A miúda de 18 anos que apareceu numa audição do programa televisivo Ídolos a cantar Alicia Keys e Clã é hoje mãe de três filhos. Acaba de percorrer o país com o seu disco - de ouro - Casa. O primeiro single, A Vida Toda , tem quase dez milhões de visualizações no YouTube. Ela é seguida por quase 480 mil pessoas no Instagram. Ali as pessoas veem, aplaudem e criticam o seu dia-a-dia, a forma como educa os filhos, as suas opiniões, a música que faz, a exposição da sua barriga nua depois de ter sido mãe.."Existe esta ilusão de que as pessoas sabem tudo da minha vida. Não sabem. Provavelmente nem aguentariam", diz ao DN nesta entrevista em que revisita o percurso que a levou até Casa, disco produzido pelo músico e seu companheiro Diogo Clemente..Quando o seu single Não é Verdade passava nas rádios, Carolina Deslandes estava a servir às mesas. Quando engravidou, deram por terminada a sua carreira. Não foi assim. Diz que quando um homem faz várias coisas é "multifacetado, um homem de negócios". E uma mulher? "Indecisa." Ela diz que é muitas coisas, nenhuma delas indecisa..Na sexta-feira e no sábado sobe ao palco do Coliseu dos Recreios. Na sexta-feira seguinte, atua no Coliseu do Porto. Como convidados terá António Zambujo e Jimmy P. É importante atuar nos coliseus? Muito, mas não há assim tanto tempo para pensar muito nisso. "A seguir eu estou a mudar um cocó. É a melhor reality call do mundo.".Há uns tempos escreveu no seu Instagram, referindo-se à sua família e à carreira em 2016: "Tinha 15 concertos marcados nesse ano e no lançamento do meu disco só vendi 22 bilhetes. Estávamos destinados a falhar. Mas não falhámos." Esta foi a vida que imaginou para si? Eu mudei de casa ao longo da vida 18 vezes, mudei muitas vezes de escola, os meus pais divorciaram-se quando eu era muito pequena. Nunca tive a sensação de ter raízes. A minha vida sempre foi muito nómada, então eu sonhava muito com o chegar dessa calmaria, ter a minha casa e criar lá a minha família. Nunca tive nada na minha vida que acontecesse de forma fácil. Eu já sei que é sempre um caminho até conseguir chegar à parte boa. E foi o que aconteceu. Tinha um filho, estava muito contente, com o amor da minha vida, engravidei logo depois - o Santiago tinha 3 meses - e não tinha praticamente trabalho..Chegaram a fazer casamentos, certo? Sim, chegámos a fazer alguns. Mas continuo a fazer ainda hoje. Porque não vou fazer um casamento tipo: "Precisamos de uma banda para o casamento." Não. É alguém que me manda uma mensagem e que me conta uma história. "Eu e a minha mulher conhecemo-nos ao som da tua música..." Ainda hoje, se houver uma historia que me comova, eu vou. Mas efetivamente não tinha muito trabalho. As pessoas não têm noção disto, mas quando o Não É Verdade, o meu primeiro single, estava na berra e toda a gente o ouvia na rádio, eu trabalhava a servir às mesas num restaurante. As coisas demoram muito entre começarem a acontecer e traduzirem-se em income financeiro. Quando o Santiago nasceu e fiquei à espera do Benjamin foi um misto de muita felicidade e muito medo, porque não queria não ser capaz de dar a vida aos meus filhos que eu sempre sonhei que iria dar quando fosse mãe. Foi uma lição muito grande para mim: o que toda a gente achou que ia ser o fim da minha carreira e o fim da Carolina enquanto artista foi o começo, e foi o renascer de que eu estava a precisar para tudo, para ser honesta comigo, com a minha música, com a minha forma de comunicar, para encontrar finalmente o estilo em que me sinto completamente confortável..Foi importante recordar isso à frente dos outros? Eu gosto de partilhar isso porque quando tu vês televisão ou vais à internet as coisas aparecem feitas. As pessoas têm os filhos, aparecem magras, começaram a cantar num bar a cair de podre, mas já aparecem no Coliseu. As [outras] pessoas não veem o processo das coisas, então em vez de tirarem inspiração dos exemplos dos