América gosta de pioneiros e em tempos de mediatização de Elon Musk um filme como Tesla é comida para uma reflexão contextual. A biografia do sérvio Nikola Tesla, inventor, pioneiro e futurista, nas mãos de Michael Almereyda, é tudo menos um objeto comum. Para já, convém recordar que este cineasta indie é o responsável por bizarrias dementes como Nadja (1994), Hamlet (versão moderna do clássico de Shakespeare que deixou meio mundo perplexo em 2000), bem como a sua visão anticonformista do polémico psicólogo Stanley Milgram em Experimenter - Stanley Milgram: O Psicólogo Que Abalou a América. E ainda menos comum por ser um festival de anacronismos, relatando os feitos de Tesla sem aceitar as regras do biopic: mostra-se o que não aconteceu e inventam-se fantasias: iPhones no século passado ou uma cena de karaoke com o inventor a cantar uma versão selvagem de Everybody Wants to Rule the World, dos Tears for Fears..Um anti-biopic, portanto, em que as personagens podem ainda ir ao Google à procura de factos. Para Almereyda, o facto não é uma artimanha do guião, é antes uma possibilidade a que se pode dar sempre a volta. Se quisermos, este Tesla personificado por um misterioso Ethan Hawke é uma figura de todas as irrisões possíveis, uma criação da imaginação em diálogo com o peso histórico e a sua herança de hoje. A ideia é precisamente baralhar - andar para trás e para a frente e chegar ao presente..Se a guerra com Edison nas correntes elétricas mudou a vida ocidental moderna, aqui o importante foi ir para além dessa disputa e entrar na mente e alma de um homem que acreditou sempre no seu poder intuitivo. De alguma forma, quando se pensa nos modernos automóveis que hoje têm o seu nome e são símbolo de uma modernidade, este filme serve para se perceber o carácter de alguém que viveu à frente um modernismo americano. Talvez por isso seja um filme à frente do espectador, onde o seu pós-modernismo é proposto com um sorriso matreiro que risca a gravitas da figura histórica..Em Tesla, o filme, está a sua contenda com Thomas Edison, bem como a forma como trabalhou com George Westinghouse. Os pontos altos e baixos de uma carreira sempre moldada pela teoria da corrente alternada. Mago do eletromagnetismo e da engenharia eletromecânica, o Nikola de Almereyda parece ser um corpo fora da água dos procedimentos da época. Uma veia excêntrica que o leva a optar sempre pelo menos óbvio, mesmo quando era subsidiado pelo milionário J.P. Morgan, do qual a filha tentou ser a sua amada..DestaquedestaqueUma coisa não se pode negar a Michael Almereyda: há um fascínio pela personagem.Se parte do filme assenta na "guerra das correntes" com Thomas Edison, a sua fase seguinte, quando se tornou coveiro de valas em Nova Iorque e viveu segundo a maior das misérias, é abreviada sem redundâncias. Claro que se percebe que depois foi apoiado para formar a Tesla Electric Company mas também se percebe, sem empolamentos, que era um péssimo gestor para fazer dinheiro com o seu talento. Ethan Hawke é perfeito a dar uma certa abstração a uma personagem que parece sempre mais perto do mito e da lenda do que do panteão dos seus feitos. Nesse sentido, sente-se que as intenções cinematográficas não são particularmente ilustrativas ou didáticas..Tesla, o filme, é então uma peça de cinema inimiga dos assomos do realismo, como se fosse uma fábula de um homem fora do seu tempo. E apesar de passar pela sua fase de glória, a partir de 1891, apenas é ao de leve que se sublinham os seus novos ensaios científicos a partir da corrente alternada de alta frequência, bem como um conjunto extenso de invenções para produção e uso da eletricidade, não se dando quase nenhum destaque ao motor elétrico nem ao acoplamento de dois circuitos por indução mútua, princípio adotado nos primeiros geradores industriais de ondas hertz. Nikola nunca terá parado, mas nesta versão americana fica-se com a sensação de que havia sempre uma nota de frustração..O seu transtorno obsessivo-compulsivo é visto como uma consequência da sua via artística. Em Tesla,o realizador tem essa teoria visionária: antes do matemático e do engenhocas, está um artista. Ethan Hawke é esse rosto, seja na glória da inauguração das turbinas das cataratas do Niagara, seja em qualquer uma das suas conquistas. Um rosto em vinco com uma ausência, com a tal abstração. Torna-se pois legítimo que na reconstituição de época e dos feitos, Almereyda tenha optado antes por telões evocativos ou por fotografias ampliadas, como se tivesse visto Os Maias, de João Botelho, e optasse pelo plágio. Trata-se de um efeito plástico que enche o olho, mesmo quando o forrobodó cénico se vai metaforizando numa certa conquista de vaidade visual..O cinema deste cineasta vive sempre deste tipo de provocações. Mas em Tesla, Michael Almereyda parece levar a experiência plástica a um ambiente experimental e a um patamar de encarnações de um sonho americano que chega aos nossos dias. Daí a quimera com Elon Musk, espécie de alter ego do Tesla de Ethan Hawke, mesmo quando ainda não veio a público falar sobre este filme. O Musk que cria carros elétricos, imagina filmes no espaço com Tom Cruise ou inventa o Paypal é uma versão deste Tesla. Homens do futuro que querem mandar no mundo neste presente, com efeito de karaoke ou não..A dada altura, o Tesla deste filme diz: "os princípios que descobri vão causar uma revolução tão grande que quase todos os valores e as relações humanas vão ser profundamente modificados". Parece uma frase de marketing do sul-africano. No filme de Almereyda, essa questão do ego do visionário é aquilo que o guião lida com pezinhos de lã. Este Tesla não era bem um egocêntrico, era apenas um tipo seguro da sua arte. Curiosamente, Elon Musk já disse numa entrevista que era mais fã do rival, Edison..Muitos vão ficar arrepiados com o lado chico-esperto desta visão sobre Nikola Tesla, mas uma coisa não se pode negar a Almereyda: há um fascínio pela personagem. Uma personagem que é contígua de um ideal de perdedor-vencedor na América capitalista..Vemos também Ethan Hawke, com o seu bigode de época, a dizer: "todos os meus sonhos são verdadeiros". Tesla, o homem, sonhava a verdade da matemática e da física. Elon Musk sonha o artifício do marketing. Tesla, o filme, é um ensaio de como a glória é algo para extrapolar....O ator que é símbolo para uma geração que o viu crescer depois de O Clube dos Poetas Mortos é o melhor do filme de Almereyda. Aos 50 anos, quatro vezes nomeado ao Óscar (duas das quais como argumentista), evita o que muitos fazem nas transformações em personagens reais. Hawke não quer ser Tesla, apenas prefere habitá-lo. .É esse o trunfo de uma composição que inclui o tal já muito celebrado momento Tears for Fears, prenda maior para quem resistir à sabotagem do real que Almereyda propõe. Só mesmo um dos maiores atores americanos poderia sair disto incólume.