Não é Biden que me preocupa. Preocupa-me é uma Europa "chamberlainizada"

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Há dias, um amigo português, fervoroso apoiante de Israel, perguntou-me se não me preocupava a entrada de Biden na Casa Branca. Respondi-lhe peremptoriamente que não. Biden tem um histórico de quase 50 anos como um dos senadores mais sólidos no apoio a Israel e à sua segurança. Kamala Harris é, certamente, uma senadora recente, mas as suas posições são, igualmente, pró-Israel.

O Gabinete de Biden, a ser composto nestes dias, é realmente progressista. Então, porque é que a única democracia do Médio Oriente haveria de se sentir desconfortável com este Gabinete que (felizmente) não representa as franjas mais radicais do Partido Democrata?

A recém-designada Secretary for Energy é a fundadora da Maioria Democrática por Israel - uma organização que acredita que os valores democráticos e a aliança com Israel andam de mão dada.

Mas, insistiu o meu amigo, "há diferenças entre a abordagem de Biden e a de Netanyahu no que respeita aos assuntos iranianos e palestinianos". Claro, concordei. E mais uma vez o surpreendi dizendo que não estava preocupado.

Biden foi, de facto, o vice de Obama, mas nunca foi o seu clone. Trata-se de um homem pragmático e equilibrado, mas, principalmente, de um político de compromissos no que isso tem de melhor: faz uma leitura da realidade que mantém o equilíbrio entre os valores que pretende promover e a avaliação ponderada das condições e dos obstáculos à sua frente.

O erro colossal de Obama ao deixar cair Mubarak, o presidente do Egito, em nome dos direitos humanos, foi trazer à eleição Mursi, da Irmandade Muçulmana. Sim, os tais que enforcam homossexuais, mulheres ditas adúlteras e queimam igrejas coptas. Este é o tipo de erro que não vai caracterizar a presidência de Biden.

Os desafios iminentes de Joe Biden vão ser o coronavírus, o seu impacto na economia norte-americana e os esforços para unir uma sociedade retalhada. Não há cidadão israelita que não lhe deseje o maior sucesso nesta empreitada.

Eu não acredito que o Médio Oriente - nomeadamente o acordo com o Irão - seja assunto a ser tratado com urgência.

É um erro acreditar que o ponto inaugural de Biden em relação ao Médio Oriente e ao Irão vá ser o ponto de encerramento da presidência de Obama. Houve desenvolvimentos na região, durante a presidência de Trump, que um homem astuto como Biden não irá ignorar. Uns positivos, outros menos.

Biden, ainda que ladeando Obama durante a assinatura do acordo com o Irão (JPCOA), não pode ignorar que a tese do então presidente colapsou por inteiro, nomeadamente a sua certeza de que havendo um acordo com o Irão relativamente ao nuclear se criaria uma dinâmica que o moderaria. Nada!

Não só o Irão continuou ardilosamente a trabalhar no seu programa nuclear, como tópicos fulcrais que não foram incluídos no acordo (por exemplo, a produção de mísseis terra-terra com ogivas nucleares) aumentaram exponencialmente a sua atividade subversiva e terrorista na região. Desde que o acordo foi assinado, o Irão aumentou a sua influência no Iraque, na Síria, no Iémen e no Líbano, que se tornou, aliás, um Estado não-funcional.

As mudanças positivas na região, como os acordos de paz e a normalização entre Israel e os EAU, Bahrein, Sudão e Marrocos não estão, definitivamente, em contradição com os interesses americanos.

"E Jerusalém?", perguntou, curioso, o meu amigo.

Bom, foi preciso a coragem do presidente Trump para reconhecer a realidade e para, em conformidade, transferir a Embaixada americana para a capital onde temos todas as instituições democráticas israelitas e seus símbolos: o Knesset (Parlamento), os ministérios, o Supremo Tribunal e o presidente do Estado.

Muitos foram os presidentes americanos que prometeram adotar essa decisão, e Obama foi um deles.

A Embaixada dos EUA manter-se-á, pois, em Jerusalém, acalmei-o.

