"Não é à Igreja Católica que cabe avaliar credibilidade das vítimas"
Foi apresentada como uma comissão para lidar com o abuso sexual no seio da Igreja Católica, mas é na verdade só para a diocese da capital. E o decreto do cardeal patriarca de Lisboa que a criou, a 12 de abril, com o título Comissão para a Proteção de Menores, tem a particularidade de não usar a expressão "abuso sexual". Limita-se a dizer que "as comunidades e instituições católicas devem ser espaços de convivência feliz e segura, especialmente para os menores e os mais frágeis", e que a comissão servirá para "colaborar nesse sentido, superando tudo o que o contrarie".
O presidente da dita, o bispo auxiliar de Lisboa, Américo Aguiar, explica ao DN que "não há menção à questão em si do abuso sexual porque não quisemos focar nem afunilar nessa questão. Mas é óbvio que na nossa preocupação primeira está esse flagelo."
No decreto lê-se também que a comissão "seguirá a legislação civil e canónica, bem como as orientações da Santa Sé e da Conferência Episcopal Portuguesa", sem que fique claro o que tal significa. Também não se esclarece quais serão os objetivos específicos do grupo quanto ao assunto abuso sexual, nem quanto ao seu modo de funcionamento. E eventuais vítimas ficam sem pistas sobre o que podem esperar.
As entrevistas dadas por bispos antes da apresentação da comissão certificavam que o seu objetivo será "acolher denúncias, fazer a triagem, saber da verdade." Uma notícia da Rádio Renascença, emissora da Igreja Católica, define-lhe mesmo a "missão" como a de "analisar denúncias de abusos sexuais e averiguar a sua credibilidade, bem como ajudar a Igreja a formular respostas às mesmas." O elenco dos nomeados (nove) aumenta a confusão: além do bispo que preside e de um cónego, inclui um ex procurador-geral da República e atual juiz conselheiro jubilado, Souto de Moura, um ex diretor-nacional da PSP, Oliveira Pereira, um ex investigador da Polícia Judiciária, José Campos Braz, dois psiquiatras (Pedro Strecht Ribeiro e Vítor Cotovio), uma psicóloga forense (Rute Agulhas) e ainda uma "responsável pela área da comunicação do grupo Renascença".
A presença de três membros que tiveram funções no sistema judiciário e policial tende a reforçar a ideia de que se pode pretender levar a cabo algum tipo de investigação. Um juiz de tribunal superior contactado pelo DN, que prefere não ser identificado, é taxativo: "A investigação deve ser feita pelos órgãos de investigação criminal. O papel dessa comissão não pode ser nunca de substituição desses órgãos. Só vejo a sua existência como aceitável para ajudar pessoas a fazer denúncia às autoridades. Assumir a tarefa de "filtragem" não faz sentido."
Daniel Cotrim, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, acompanha as perplexidades do juiz: "O funcionamento desta comissão tem de ser claro. É preciso que se saiba qual o seu código de conduta e os princípios pelos quais se vai reger, assim como qual a sua articulação com as autoridades criminais. Não se pode correr o risco de as denúncias ficarem ali contidas."
O psicólogo, com 20 anos de experiência no acolhimento e aconselhamento de vítimas, não tem dúvidas de que uma tal comissão tem de "ter uma relação direta, clara e permanente com os órgãos de polícia criminal e com a justiça, que é a quem compete investigar e ouvir as vítimas ou alegadas vítimas. As denúncias deverão ser encaminhadas para as entidades a quem compete a investigação e avaliação destas situações. Esse é o caminho que a lei portuguesa indica. A validação das denúncias não pode depender de uma comissão que não está avalizada do ponto de vista legal para tomar essa decisão. E sobretudo não pode servir para as escamotear."
Inês Ferreira Leite, professora de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, assume a mesma incompreensão. "Triagem de denúncias? Acho que não cabe à Igreja Católica fazer isso. Se querem ter uma comissão para fazer um triagem do ponto de vista interno, para afastar logo a pessoa responsável, tudo bem. Têm todo o direito de fazer um pré-inquérito para efeitos internos. Essa comissão só me faz sentido nessa ótica, a de impedir acesso a crianças. Mas jamais no que respeita ao direito que a vítima tem de apresentar queixa."
Também outro penalista, André Lamas Leite, da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, torce o nariz: "Uma investigação privada contraria toda a orientação da política criminal e passa uma mensagem errada em termos de prevenção geral. Se há suspeita da prática de um delito, esse delito deve ser denunciado. Assim, estamos perante uma espécie de pré-inquérito sem lei habilitante. Nada há na lei que permita isto, embora também nada haja que o impeça."
