Foi em 2017 que começaram a circular notícias de que membros da comunidade LGBT estavam a ser presos e torturados pela polícia, ou mesmo mortos por familiares ou estranhos, na Chechénia. Atos hediondos descartados por Ramzan Kadyrov, o chefe dessa república russa e um dos homens fortes de Vladimir Putin, quando interrogado sobre essas alegações numa entrevista ao jornalista americano David Scott, em que não só diz que são calúnias, como afirma que não existem gays na Chechénia ("não temos gente dessa"), e se os há, "levem-nos daqui, para purificar o nosso sangue". É no mínimo perturbador ver o excerto da entrevista em que Kadyrov profere tais declarações com um ar de gozo, e afagando a barba, quando minutos antes assistimos a imagens de vídeos amadores que comprovam os referidos atos de violência, muitas vezes cortando-se no ponto em que o horror já não é tolerável à visão. Tudo isto está em Bem-Vindo à Chechénia (2020), um corajoso e premiado documentário de David France, que se estreia hoje no TVCine Edition (22h00), numa altura em que a escalada do conflito com a Ucrânia põe à vista as jogadas de comunicação da Rússia nos últimos dias..France, que começou a carreira na imprensa nova-iorquina nos anos 1980 e se tem dedicado a retratar o ativismo dentro da causa LGBT (o seu primeiro documentário, How to Survive a Plague, de 2012, colocava o foco na sida), decidiu avançar para este território perigoso depois de ler um artigo na The New Yorker sobre o trabalho heroico de ativistas russos que resgatam e acolhem homossexuais em casas de abrigo, situadas em Moscovo ou São Petersburgo, para tratar da sua saída do país na condição de refugiados. E Bem-Vindo à Chechénia centra-se no papel essencial de dois desses ativistas, que tanto vemos em operações delicadas para garantir a segurança das vítimas, como a relatar, em entrevistas individuais, o estado das coisas num lugar onde eles próprios não estão a salvo - na verdade, nem mesmo a pequena equipa de France o estaria durante o discreto processo de filmagem..Esta questão da segurança é muito importante e teve de ser contornada tecnicamente. Para preservar o anonimato dos indivíduos, em vez de recorrer aos meios tradicionais de ocultação de identidade, France usou uma tecnologia de "transplante digital", espécie de deepfake, que consiste em enxertar digitalmente no rosto dessas pessoas o de voluntários que se deixaram filmar para o efeito. E o resultado é impressionante: por um lado, causa alguma estranheza a ligeira perceção de uma mancha digital sobreposta, mas por outro, através dessa "máscara" que viabiliza uma autêntica expressão facial, acedemos aos sentimentos de quem detalha experiências inenarráveis ou vive o desgosto de, provavelmente, nunca mais vir a falar a língua materna, por não ter familiares a quem telefonar quando estiver longe..De entre os casos que se testemunham em Bem-Vindo à Chechénia -- e menciona-se o de um jovem cantor pop, Zelim Bakaev, desaparecido desde 2017 --, há dois em destaque. O documentário começa precisamente com a chamada de uma rapariga lésbica, Anya (nome falso), que expõe a um dos ativistas a sua situação: um tio descobriu a orientação sexual dela e ameaçou denunciá-la ao pai, um alto funcionário do governo, a menos que ela tenha sexo com ele... É este o nível de terror. Mais à frente, assistimos à sua meticulosa fuga, com as orientações do grupo de ativistas, mas o sucesso da operação não será um dado adquirido..O outro caso, que se revela especialmente comovente, é o de Grisha (também nome falso), um homem de 30 anos que foi preso, torturado e obrigado a fornecer dados de outros homens no seu telemóvel. Vemo-lo, pela primeira vez, num abrigo em Moscovo, confessando o seu desencanto com o povo checheno, que estimara até àquele momento. Um desencanto que o leva a fazer o que mais ninguém fez antes dele: tornar pública a sua história, contando-a numa conferência de imprensa e anunciando a sua queixa-crime contra as autoridades russas. Uma acusação que foi prontamente rejeitada, alegando falta de provas, e passou para as mãos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos..O caso de Grisha é, de facto, especial, porque a sua coragem para sair da sombra corresponde, no documentário, ao instante em que o seu rosto é libertado da anteface digital, dando conta da eficácia de dissimulação dessa tecnologia. Ficamos também a saber que o seu verdadeiro nome é Maxim Lapunov..Bem-Vindo à Chechénia é um drama sufocante, à flor da pele, com poucos momentos esperançosos, como a dita conferência de imprensa, a mitigar esta realidade tenebrosa de pessoas a serem mortas por serem homossexuais, "em pleno século XXI, num país laico", como lembra a certa altura o ativista David Isteev. E não há qualquer negação por parte do Kremlin que possa apagar aquilo que se vê nos vídeos aqui usados como interlúdios de esclarecimento para o espectador, fragmentos de crueldade que transpiram uma homofobia levada ao extremo. O documentário de David France devasta-nos, ao mesmo tempo que se firma na superioridade da bondade humana. O risco de vida não detém aqueles que lutam para que todos tenham direito a ela..dnot@dn.pt