Isabel Mendes Cabeçadas nasceu em Lisboa e tirou Direito na Faculdade Clássica, mas exerceu advocacia por pouco tempo. Convidaram-na a criar o Centro de Arbitragem de Conflitos de Consumo de Lisboa e achou que não era compatível com a profissão, embora pudesse acumular. Mas não queria a mínima suspeita sobre a sua isenção. O centro é de competência genérica para a resolução de problemas que envolvam transações na Área Metropolitana de Lisboa no valor máximo de cinco mil euros. Era um projeto-piloto, uma experiência na resolução de conflitos extrajudiciais, com uma duração de dois anos e meio. Abriu a 20 de novembro de 1989 e mantém as portas abertas..O que é que pensava fazer a nível profissional quando entrou para Direito na Universidade Clássica de Lisboa?.Queria seguir a carreira de advocacia, mas acabei por ir para o Ministério do Emprego, onde estive cerca de dez anos, num serviço que tinha que ver com conflitos laborais. Por essa razão, fui convidada a criar um mecanismo complementar ao sistema judicial que levasse a uma resolução rápida dos conflitos na área do consumo, um projeto-piloto apoiado pela Comissão Europeia..Qual era a situação portuguesa?.Estávamos em finais de 1988, início de 1989, e Portugal tinha avançado muito na legislação do consumo, só que a aplicação da lei era escassa. Os casos de consumo, pela sua natureza, não vão para o tribunal judicial, tem de se esperar, arranjar um advogado, há ali uma série de circunstâncias que levam a que uma pessoa não vá para o tribunal. A maior parte dos países optaram pela mediação, nós pegámos na lei da arbitragem porque entendemos que era importante aplicar o direito aos casos concretos, para se fazer pedagogia..Não havia nada do género na União Europeia?.Não, fomos os primeiros, sobretudo fomos dos primeiros a consolidar uma experiência destas. Tínhamos um prazo de dois anos e meio para desenvolver o projeto e, ao fim de dois anos, os resultados já indicavam que a experiência era válida. E a prova é que o centro abre em novembro de 1989 e, em 1991, o Ministério da Justiça qualificou-o como um processo complementar do sistema judicial. É pioneiro em Portugal, é pioneiro na Europa e deu lugar a outros meios de arbitragem, como os julgados de paz..Qual é a vantagem da arbitragem sobre a mediação?.A mediação permite que uma entidade estabeleça entre as duas partes um acordo para dar resolução à questão colocada. A arbitragem supõe um julgamento, pode ser um julgamento de direito ou através de um consenso entre as partes, mas de uma maneira geral o juiz aplica o direito e é mais rápido do que no sistema judicial..Qual foi o modelo em que se inspirou?.Quis conhecer um local onde a experiência estivesse a correr muito bem e outro onde estivesse a correr muito mal. Lembro-me de, na altura, o presidente da Câmara Municipal de Lisboa [Jorge Sampaio] me perguntar porque é que queria conhecer uma experiência que tivesse corrido mal, respondi que era para perceber o porquê..Que países visitou?.Estive na Bélgica, onde tinham julgados de paz e as coisas não correram bem. Era um meio pequeno e havia dificuldade em aproximar as partes, as famílias conheciam-se e tentavam resolver o assunto antes de ir para tribunal. E fui a Espanha, a Madrid, conhecer uma experiência que utilizava a lei da arbitragem para a resolução de conflitos. Percebi aí que era muito importante a aproximação das empresas aos consumidores. E, em Portugal, decidimos uma coisa inédita: que a arbitragem fosse promovida por um juiz, já não é assim em outros centros, mas nós continuamos a ter um magistrado..Para dar confiança ao sistema?.Nem mais, há uma confiança das partes no juiz que, no fundo, é um árbitro. De início, causou alguma estranheza, mas depois as pessoas perceberam. Por exemplo, a adesão das empresas de serviços públicos essenciais - hoje é obrigatória, mas na altura não era - foi por confiança no sistema. Na altura, o juiz era designado pelo Conselho de Magistratura, hoje já não é, mas o do Centro de Arbitragem