outros, não, é "ela está aqui e eu continuo aqui". Acho que isso é uma forma de bullying e de falta de consciência de que nós temos um papel importante. Quando comecei a criar a minha família ainda não tinha a vida estabilizada. Há aquela coisa: "Ah, agora ainda não é altura." Nunca vai ser altura..Eu acho que está tudo a planear a vida para conseguir ter filhos - e claro que há coisas que tens de planear - mas pensam que se tem de criar as condições para chegar até um ponto da vida profissional, e isto e aquilo, para se poder ter filhos. E eu acho que os filhos é que são o motor disso tudo. Porque a partir do momento em que tu olhas para aquelas pessoas e elas dependem de ti, e em que tu és o exemplo que elas têm, trabalhas de uma forma completamente diferente. Tenho noção hoje de que há muito pouca coisa que me vá atirar ao chão. Eu fui para o meu trabalho com um foco e uma gana que não tinha antes. Sempre tive stage fright, de cantar ao vivo e ficar muito nervosa, e agora sempre que estou nessas paranoias encosto-me à parede, fecho os olhos, e é a minha família que eu vejo. E arranco. Isso é mais forte do que tudo..Pensou muito antes de abrir a porta às pessoas para uma espécie de cronologia intima da sua vida, como se encontra no Instagram ou nalgumas coisas que escreve? Normalmente gosto de comunicar da forma como sempre segui os artistas que admiro. Sempre tive uma necessidade de saber as histórias das canções, saber de onde é que as pessoas vêm, "qual é a tua cena?", e é um bocadinho isso que tento fazer. Existe esta ilusão de que as pessoas sabem tudo da minha vida. Não sabem. Provavelmente nem aguentariam. Mas eu gosto de publicar, e tenho noção de que é uma exposição, mas para mim há um motivo maior em todas as coisas que eu exponho e comunico..Não havia nenhuma razão para eu ter 470 e tal mil seguidores. Isto não pode ser só selfies. Não julgo quem toma essa decisão de manter as coisas assim à tona da água, mas eu não gosto de viver à tona da água. Se eu tenho uma voz e se estas pessoas me estão a ouvir, vamos falar de coisas importantes, de falhar, de engordar, de estar falido, de chorar, de rir muito, e de nos apaixonarmos. Eu tenho seis irmãos mais novos, e isso fez-me ter plena consciência de querer passar a palavra daquilo que considero importante, porque já os vi questionarem tanta coisa, seja no aspeto físico seja nas opções de vida, por estarem constantemente a comparar-se a estas pessoas que estão no public eye e que são perfeitas. Pensei: alguém tem de vir desconstruir isto..O Diogo Clemente diz que a Carolina compõe como quem vai ali beber água. Como é que as canções lhe aparecem? Ele põe-se com essas brincadeiras e agora a malta acha que isto é assim [estala os dedos]. É muito estranho. Eu estou a falar contigo e começa a vir uma melodia à minha cabeça. Por exemplo, o Avião de Papel [trauteia a melodia]. Quando arranco para gravar no telefone canto o que também já escrevi e o resto sai-me freestyle. É muito rápido, mas pouco metódico..Não tenho aquela coisa que adorava ter (porque às vezes não me sai nada): vou sentar-me aqui, tenho um copo de vinho, uma vista agradável, vamos fazer canções. Pode haver a circunstância mais improvável do mundo, tudo cheio de gente, sirenes, barulho, e aí é que eu vou fazer uma canção. O silêncio assusta-me muito mais do que a confusão. Eu sou da confusão. Muitas vezes sinto: que sorte que eu tenho de isto estar a surgir dentro da minha cabeça, porque quase sinto que não tenho responsabilidade nisso e que só estou a passar..Como foi levar um disco tão íntimo como o Casa para fora, tanto tempo na estrada? É muito difícil cantares canções sobre os teus filhos quando estás a morrer de saudades deles, por exemplo. Cantares a tua família quando estás longe é difícil, mexe-te cá dentro. Depois canto muito o amor e a minha relação, mas as relações não são todas um mar de rosas e portanto tu cantares a