O Médio Oriente que Biden vai encontrar ao entrar na Casa Branca resume-se a três alinhamentos: 1.º) o islamista xiita radical, liderado pelo Irão; 2.º o islamista sunita radical, liderado pela Turquia; 3.º um grupo de Estados que apoiam os EUA e o Ocidente, isto é, regimes árabes sunitas pragmáticos, liderados por Egito, Arábia Saudita, Jordânia, Marrocos, os Estados do Golfo e, claro, Israel.

Este alinhamento não é isento de problemas, especialmente no que concerne aos direitos humanos, e o tema será certamente parte do diálogo da Administração Biden com estes países, e bem.

Mas, como o colunista David Ignatius escreve no The Washington Post, "uma abordagem Biden sábia irá certamente encontrar formas de manter o contacto com os países que interessam, ainda que quando governados por regimes ditatoriais que suprimem os direitos humanos, como o Egito e a Arábia Saudita".

O título que Ignatius deu ao seu artigo foi "Biden deveria considerar uma "passividade criativa" no Médio Oriente". Convida-o a estudar a região tal como foi moldada nos últimos quatro anos e, mais importante, a não se apressar em regressar à mesa de negociações com os iranianos e outros. Nas palavras de Ignatius, que Biden "mantenha a arma no coldre, bem visível, e esconda os diplomatas nos bastidores por algum tempo. Que deixe os outros imaginarem e preocuparem-se com aquilo que a sua Administração tem escondido na manga".

A relação especial entre os EUA e Israel foi sempre um assunto bipartidário. Partilhamos os mesmos valores e uma sólida afinidade, ainda que no futuro (tal como aconteceu no passado) tenhamos divergências, como sucede nas melhores famílias. Saberemos como enfrentá-las sem fazer perigar uma relação privilegiada.

É a Europa que me preocupa. A Europa cansada que dá repetidamente a ideia de estar a perder a sua vitalidade. A que não entende que se deseja vida e liberdade tem de estar disposta a lutar por elas.

Mas, pergunta-me o meu interlocutor, "a União Europeia não é um projeto bem-sucedido?"

É. É um projeto baseado numa ideia incrível e nobre que substituiu rivalidades e guerras por cooperação e consolidação da paz no continente que, muito provavelmente, conheceu o gosto do sangue mais do que qualquer outro, respondi-lhe.

Mas se o sublime valor da paz é distorcido pela hipocrisia e pela bancarrota moral, esse é o indício de que algo correu mal durante o caminho.

Viste o comunicado de imprensa de Josep Borrell, alto representante da União Europeia, depois da eliminação de Fakhrizadeh, o cientista iraniano responsável pelo projeto nuclear do regime dos ayatollahs?, perguntei-lhe.

Repugnante. Quando o li tive vergonha de sermos, eu e Borrell, ambos chamados diplomatas. Ao lê-lo até se pensa que foi escrito para a Madre Teresa.

Duas semanas depois, o regime iraniano enforcou o jornalista e dissidente Ruhollah Zam.
"Qual foi a reação da União Europeia?", perguntou o meu amigo.

Foi muito corajosa, respondi-lhe sarcasticamente: cancelaram a participação de três embaixadores europeus num fórum económico que era suposto acontecer na semana passada, em Teerão.

Esta é a Europa Iluminada. A que constantemente arvora a bandeira dos direitos humanos é a mesma que se suspende de todas as inibições, prontificando-se a lamber as botas dos mesmos ayatollahs que declaram que o Estado de Israel tem de ser eliminado.

Esta é a Europa doente. Impotente. Disposta a pagar qualquer suborno para comprar o tempo com que vai adiando a confrontação com radicais e terroristas.
Esta é a Europa que é a única responsável pelo crescimento da direita extremista, racista e xenófoba.

Portanto, meu amigo, Joe Biden não representa nenhuma preocupação para mim.

A minha grande preocupação é a Europa que não aprendeu as grandes lições da história e que sofre da síndrome de Chamberlain.

A presidência portuguesa da União Europeia pode ser o início da correção que urge fazer. Esperemos que sim.

Embaixador de Israel em Portugal

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