Há que esperar até ao final do ano para uma das grandes pérolas da Berlinale Special chegar aos cinemas. This Much I Know to be True, de Andrew Dominick é um olhar sobre a colaboração artística entre Nick Cave e Warren Ellis, em especial da fase de Ghosteen e Carnage, mas quer e consegue, antes de mais, ser uma reflexão sobre estes tempos de pandemia e acerca das noções de mortalidade..Tudo começa com uma câmara solta e sem tripé a revelar uma faceta desconhecida de Cave, a do artista ceramista: "para grande infelicidade dos agentes, declarei-me este ano como ceramista e não músico", começa por dizer. Depois, um foco em Warren Ellis e na sua discrição, mesmo quando o seu look de cabelos longos e barbas densas chama a atenção. A dada altura é o próprio realizador a brincar com a crescente influência de Ellis no som de Cave que, também a brincar vai dizendo: "ele cada vez canta mais, qualquer dia substitui-me". Mas a sério percebe-se que entre os dois há na criação musical um encontro de talentos que encontra uma ideia de transcendência e, nesse confessionário, Cave admite que fica arrebatado com o que por vezes criam. E é por isso que um dos pontos fulcrais do filme acaba por ser o desfile das canções numa sala abandonada no Reino Unido, como se de um concerto sem público se tratasse, mas com coros, luzes e um som perfeito. Para Dominick, que já tinha filmado Cave em One More Time with Feeling, é importante a música falar por si..CitaçãocitacaoTudo começa com uma câmara solta e sem tripé a revelar uma faceta desconhecida de Cave, a do artista ceramista: "para grande infelicidade dos agentes, declarei-me este ano como ceramista e não músico",.This Much I Know to be True vive também dos bastidores da atuação musical criada para o filme, mostrando músicos ao trabalho e dispensando estratégias para disfarçar a sua condição de "doc musical". Ou seja, mostra-se um processo onde o próprio realizador é parte integrante. Ele, a sua equipa e o aparato. O resultado, mais tarde, atinge uma perfeição estética inatacável, um respeito visual dilacerante, mesmo quando aqui e ali se confunde com propósito promocional, nada que alguns momentos humaníssimos não o redimam, como por exemplo a visita de Marianne Faithfull, cheia de vida mesmo com a doença ao seu lado. Andrew Dominick percebe que está a captar um Nick Cave feliz, ou melhor, conformado por não poder tocar ao vivo e a admitir que antes da música quer ser melhor pai (o seu filho Earl surge numa videochamada) e melhor marido. Di-lo não através do estratagema da entrevista programada mas com uma informalidade que é desarmante. Desarmante também é a visita à casa "abandonada" de Warren, homem que também está entregue a uma missão divina com a sua música. No meio deste transe musical, fica sobretudo exposto o conforto de dois adultos crescidos no seu exercício artístico. E isso é tão bonito....Da invasão portuguesa é impossível não ficarmos próximos de By Flávio, a curta de Pedro Cabeleira que está a concorrer na competição pelo Urso de Ouro. Um pequeno grande tesouro que investiga os procedimentos de uma nova forma de romance em função das redes sociais. Se quisermos, são 27 minutos para encontrar uma reflexão simples e funcional sobre uma geração a querer ver a solução num mundo virtual, onde o sonho é ser influencer, como é o caso da protagonista, Márcia, mãe solteira e empregada de uma loja de shopping prestes a ter um date com um rapper quase famoso. O seu único problema é onde deixar o seu filho, o pequeno Flávio. Para Márcia, filtros, a arte da selfie perfeita e todas as técnicas para conseguir likes no Instagram são o seu mundo..O filme é alavancado pela interpretação dos atores, em especial Ana Vilaça, capaz de dar à personagem uma força interior que subverte o preconceito do espetador. Bem à sua maneira, é um filme com uma carga de empoderamento feminino que vale mais do que qualquer outra mensagem feminista, não sendo por acaso que Vilaça assina também parte do argumento. By Flávio é outra afirmação de Cabeleira como cineasta depois dos resultados excelentes de Filomena, a anterior curta. O cineasta de Verão Danado muda de registo de filme para filme. Em Berlim vai ganhar mais fãs....Também para estarrecer Berlim chega Águas de Pastaza, de Inês T. Alves, convite para o espetador conhecer na selva amazónica uma comunidade de crianças que vive entre as margens do rio Pastaza e o topo das árvores. Crianças que crescem de forma quase autónoma, capazes de pescar e caçar numa simbiose rara com a natureza. Um lugar onde é ainda possível celebrar um conceito de aventura da infância..A câmara de Inês T. Alves é uma observadora ágil dessa partilha entre as crianças e a floresta. Mas mais do que captar com os cuidados do documentário "ambiental", a realizadora portuguesa sente-se libertada para filmar esta ideia de uma infância num paraíso e torna-se cúmplice desse jogo, dessa visita guiada. São imagens em estado de deslumbramento, sem partitura musical, apenas com o som dos dias e das noites da selva. Inês oferece-nos um mundo para nos fazer parar o nosso mundo....Aquelas crianças de Suwa, além da harmonia com a natureza, transmitem uma ideia de paz refletida na maneira como se relacionam entre si e no próprio espaço lúdico, mesmo quando usam as tecnologias dos telemóveis..dnot@dn.pt