Pode mesmo tratar-se, crê o advogado Garcia Pereira, "da tentativa de criar uma jurisdição à parte, prévia", num "pré-inquérito levado a cabo por uma instância sem competências para tal." E pergunta: "Que garantia há de que a triagem seja correta, e que não visa antes garantir que as denúncias não chegam à justiça?" Pode-se mesmo temer, conclui, que esta instância funcione como "um desincentivo à queixa." E há mais, prossegue Garcia Pereira: "Está-se a criar uma autoridade parajudiciária para inquirir vítimas sem lhes garantir a proteção própria do estatuto de vítima, tal como está conferida pela legislação no processo criminal?"
Teresa Quintela de Brito, professora de Direito Penal na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e na Nova Direito, comunga das preocupações expressas pelos anteriores citados: "Se essa comissão pretende ir para lá da responsabilidade disciplinar e saber se houve crime, colocam-se problemas do ponto de vista do Estado de Direito e da proteção da vítima. Porque pode haver contaminação da prova e coação sobre a vítima."
Nada disso, diz Américo Aguiar. "Fiquei depois com a preocupação de que se pense que vamos ser uma coisa paralela." Mas não é o caso, garante. "Temos esta comissão pluridisciplinar para haver quem nos possa recomendar os melhores procedimentos. A ideia é trabalharmos com as autoridades judiciais."
De que forma isso acontecerá ou sequer como a comissão vai funcionar, porém, não revela. "Achamos que isso não é assunto que deva agora ser partilhado, como as coisas vão acontecer. Mas no nosso entender achamos que no seu coração as pessoas entendem o que queremos fazer."
Ainda assim, o prelado explica: "O cerne da questão é que não posso equacionar que alguém que esteja imbuído de uma relação de autoridade e confiança, como é o caso de um padre, use essa circunstância para fazer mal a uma criança. Temos de fazer tudo ao nosso alcance para que não aconteça. Esta comissão também nos vai ajudar a pensar como evitar."
Mas há, como revelou o Observador, casos muito recentes em Portugal em que abusos de menores cometidos por padres foram comunicados à respetiva hierarquia e nada foi dito às autoridades. Qual é ou deve ser a orientação da Igreja Católica portuguesa nessa matéria? A hierarquia deve comunicar as denúncias de que tenha conhecimento à justiça?
Américo Aguiar diz não ter lido as reportagens do Observador. E pessoaliza a resposta: "Eu como bispo, como padre, como cidadão, não conseguiria dormir de consciência tranquila se um agressor ficasse à solta ou a vítima sem proteção." Certo, mas e a orientação da sua igreja qual é? "Eu pessoalmente perante uma pessoa que vem ter comigo ou chega a esta comissão, como vítima ou agressor... Se é uma pessoa que cometeu um crime, é minha obrigação convencer aquela pessoa a assumir perante a sociedade qual foi o seu erro. O regulamento da Conferência Episcopal impõe aliás aconselhamento à vítima para que apresente de imediato queixa às autoridades."
Abuso sexual de menores é crime público. Convencer alguém a ir às autoridades é uma coisa; outra é uma orientação geral de comunicação, por parte de uma instituição, à justiça. A pergunta é sobre a orientação da Igreja Católica em relação ao dever ou não de denúncia pelos seus membros. "No que diz respeito a esta comissão que foi criada na diocese de Lisboa a palavra de ordem é tolerância zero e transparência total - que nenhum agressor pense que fica sem ser denunciado. Porque se eu sei que uma pessoa cometeu um crime tem de ser denunciada às autoridades. E se tenho diretamente responsabilidade tenho de agir para que isso aconteça."
Saber que alguém cometeu um crime é, claro, diferente de suspeitar. Pelo que a resposta do bispo auxiliar de Lisboa mantém a indefinição.
De certo, pois, só que a comissão apenas irá "tratar" de casos atinentes à diocese da capital, e sempre por indicação prévia do cardeal patriarca Manuel Clemente, que é o bispo de Lisboa. Quem, diz Américo Aguiar, tenha algo a comunicar relativamente a abusos sexuais deve comunicar ao bispo; será ele a decidir o que sucede de seguida. Comunicar como? "De qualquer forma." Alguém que conheça um caso passado noutra jurisdição terá de dirigir-se ao bispo respetivo. E Américo Aguiar não sabe se outras dioceses criaram ou estão a criar instâncias semelhantes à comissão lisboeta: "Os outros bispos farão como entenderem. No fim de março vai haver um encontro de bispos - a assembleia plenária -- e pode acontecer que o assunto seja abordado."
