Neurocirurgião sob suspeita. PJ avança na investigação. Ordem dos Médicos ainda não
A investigação ao chefe da equipa especializada em tumores cerebrais do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), suspeito de negligência que terá causado a morte a pacientes, decorre a dois ritmos.
O inquérito criminal, instaurado com base na denúncia que chegou ao Ministério Público (MP), está a avançar com a Polícia Judiciária (PJ) a voltar ao terreno para recolher documentos e ouvir testemunhos de médicos, enfermeiros e outro pessoal que acompanhou e observou o trabalho do médico sob suspeita.
A pandemia tinha obrigado a cancelar algumas das diligências mas agora voltaram a ser remarcadas, confirmaram ao DN fontes da PJ que estão a acompanhar o caso.
Por outro lado, do ponto de vista disciplinar, a Ordem dos Médicos, que, na sequência da notícia do DN em março passado, tinha anunciado a abertura de um "processo de averiguações" para identificar "a existência de eventual má prática clínica", três meses depois não abriu ainda um inquérito disciplinar, que seria o procedimento seguinte ao das averiguações.
"Tendo sido realizadas as diligências preliminares que foram entendidas como pertinentes, o processo prossegue os seus termos com vista ao apuramento de eventual responsabilidade disciplinar", respondeu ao DN fonte oficial do Conselho Disciplinar Regional do Centro da Ordem dos Médicos, assinalando ainda a "natureza secreta" do processo. Fonte oficial da Ordem clarificou, a pedido do DN, que o processo de averiguações tem como objetivo apurar indícios que possam justificar a abertura de um inquérito, o que ainda não aconteceu.
Em causa, recorde-se, estão as mortes de vários pacientes, dois deles em janeiro passado. Um tinha 29 anos, o outro, 40. O médico em causa, com 62 anos, é chefe da equipa especializada em tumores cerebrais e foi nestas cirurgias que a sua atuação começou a deixar em alerta outros profissionais do hospital e as equipas médicas que o acompanhavam: haveria práticas desadequadas, nomeadamente em violação do legis artis (o conjunto de regras científicas e técnicas que o médico tem obrigação de conhecer).
A situação terá piorado de tal forma que vários anestesistas especializados em neurocirurgia começaram a recusar-se operar com esse médico. De uma equipa com cerca de uma dezena de anestesistas, só três, dos mais antigos, continuam a apoiar as suas cirurgias.
A denúncia foi feita ao MP com base na informação de outros médicos e pessoal do hospital que não conseguiram ficar em silêncio perante o agravamento da situação nos últimos dois anos. Reuniram informação e relatórios que sustentaram a queixa.
A queixa, dirigida à procuradora-geral da República (PGR), Lucília Gago, e ao diretor nacional da Polícia Judiciária (PJ), Luís Neves, tem a assinatura da ex-eurodeputada Ana Gomes, que confirmou ao DN a sua intervenção pessoal.
Apesar da insistência do DN, a administração do hospital recusa-se a prestar informações sobre a situação do neurocirurgião, que se mantém-se em funções como chefe de equipa, ou que medidas preventivas foram tomadas enquanto as investigações da PJ e as averiguações da Ordem dos Médicos decorrem.
O porta-voz do CHUC apenas afiança que "o Conselho de Administração do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra deliberou a abertura de um processo de inquérito, que se encontra a decorrer". Indagado sobre os objetivos e alvos do inquérito não quis responder.
No hospital está instalado o receio que este inquérito seja para identificar quem denunciou o neurocirurgião e instaurar processos disciplinares. "A demora na intervenção das autoridades judiciais está a provocar receio em muitas das pessoas que estariam dispostas a falar e que têm sido alvo de recorrentes ameaças de superiores", afiançou ao DN fonte médica que conhece o caso.
A PJ deverá solicitar o apoio de peritos em neurocirurgia que possam ajudar a avaliar os procedimentos do médico e requer um vasto conjunto de documentação, entre a qual a de todas as cirurgias que envolveram este neurocirurgião, respetivas taxas de mortalidade e morbilidade e cruzar a informação dos relatórios oficiais com os testemunhos dos médicos e enfermeiros que estiveram presentes na sala de operações.
A confirmarem-se, as denúncias são gravíssimas. Um dos profissionais de saúde que contribuiu para a queixa formal disse ao DN que "existe gente a morrer ou deixada com complicações muito graves após operações a tumores cerebrais no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, por negligência, sem que ninguém faça nada".
De acordo com outra fonte do hospital, "há jovens com tumores cerebrais operados no CHUC que morreram em circunstâncias não esclarecidas logo nas primeiras horas após a cirurgia, e sem que nenhuma explicação seja dada às famílias".
As denunciadas más práticas médicas já foram alvo de queixas internas por parte de outros neurocirurgiões, mas estes acabaram por ser afastados da equipa de tumores encefálicos. Segundo o que vem escrito na denúncia que está a ser investigada, boa parte das situações suspeitas têm sido expostas por escrito, e isto já acontece pelo menos desde 2018. As queixas foram enviadas à hierarquia do hospital, do diretor clínico à administração, mas nada mudou, e o neurocirurgião continuou a operar.