O Brasil vai viver em 2021 a inédita situação de não ter Carnaval - nem na semana em que era suposto gozá-lo, nem talvez em nenhuma outra de mais um ano anormal. Especialistas no mais famoso de todos eles, o Carnaval do Rio de Janeiro, e uma protagonista do segundo desfile mais grandioso, o de São Paulo, classificam a situação como "devastadora", "brutal" e de "enorme tristeza". Nem a Segunda Guerra Mundial, de 1939 a 1945, ou a gripe espanhola, de 1918 e 1919, conseguiram mutilar uma parte da identidade brasileira - a covid-19 conseguiu. As máscaras neste ano são outras.."O Carnaval do Rio está cancelado, proibido, as escolas de samba e os blocos de rua já anunciaram que não vão desfilar sem vacina, a prefeitura já anunciou que vai coibir blocos clandestinos, então não há Carnaval, é uma situação inédita", resume Anderson Baltar, jornalista especializado em Carnaval carioca. "O desfile foi criado em 1932 e nunca deixou de acontecer, nem durante a segunda guerra [na qual o Brasil participou do lado dos aliados], por isso, 2021 é o primeiro ano da história sem desfile, acrescenta o jornalista escritor e pesquisador de Carnaval Aydano André Motta.."O impacto para as escolas, em particular, e para o Rio, em geral, é brutal, devastador: é muito pior do que não ter Brasileirão para os clubes do futebol, não há sequer comparação entre os universos", diz Motta, comparando duas paixões do país. "As escolas, por entenderem que o Carnaval é turismo e não cultura, vivem do desfile, tudo está atrelado ao desfile, logo o impacto de não ter desfile é muito pior para elas do que seria o impacto de não haver Brasileirão para os clubes", justifica..Só no Rio, estudo da Fundação Getúlio Vargas estima prejuízo de 5,5 mil milhões de reais. Somando Salvador, São Paulo e outras festas, ascende a 10 mil milhões, ou seja, mais de 1,5 mil milhões de euros.."Temos artesãos, costureiros, ferreiros, aderecistas, escultores, sambistas, cantores, mestres-sala, porta-bandeiras, todos, sem a sua única fonte de receita, é devastador", acrescenta Baltar. "A prefeitura vai adiantar verbas do próximo ano às escolas mas mesmo assim é algo que não resolve o problema no curto prazo, as escolas de samba maiores estão, de facto, muito prejudicadas, as menores então, nem se fala, o quadro é terrível."."O [prefeito] Eduardo Paes, por causa da crença de que político tem de ser otimista em vez de sincero, anda dizendo que vai fazer uma espécie de festa em julho, mas isso não vai acontecer...", diz por sua vez Motta. "Se a vacinação no Brasil fosse feita de maneira eficiente, nem assim daria tempo, mas como nem é feita de maneira eficiente, há pouca vacina e mesmo assim está sobrando dada a lentidão do processo, julho está fora de cogitação...Nas ruas, os tradicionais blocos também estão, logicamente, vetados por força do distanciamento social. "Os blocos de rua legalizados, cerca de 600, não desfilam, mas alguns clandestinos vão desfilar, isso é inevitável, não tenho dúvidas disso", acredita Baltar.."O Carnaval dos blocos de rua é outro Carnaval: por um lado, exige muito menos preparação do que o das escolas; por outro, os blocos, salvo exceções como o Bola Preta ou o Cacique de Ramos, não são, como as escolas, instituições importantes da cultura carioca", reflete Motta.."No entanto, além do tal impacto turístico, eles são importantes para a identidade do Carnaval do Rio de Janeiro e para a cidade: a melhor cara do Rio é o Carnaval, um evento libertário, diverso que neste ano não vai existir e isso é devastador para os cariocas."."E não só para o Rio, também para Salvador, Recife, São Paulo, Belo Horizonte, que têm Carnavais de rua importantes, o prejuízo causado pela pandemia é dramático para a identidade não só carioca mas brasileira.".Campeã do desfile de São Paulo em 2019, a escola Águia de Ouro vem trabalhando com 10% da sua equipa, conta Jacque Meira, diretora de comunicação. "Não estamos a realizar nenhum evento na nossa quadra social, só eventos remotos e virtuais."."A falta do Carnaval para nós é muito difícil, nesta semana já era suposto termos 99% do nosso trabalho pronto e estarmos a preparar-nos para entrar na pista, então o clima é de tristeza. Porém, a nossa principal preocupação é com as vidas, daí que cumpramos à risca todos os protocolos da saúde"..Como, aparentemente, o plano de vacinação contra a covid-19 em São Paulo está menos confuso do que o do Rio, há esperança de um desfile em julho. "O Carnaval em São Paulo está, para já, programado para os dias 9 e 10 de julho, vamos aguardando instruções e nos preparando, sendo que a nossa escola já tem samba enredo lançado desde setembro.".Um dos Carnavais que mais crescem no Brasil, o de Belo Horizonte, foi cancelado. O de Florianópolis, o mais famoso na região sul, com desfiles de escolas de samba e blocos de rua, inclusive o Bloco dos Sujos, que atrai milhares de foliões, também. "Não devem acontecer enquanto a população não é vacinada", sentenciou o prefeito Gean Loureiro..Recife, cujo Galo da Madrugada é o maior bloco de rua do mundo para o Guinness Book, desta vez não sai de casa. Na vizinha Olinda, famosa pelos desfiles com bonecos gigantes, também está tudo confinado. "O Carnaval de 2021 está suspenso em Pernambuco. Esta não é uma decisão fácil, é com pesar que anunciamos", afirmou o secretário estadual de Saúde André Longo..Até os Trios Elétricos, atração de Salvador, talvez o segundo carnaval mais famoso do país, ficam estacionados. O prefeito Bruno Reis suspendeu mesmo o feriado na capital da Bahia.