Sobre a relação da comissão com as eventuais vítimas o bispo auxiliar de Lisboa também não abre o jogo. "Qualquer caso que nos seja apresentado e que tenha acontecido na diocese de Lisboa será tratado com todo o empenho e respeito pela vítima." Mas que é suposto acontecer? A comissão ouvir as vítimas? "Temos de salvaguardar o melhor para a eventual vitima - depende da idade da pessoa, da circunstância. Temos na equipa pessoas com muita experiência, um ex procurador-geral da república, um ex diretor nacional da PSP... Aquelas pessoas saberão o que se deve fazer em cada um dos casos, o que se deve fazer para salvaguardar aquela pessoa."
Questionado sobre o motivo pelo qual não existe na comissão alguém que represente as vítimas e a defesa dos seus direitos, o bispo hesita. "Acabámos de criar a comissão, o grupo de trabalho não está fechado."
Esta questão, a dos direitos das vítimas, surge como fulcral a Inês Ferreira Leite. "Preocupa-me que pretendam inquirir vítimas. Não lhe cabe avaliar-lhes a sua credibilidade e sobretudo não há necessidade de sujeitar a vítima a mais uma sindicância."
Precisamente, o Estatuto da Vítima (Lei n.º 130/2015, de 4 de setembro) não só estabelece que esta deve ser ouvida com cuidados especiais para evitar "vitimização secundária" -- incluindo-se nesses cuidados que tal ocorra "em ambiente informal e reservado", e que sejam criadas as adequadas condições para "evitar que sofra pressões" - como que, no caso das vítimas consideradas "especialmente vulneráveis" (entre as quais se incluem as de crimes sexuais), as inquirições possam ser "realizadas pela mesma pessoa, se a vítima assim o desejar" e que essa pessoa seja do mesmo sexo que a vítima, se for esse o seu desejo.
Prescreve-se ainda que se evite o contacto visual entre vítimas e arguidos e que aquelas possam prestar "declarações para memória futura" - para evitar que tenham de contar, ou seja reviver, várias vezes o que lhes aconteceu. Finalmente, a vítima tem de ser "acompanhada, na prestação das declarações ou do depoimento, por técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento previamente designado pelo Ministério Público ou pelo tribunal."
Se a comissão, como determina Manuel Clemente, "vai seguir a lei civil", tal significa que as determinações do Estatuto da Vítima vão ser observadas? Que estas serão, nomeadamente, informadas sobre os seus direitos, incluindo os prazos de prescrição e as possibilidades ao seu dispor na lei, incluindo pedir uma indemnização?
Por outro lado, se o tema da comissão são os abusos sexuais cometidos por pessoas afetas às Igreja Católica, por que motivo se intitula "para a Proteção de Menores"? Tal significa que só pretende receber denúncias de casos que envolvam vítimas que são agora menores? E quem, tendo sido abusado enquanto menor, seja agora adulto? A esmagadora maioria das denúncias surgidas nos últimos anos em todo o mundo, assim como os casos revelados por via de investigações da justiça (Pensilvânia, Boston e outros estados dos EUA), de comissões especiais nomeadas pelos estados (Austrália, Irlanda e Reino Unido) ou mesmo pelas igrejas nacionais (como na Alemanha) que fizeram audições e/ou examinaram os arquivos eclesiásticos, dizem respeito a abusos ocorridos há décadas.
Muitas vítimas só ganharam coragem (e consciência em relação ao que lhes sucedeu, até porque o assunto foi tabu até há muito pouco tempo) na idade adulta. Além disso, têm sido também revelados crimes sexuais atribuídos a membros do clero católico cujas vítimas foram adultos - quer seminaristas quer freiras. Esses factos estarão fora do âmbito da comissão?
A questão é colocada pelo DN a Américo Aguiar, que assegura que a ideia é ouvir toda e qualquer pessoa. E, mais uma vez, repete que "a palavra de ordem é tolerância zero e transparência total. Que nenhum agressor pense que fica sem ser denunciado."
Mas a dúvida sobre a forma como se pretende ligar com os casos "antigos" ganhou espessura perante as declarações públicas de Souto de Moura. O juiz jubilado disse a 2 de março na Rádio Renascença considerar "estranho que a maioria das denúncias sobre membros da Igreja católica que agora aparecem sejam de crimes que já prescreveram", e que "por mais grave que seja o crime de abuso sexual de criança, prescreve ao fim de 10 anos. Mas na maior parte dos abusos a prescrição é de cinco ou até dois anos." E acrescentou: "O importante não é tanto olhar para o passado, porque a maioria dos abusos praticados por membros da Igreja já prescreveu. Mas olhar para o futuro, criando condições para que os crimes não se repitam".
De facto a lei portuguesa, estabelecendo que a prescrição do procedimento penal relativamente aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores sucede ao fim de 10 anos ou quando a ofendido/a perfaz 23 anos, não permite o que sucede em muitos outros países - levar a julgamento acusados de abuso sexual várias décadas após os factos, como sucedeu por exemplo com o número três do Vaticano, o cardeal australiano George Pell, condenado em 2018 a seis anos de prisão pelo abuso sexual de dois adolescentes no final do século XX, quando era arcebispo de Melbourne.