de Conflitos de Lisboa (CACL) está cá desde o início, faz 30 anos..Pode concluir-se que é a mãe dos centros de arbitragem?.Não [ri-se]. Realmente, não tínhamos nenhum modelo para copiar. Criámos tudo desde a primeira folha e o processo venceu, tanto assim que se multiplicou, não só aqui como na Europa, acabou por se tornar uma referência. A Comissão Europeia vinha para nos apoiar durante dois anos e meio, depois terminava a experiência, e acabou por nos apoiar durante dez anos, fez do CACL o seu laboratório..Há muitas empresas a não cumprir o acordado?.O Centro de Arbitragem não tem razão de queixa, não temos uma estatística de casos resolvidos por acordo e em que as partes tenham voltado atrás, não há dados relevantes. Isso tem também que ver com a forma como o juiz acompanha o processo..Quando criou o centro pensava estar aqui 30 anos depois?.Não. Pensei que era preciso criar um meio expedito de resolução de conflitos, mas não sabia se ia resultar, pensava voltar à advocacia. Eu suspendi o exercício da advocacia porque pensava que esta função seria temporária..Qual era a sua especialidade jurídica?.Tratava de todo o tipo de casos, mas exerci privada muito pouco tempo. Veio logo este convite e achei que devia suspender a atividade. Pensei: "Vou relacionar-me com empresas e posso encontrar-me à tarde no escritório com uma empresa com a qual estive de manhã a fazer a arbitragem." Queria que o processo fosse absolutamente isento e tivesse idoneidade total e decidi suspender a inscrição. Não tinha essa obrigação, mas entendi, como diretora do centro, que deveria estar numa posição de absoluta isenção..Por uma questão de ética?.De ética, de consciência. Não queria que conotassem a minha decisão no Centro de Arbitragem com o facto de exercer advocacia. Ainda hoje, embora faça as convocatórias para arbitragem e conheça os processos, não me encontro com as empresas. Tenho o cuidado de não privilegiar o contacto com uma empresa antes do julgamento, depois de estar terminado recebo todos..Nestes 30 anos não pensou em sair?.É difícil quando uma pessoa se dedica a uma causa, vai sentir-se sempre responsabilizada pelo que de bom e de mau acontece. O vínculo permanece e nunca houve uma altura em que sentisse que poderia ir embora, em que dissesse: "Não sou necessária." Deve estar a chegar a altura em que mudarei a minha vida para uma situação de reforma, mas ainda não chegou aquele momento, além de que gosto muito do que faço. E ainda não senti que a sustentabilidade do centro estivesse assegurada, ainda carece de uma atenção cuidada..É uma preocupação constante?.Não deixo de me preocupar todos os anos com o orçamento do centro, para que sobreviva de uma forma digna e para que possamos manter a nossa atividade. Esperaria que tivesse havido maior evolução, até para favorecer um pouco mais as pessoas que aqui trabalham, e não tem sido possível. Mas esta ligação das pessoas ao centro é de anos e percebem que é uma atividade que se desenvolve de uma forma equilibrada, o que gratifica o trabalho..Porque é que não alcançaram essa folga financeira?.Nunca houve uma evolução definitiva para a estabilidade. O orçamento que temos hoje não é superior ao que tínhamos em 2012, não cresceu, só isso já cria problemas..Os consumidores pagam quando apresentam uma queixa?.Não, apenas pagam uma taxa de dez euros de utilização dos serviços e só nos conflitos que envolvam mais de 200 euros..Quantos são da equipa original?.O centro tem dez pessoas e quatro estão cá desde o início..É uma consumidora exigente?.Sou péssima, na medida em que o consumidor deve atuar de uma forma imediata, rápida. Só exerço bem os direitos de quem consome quando estou a defender o centro perante qualquer entidade, também somos consumidores de bens e serviços..E enquanto Isabel Cabeçadas?.Não sei se sou uma consumidora atenta. Sou com certeza uma consumidora atenta no ato de consumir, gosto de ler os contratos, de saber as condições. Mas a minha vocação para reclamar é quase nula..As letras pequeninas?.As pequeninas não sei, mas pelo menos tenho o cuidado de ver o que estou a comprar e como estou a comprar. Quem está a vender naturalmente que vai perspetivar as questões mais interessantes. É fundamental ter um documento que comprove as condições em que assinamos um contrato, que podem não ser as mesmas meses depois. Vivemos na era digital, mas é importante ter a documentação trocada com a empresa em que esteja explícito o que foi acordado..Não gosta de conflitos?.