tua relação quando se calhar nem estás num dia muito bom com essa pessoa, ou quando se calhar não estás numa fase especialmente feliz, também mexe com muitas coisas. Tenho uma canção no meu disco chamada Nuvem, a segunda canção que fiz para o meu avô. Eu não a queria gravar. Uma pessoa vai ver um concerto, passou por um momento, e no dia seguinte a vida dela é outra coisa..Aquilo é a minha vida. É como andares com uma mala e, quando está demasiado pesada, vais ficar feita num oito. Eu sentia isso com essa canção. Não a queria gravar e dizia: "Não vou ter arcaboiço para andar com isto na estrada." O Diogo disse: "Vamos só experimentar. Se não gostares, se não te sentires bem, não gravamos." Fomos à régie e ele estava a chorar compulsivamente, como eu nunca o tinha visto com nenhuma canção, e disse: "Por favor, deixa que isto faça parte do disco, porque também é importante falar disto." Gravei-a e nunca a cantei ao vivo. Vai ser agora, nos coliseus..O que é que as pessoas lhe dizem de mais impressionante a propósito da música que faz? Eu estava no Colombo com a minha irmã. Aconteceu uma senhora estar a passar por mim, vinha muito comovida, abraçou-me com muita força, e disse: "Eu estava há quatro anos a tentar engravidar, já tinha feito todos os tratamentos e desisti." Entretanto eu lancei A Vida Toda e ela diz que a ouviu tipo mantra, todos os dias, desde que acordava até que ia dormir. Aquilo de certa forma voltou a dar-lhe esperança. E ela engravidou. Disse-me que achava que a canção lhe tinha devolvido a fé. Nunca na minha vida pensei ter esse papel ou esse grau de responsabilidade na vida de ninguém. E nunca mais me esqueci dessa senhora..Pensa na razão por que as pessoas se encontram naquelas canções? Porque são verdade. O John Mayer dizia numa palestra: "Se houvesse uma fórmula para isto estávamos todos ricos e os nossos singles e discos eram todos sucessos inacreditáveis. Não acontece. Não há fórmula." Tu estás a trabalhar com sentimentos, com formas de expressar aquilo que estás a sentir, e depois depende da maneira como as pessoas vão entender aquilo que estás a sentir, se já sentiram o mesmo, se as tuas palavras descrevem bem aquilo que sentiram na mesma fase que estás ali a cantar... É uma quantidade de variantes que mudam muito. A única coisa que podes garantir é que não estás a corromper-te..Eu leio desde muito nova e lembro-me de que quando era miúda davam-me aqueles livros que se davam aos putos com 10 ou 11 anos para ler. E há um dia em que eu por acaso encontro um livro do Jorge Amado em casa dos meus avós, li-o e pensei: "Porra. Então isto sempre existiu e estão a dar-me aquilo? Estão a brincar comigo?" E é a mesma coisa que sinto. Está a partir-se do pressuposto de que as pessoas não estão para pensar e para se questionar, e não estão para ouvir canções com raciocínios um bocadinho mais elaborados ou com metáforas. Quem é que decide isso? Acho que finalmente estamos a voltar a um tempo em que percebemos que a gasolina de tudo é a canção, não é o styling, o cabelo, o marketing, o algoritmo, as redes sociais... As pessoas querem conteúdo..Daí que fosse tão importante ter um produtor "lá de casa", que compreendesse o fundo das canções? A primeira vez que gravei com o Diogo ia vomitando, antes sequer de termos alguma coisa amorosa. Eu já o conhecia, era fã do trabalho dele. Estava a gravar uns coros no disco de um amigo nosso e pensei: "Ainda bem que isto não é um disco meu, porque eu nunca na vida ia conseguir gravar à frente deste homem." E [agora] estava sempre a dizer: "Não posso gravar o disco contigo." Só que o disco e as canções só têm aquele resultado porque foi com ele, porque ele conhece-me, às vezes melhor do que eu. Vivemos os dois o disco com muita intensidade. Chorámos muito a ouvi-lo. Aquilo é a ilustração de um caminho com tanta coisa que aconteceu. E nunca teria tido aquele resultado se não fosse por ele..Vocês vêm de