O que esperar do London Film Festival, uma organização do British Film Institute? Um festival que na Europa ganha peso na imprensa internacional com antestreias mundiais? Ou um evento que é sobretudo uma amostra do novo cinema inglês? Na verdade, um pouco disto tudo numa edição que aproveitou bem o engarrafamento dos filmes da temporada dos prémios e não deixou de apoiar as mulheres iranianas, tendo ainda conseguido consagrar dois filmes portugueses..Dois filmes que não deixam de refletir um ano dourado do nosso cinema nos melhores festivais internacionais. Em Londres, Naylola, a longa de animação de José Miguel Ribeiro, foi dos objetos mais belos para descobrir, mesmo sem a chancela de "estreia mundial" - o Festival de Annecy já se tinha antecipado. Depois, um documentário que é mais do que isso: Onde Fica esta Rua ou Sem Antes nem Depois, de João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata, evocação ao memorial de Verdes Anos, de Paulo Rocha..Nayola, projeto que parte de uma história de Mia Couto e José Agualusa, é uma história angolana. Uma narrativa em dois tempos: a história de Nayola, ainda no fim da guerra civil em terreno de combate a tentar encontrar o marido guerrilheiro desaparecido. Ao mesmo tempo, anos mais tarde, já depois da guerra, seguimos outro segmento e acompanhamos a sua filha em Luanda, uma jovem rebelde que usa o Hip-Hop como arma de subversão para uma reivindicação contra o poder atual. O realizador da curta A Suspeita consegue agora um marco na animação nacional. Uma reflexão sobre os traumas de uma guerra que carregou fantasmas da morte num povo e que aqui tem balada de realismo mágico evocada com uma estética de desenho pensada para um público adulto e com o peso da catarse. Nayola é tão mais fascinante quando nos prova que esta estética de desenho está mais perto da excelência das artes plásticas..Quanto ao filme da dupla Guerra da Mata/ Rodrigues, passou na secção Create, onde se aposta num cinema de autor mais radical. Um objeto aberto a muitas interpretações mas sobretudo uma carta de desejo e nostalgia a duas Lisboas, a velha e a nova. Tão queer como insolente, é um filme marcado pela presença feliz de Isabel Ruth, precisamente o rosto marcado de Verdes Anos....Nos corredores do Southbank eram muitos os que se queixavam da abundância de filmes das plataformas. O Festival de Londres não tem pruridos e deu tapete vermelho às maiores apostas da Apple, Netflix e Prime Vídeo - é aí que está o verdadeiro dinheiro. O destaque foi para O Enfermeiro da Noite, de Tobias Lindholm, thriller com Jessica Chastain e Eddie Redmayne, belíssima surpresa a recriar um caso verdadeiro de um enfermeiro psicopata que terá assassinado mais de 400 pacientes entre os anos 90 e 2003. Um caso de tensão refinada, filmada com um livro de estilo repleto de nuances que reconfiguram o prazer do grande plano no grande ecrã - ironia das ironias, em Portugal só estará disponível na Netflix. Eddie Redmayne, o enfermeiro do título, tem uma interpretação daquelas para a História - dificilmente ficará de fora da temporada dos prémios..Também da Netflix, outro dos bons filmes em antestreia mundial, Lady Chatterley ' Lover, de Laure de Clermont-Tonnerre, adaptação segura e confiante do romance de D. H. Lawrence, com sexo explícito sim, mas uma luz positiva em torno de um caso de adultério na província inglesa. Uma fábula sobre o desejo feminino e um feroz manguito ao patriarcado institucionalizado. E tem ainda uma atriz capaz dos mais indeléveis milagres, Emma Corrin. Obviamente, por estes dias, qualquer filme com discurso feminista e realizado por uma mulher tem a vida facilitada nos festivais e Londres não é exceção. O mesmo aconteceu com outros dois filmes com muito hype neofeminista: Nanny, de Nikyatu Jusu, e Women Talking, de Sarah Polley. O primeiro vinha com fama de ter vencido Sundance e é uma história de terror com "temas" (das questões de raça à emigração africana nos EUA), mas não aquece nem arrefece, mas é Women Talking quem desilude a sério, sobretudo por não sobreviver ao hype que a Universal criou de filme de prestígio com damas de prestígio (de Frances McDormand a Jessie Buckley, passando por Rooney Mara e Claire Foy). Uma história de denúncia de violações e violência a mulheres numa comunidade religiosa no meio de nada na América. São quase duas horas de dor feminina num só décor com testemunhos previsíveis e aborrecidos. Uma sensação de vazio que provocou gargalhadas involuntárias mercê de diálogos fora do tom....Da Apple +, depois de CODA, mais um original a pensar nos Óscares, o bem estimável Causeway, de Lila Neugebauer, produzido e interpretado por Jennifer Lawrence, na pele de uma jovem veterana da Guerra do Afeganistão a regressar a casa após uma explosão que a deixou abalada. Um registo sóbrio e intimista para aquela que é a maior estrela da sua geração, aqui a tentar ganhar credibilidade num filme que faz vénia a O Regresso dos Heróis, de Hal Ashby. Não merece passar despercebido quando chegar ao streaming já no começo de novembro..Trish Tuttle, a diretora do festival, não se cansa de elogiar Onde Fica esta Rua ou sem Antes nem Depois, mas quando fala ao DN numa receção ao novo talento britânico, puxa a brasa à sua sardinha: "foi um ano muito forte do cinema britânico e conseguimos escolher filmes muito interessantes e provocadores, em parte devido a este mundo disruptivo e louco em que todos vivemos. E, claro, umas das tendências deste ano foram os filmes realizados por mulheres". O cinema de intervenção feminina marchou na margem sul do Tamisa..dnot@dn.pt