Por estes dias em que foi noticiada a libertação do comediante Bill Cosby, há dois anos condenado por abuso sexual, chega a uma plataforma de streaming portuguesa a minissérie que muitas publicações americanas disseram ser "oportuna" por estrear nos Estados Unidos na mesma altura em que a popular figura do show business foi presa. E, ao que parece, vai continuar a ser oportuna durante muito tempo. National Treasure acompanha o escândalo (fictício) de uma personalidade amada da comédia britânica que, no crepúsculo de uma sólida carreira televisiva, vê a sua imagem pública ser posta em xeque por uma mulher que o acusa de violação, vários anos atrás, com outros casos de assédio a surgirem em uníssono na sequência dessa primeira denúncia..YouTubeyoutubesgEyemOszjU."Eles acham que eu sou o Jimmy Savile", diz o protagonista com os seus botões. E é aí que se percebe de onde vem a inspiração do argumentista Jack Thorne. De facto, a minissérie baseia-se na Operação Yewtree, uma investigação policial lançada na Grã-Bretanha em 2012 após centenas de acusações de abuso sexual contra Jimmy Savile (1926-2011) terem revelado um perfil de predador sexual, quando, em vida, o estatuto de celebridade deste apresentador da BBC fez maravilhas pela sua impunidade, abafando as vozes de quem o denunciou. A operação foi de tal modo aguerrida que a certa altura ganhou contornos de caça às bruxas, lançando um número avultado de suspeitos na praça pública, com o objetivo de incentivar mais denúncias, das quais a maioria não deu em nada... Também esta complexidade do jogo mediático é abordada en passant na série de quatro episódios tensos, que estão longe de se prestar a uma leitura simplista da realidade..Sabendo de antemão que se trata de um drama à volta de alguém considerado um "tesouro nacional" ao estilo de Cosby e Savile, o espectador pode achar que o conteúdo está esgotado na premissa, ou que conhece esta história. Desengane-se: National Treasure é sobretudo um drama de família, e a sua trajetória vive de um conjunto de interpretações notáveis que vão alimentando a nossa perceção sobre o que podem ser factos ou zonas cinzentas desses factos. Desde logo, Robbie Coltrane, o ator conhecido pela personagem de Hagrid na saga Harry Potter, assume aqui a pele de Paul, o comediante no epicentro do escândalo, um homem cujo prestígio assenta numa parceria de décadas com outro comediante, Karl (Tim McInnerny). Pelos códigos de comunicação entre dois, nunca se sabe muito bem quando está a brincar ou a falar a sério, mas a dúvida que se instala no espectador - a dúvida que importa - é menos uma questão humorística do que uma evidência de vulnerabilidade e distância psicológicas habilmente trabalhadas pela câmara que se fixa no seu rosto. O mistério da culpa ou inocência confunde-se com os traços da sua expressão..DestaquedestaqueJack Thorne escreve cada episódio como uma bússola avariada de emoções, desafiando-nos para a leitura da expressão corporal dos atores..Depois temos a filha problemática, Dee (Andrea Riseborough, brilhante), uma jovem mulher toxicodependente em recuperação, que se debate com as memórias de infância à procura de esclarecimentos profundos, sem se dissociar da figura paterna, com quem partilha um humor idiossincrático. Mas no vértice da crise familiar está a esposa Marie, uma tremenda Julie Walters, atriz que encarna uma firmeza excecional enquanto suporte do marido, alguém que "escolhe acreditar" nele, tendo estabelecido cedo um contrato íntimo que lhe deu imunidade suficiente perante as infidelidades. À medida que os episódios avançam, a sua presença torna-se a lente através da qual se observa o caso com frieza de pensamento e maturidade..Realizada por Marc Munden, e vencedora de três BAFTAS, National Treasure é uma minissérie criteriosa que preenche o espaço vazio deixado pelas notícias quotidianas, sem que o seu interesse esteja dependente da familiaridade do assunto. A dinâmica do processo de defesa do acusado está lá, o clima mediático e as cenas de tribunal também, mas o que se testemunha aqui é mesmo o declínio de uma personalidade, no conflito entre o público e o privado. Não se teoriza sobre o "tema", não se faz exegese, não se oferecem sentimentos a preto e branco, e, acima de tudo, não se reproduz um caso-modelo..Enquanto produção britânica de excelência, National Treasure foca-se nas dobras humanas das suas personagens. Jack Thorne escreve cada episódio como uma bússola avariada de emoções, desafiando-nos para a leitura da expressão corporal dos atores. "Muito desta minissérie é sobre o silêncio e a maneira como as pessoas se olham enquanto falam", disse em entrevista à Channel 4..Porque, no fim de contas, a essência está na dúvida: "A ideia de que se vive com alguém há tanto tempo e se descobre que essa pessoa não é quem nós pensávamos, ou que pode não ser... A dúvida afeta todas as partes da investigação destes crimes. Não há evidência categórica que diga que esta pessoa é inocente ou culpada, é tudo muito matizado." E assim olhamos para Paul/Robbie Coltrane, como um vulto cheio de nuances, uma imagem por vezes desfocada, com uma banda sonora - de Cristobal Tapia de Veer - que se mete nos ossos.