sítios muito diferentes. Muito diferentes. O Diogo vem de Camarate, do Bairro da Torre, cresceu a jogar à bola na rua com os amigos todos do bairro. E eu venho dos betinhos. Andei num colégio de freiras, e apesar de ter tido sempre uma vida familiar atribulada, o meio social em que eu estava era muito polido. Mas ele está sempre a dizer: "Eu é que vim do bairro e a minha vida não tem um terço do drama que a tua tem.".Musicalmente também não têm nada que ver. Nada. Acho que visualmente ainda é mais chocante. Se vamos jantar fora num date ele veste sempre um blazer e uma camisa. Eu se for de blazer vou com uma T-shirt dos Sex Pistols por baixo ou umas calças rasgadas. 99,9% dos meus dias estou de camisola de capuz. Estou sempre de ténis, não uso saltos altos. Estou toda tatuada dos pés à cabeça, ele não tem uma tatuagem. Assim à primeira vista não há razão nenhuma para nos termos apaixonado. Foi uma coisa muito maior do que aquilo que tu vestes ou cantas..Em que medida é que o fado, de onde ele vem, influenciou a sua música? Muito. Nunca me aconteceu falar com o Diogo sobre um fado e ele não saber o ano em que foi feito, por quem é que foi feito, quem são os compositores... Falas de um fado e ele sabe o poema de cor, sempre. Foi ele que me pôs a ler Florbela Espanca. Eu volto a escrever em português porque começo a ir aos fados, a perceber que tenho raízes, aquela coisa de te sentires portuguesa - "isto é a minha terra" -, eu nunca tinha sentido isso. Sei que não sou do fado, que nunca na vida vou conseguir cantar isto, mas mexe cá dentro, é da minha identidade. Comecei a gravar canções que tinha composto em português, e ele sem dizer nada pegava nelas e enviava para os artistas que ele achava que deviam cantá-las, como a Ana Moura. Ainda bem, porque foi assim que as pessoas começaram a cantar as minhas canções. Foi tudo muito por causa dele, na verdade..Que momento é este dos coliseus? O meu manager ligou-me. Eu estava em casa com os meus três filhos, o caos total instalado. E nem estava a acreditar. A coisa boa da minha vida é que eu nem tenho tempo para dizer "Ah, esgotei um coliseu". Porque a seguir estou a mudar um cocó. É a melhor reality call do mundo. Acima de tudo, nestas conquistas a coisa que mais me deixa feliz é a reação da minha família. Quando o meu avô morreu, a única coisa que me pediu para prometer foi que eu nunca ia desistir de ser artista. Eu inscrevi-me em Direito porque o meu avô era advogado e queria que ele ficasse orgulhoso. O meu avô disse-me: "Vais desistir imediatamente disso. Vais morrer aí. Isso não é para ti." Saí. Lembro-me de, no dia em que tive o meu primeiro single de ouro, pensar que estava a cumprir a promessa. Mesmo para a família do Diogo. Quando me conheceram eu era uma miúda alternativa que lhes entrou pela porta adentro, a fazer uns trabalhinhos aqui e ali e que de repente ficou grávida..O que vem a seguir? Eu gostava muito de fazer outra coisa. Gostava de representar, de lançar o meu livro, finalmente. Gostava de não me limitar só a isto, que eu adoro, mas acho que um artista para fazer canções de qualidade, para se manter fiel ao seu trabalho, deve parar. Cada vez tenho mais noção de que há muito mais para acontecer em mim..Mas numa espécie de "sou da música e já volto"? Eu sou a Carolina e isso é muita coisa, sabes? Tenho um blogue, escrevo milhares de coisas sobre a minha vida, histórias que eu invento, milhares de coisas. "Tu agora és blogger ou és cantora? Mas tu agora és mãe ou és artista?" Eu sou bué de coisas. É engraçado que esta é uma questão mais com as mulheres do que com os homens. Um homem que faz muitas coisas é um multifacetado, é um homem de negócios. Uma mulher que faz muitas coisas é indecisa. Não sabe bem o que é que quer. Eu sei o que quero: quero tudo. É só isto. Sei exatamente o que quero. Tenho 27 anos. Não sou novíssima, mas acho que ainda não estou numa fase da vida de me conformar.