[Risos] Tento resolver os conflitos da melhor maneira, evocar situações que não estão corretas, não foram feitas da melhor forma. O que digo é que não sou tão atuante como, provavelmente, alguém pensaria por estar à frente de um centro de arbitragem..Compra na net?.Não..Não tem confiança?.Talvez seja um excesso de cuidado, mas não gosto de colocar o número do cartão de crédito na net..Há razões para isso?.Pertenci a um grupo de trabalho da UE sobre bens transacionados através dos meios eletrónicos e era uma expectativa tremenda. Entendeu-se que o número de consumidores ia crescer exponencialmente mas não cresceu tanto como se previa, exatamente porque as pessoas têm receio de passar alguns dados através dos meios eletrónicos. Talvez isso me tenha trazido algumas preocupações específicas, mas não desaconselho as pessoas de comprarem na net..Tem pena de coisas que deixou para trás?.Não sei o que é que poderia ter feito, sei que a minha atividade foi bastante completa. Não só exerci funções no centro como nos grupos de trabalho que a Comissão Europeia foi constituindo. O conhecimento que se vai desenvolvendo da própria ação, não só a nível nacional como comunitário, também gratifica, o que ajuda a equacionar as questões e a continuar..O que é que mudou nestes 30 anos?.Há uma maior consciencialização por parte dos consumidores, que foi um dos nossos objetivos, daí a nossa insistência nas sentenças. As sentenças são a aplicação do direito ao caso concreto e isso é formação, não só para o consumidor como para a empresa. Há uma maior consciencialização dos direitos..Mas isso acontece de uma forma geral..Sim, as pessoas estão muito mais informadas e mais atentas às condições dos contratos..Quais são os bens ou serviços que geram mais conflitos?.Os serviços públicos essenciais têm uma densidade grande de conflitos, o que foi crescendo porque se sofisticaram. São prestações de serviços muitas vezes em pacotes, que trazem outros serviços. A lei de bases de meios alternativos de resolução de conflitos obriga-os a aderir aos centros de arbitragem, precisamente porque os serviços públicos essenciais cresceram e sofisticaram-se bastante..Há alguma empresa em que aplicaria uma coima elevada pela reincidência?.Não faço esse juízo de valor. Se uma empresa recusar a arbitragem, é negativo para a própria empresa. E nós orientamos o consumidor para o tribunal judicial e damos uma certidão do processo, o que facilita muito a vida ao advogado. E o consumidor vai para o tribunal para obrigar essa empresa a estar presente, o que leva a que esta perceba que não valeu a pena a recusa. Devo dizer que a postura das empresas perante um meio arbitrário tem sido muito positiva, mais do que se esperava. Mas ainda há quem recuse a arbitragem e é bom que o consumidor peça uma certidão do processo e o faça seguir para o tribunal..Alguma vez sofreu pressões políticas?.Passei por vários governos, de vários partidos, nunca tive pressões da parte dos governos no sentido de conotar a minha pessoa com algum partido. E, se tive convites para algum cargo que tivesse que ver com o governo, recusei. No exercício destas funções, de que gosto muito, não me era possível andar a saltar para fazer qualquer assessoria..Sente que é caso raro nessa forma de estar?.Não me sinto minimizada pelo facto de me ter mantido aqui, agora isso não me trouxe benefícios financeiros, porque não acumulei duas e três funções, como podia fazer..E o futuro?.Estou requisitada ao Estado e vou mesmo pensar em reformar-me até 2020.