sagaz psicoterapeuta com um consultório bem mobilado e clientes em espiral emotiva, ele, Jonathan Fraser (Hugh Grant), um oncologista pediátrico que sai de manhã para o hospital com a disposição leve, apenas discutindo ao pequeno-almoço com o filho adolescente sobre a escolha de um animal doméstico: pode ser qualquer um, menos o cão... Mais tarde, a mãe conta-lhe o segredo do trauma por detrás desta recusa do pai, e não será a única verdade escondida sob as aparências de um quotidiano feliz..YouTubeyoutubeQWoiNlLqLR8.Este feitiço de Manhattan, ornamentado com a verve erudita da música clássica que enche os ambientes interiores, ganha notas pesadas depois do chocante homicídio de uma jovem (que destoa das personagens abastadas, importa referir) cujo filho frequenta a mesma escola privada que o filho de Grace e Jonathan. Na manhã em que a notícia rebenta nos media, o oncologista está ausente num congresso e Grace não o consegue contactar. A investigação arranca e a estranheza quebra a paz doméstica no duplex dos nossos sonhos..Quem viu Big Little Lies encontrará em The Undoing uma escrita semelhante na dinâmica, desde as visões recorrentes de Grace, que não sabemos se são memórias ou imaginação, à radiografia (neste caso, bastante breve) dos possíveis suspeitos. Estes vão surgindo ao longo dos episódios, e ao sabor dos indícios, mas é sobre Jonathan que recai a atenção dos tabloides: o homem de alta reputação que, de um momento para o outro, rompeu as bases de um casamento imaculado e colocou o rosto da mulher na praça pública. Perdoa-se aqui o cliché da psicoterapeuta que não foi capaz de decifrar o próprio marido....Sem esforço, Nicole Kidman é a figura do "sofrimento elegante", sempre à beira de um precipício interior de dúvidas, que se apazigua na companhia do pai rico, seja a tocar piano no sumptuoso apartamento deste ou a conversar dentro da galeria de um museu, de olhos postos num quadro. O pai é interpretado pelo ilustre veterano Donald Sutherland, a acrescentar um charme incómodo ao cenário e, por sua vez, Hugh Grant, que continua o bom caminho da sua carreira recente, entrega-se a um jogo subtil de personalidade que procura ir além das meras sugestões de culpa ou inocência. De facto, a fragilidade de The Undoing - desde logo quando comparado com Big Little Lies - reside no parco desenvolvimento das personagens, que parecem limitadas pela mecânica narrativa do whodunnit..Reviravoltas e questões de classe à parte, temos sempre Nova Iorque e a sua luz de inverno, um glamour cinzento a revestir o thriller psicológico, com os ramos de árvores despidas a vigiar os dramas humanos, qual natureza-morta ao som de uma das Quatro Estações de Vivaldi.