A alteração dos prazos de prescrição foi precisamente uma das propostas da comissão independente, nomeada pelo governo australiano, que investigou o abuso sexual de menores entre 2012 e 2017 e concluiu que entre 1950 e 2010 7% dos padres do país foram acusados de abuso. Também o relatório sobre o abuso sexual nas paróquias do estado americano da Pensilvânia, divulgado em agosto de 2018, faz a proposta de alargar os prazos de prescrição, já que dos milhares de casos de abuso identificados só em dois - o de um padre que ejaculou na boca de uma criança de 7 anos e de outro que molestou dois rapazes durante um período largo de tempo, até 2010 - é ainda possível avançar para a acusação.
Não se percebe, porém, em que é que a prescrição penal importaria para uma comissão como a criada pelo Patriarcado. Se a ideia é "saber da verdade", ou seja, conhecer a dimensão do problema e identificar quem tenha abusado da autoridade e credibilidade que um título conferido pela Igreja Católica supõe para os crentes, não poderão importar nem os prazos de prescrição da lei penal nem tão-pouco se determinados factos ocorreram antes de o abuso sexual de crianças ser crime (em Portugal, o tipo penal só foi criado em 1998). Dir-se-á aliás que uma comissão como esta poderá ser mais útil exatamente para ouvir vítimas que reportem factos já penalmente prescritos.
Tendo as investigações efetuadas sobre os crimes sexuais na Igreja Católica revelado um padrão de encobrimento comum a todos os países, com as práticas criminosas quer de abuso quer de silenciamento e cumplicidade a atingir os mais altos graus da hierarquia e prolongando-se até à atualidade (como o prova o processo ao cardeal francês Philippe Barbarin, condenado em março a seis meses de prisão por encobrimento, por não ter comunicado à justiça uma denúncia que lhe foi feita em 2014 por um homem abusado em criança. Barbarin recebeu instruções do Vaticano, em 2015, para "evitar o escândalo público"), é natural que iniciativas como a do patriarcado de Lisboa sejam vistas com reticência.
Afinal, a própria comissão criada no Vaticano, logo em 2013, pelo papa Francisco para lidar com o assunto - a Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores (cujo nome o patriarcado de Lisboa copiou) - foi já posta em causa por dois dos seus membros, precisamente os representantes das vítimas.
A irlandesa Mary Collins e o britânico Peter Saunders, ambos abusados por padres enquanto adolescentes, abandonaram a comissão, ele em 2016, dispensado pelo Vaticano (disse a seguir que a saída se deveu a "ter tornado claro que não estava disposto a participar num exercício de relações públicas"), e ela no ano seguinte. Collins justificou bater com a porta com "já não ter esperança de que as coisas mudem", por ter constatado que "a crise tem sido tratada com belas declarações públicas e ações contrárias dentro de casa".
Também não correu muito bem uma iniciativa da Igreja Católica alemã para "saber a verdade". Esta convidou, em 2011, um reputado criminologista, Christian Pfeiffer, para criar uma equipa com o objetivo de de estudar os arquivos eclesiásticos e "lançar luz sobre casos encobertos de abuso". Pfeiffer seria dispensado dois anos depois, tendo acusado a hierarquia católica de querer "exercer poder de veto" nos resultados da investigação e de não permitir acesso total aos arquivos.
O estudo seria retomado em 2014 e o relatório apresentado em outubro de 2018. Reportou sobre mais de 38 mil documentos, datados desde 1946, de 27 dioceses alemãs. E revelou que quase um em cada 20 padres a exercer entre 1946 e 2014 fora considerado suspeito de abuso sexual, tendo sido identificado 1460 abusadores e quase 4000 vítimas, 1000 das quais acólitos.
Mais de metade das vítimas tinham menos de 13 anos na primeira vez em que foram abusadas; 83% dos ataques foram planeados, tendo lugar sobretudo em aposentos privados daqueles que levavam a cabo o abuso; em média os abusos ocorreram durante um período de pelo menos 15 meses. E um sexto dos crimes denunciados correspondeu a violação.
Ainda assim, um dos investigadores, Hans-Joachim Salize, professor de psiquiatria, afirma que se tratava apenas "da ponta do iceberg", já que a equipa não teve acesso direto aos arquivos e dependeu de funcionários das dioceses para ter conhecimento do que estes continham. E Pfeiffer, apesar de considerar que o estudo é melhor que nada, chama a atenção para o facto de que o estudo só tem dados nacionais, tornando impossível identificar dioceses que não puniram abusadores nem indemnizaram vítimas.
"A igreja católica vive da opacidade e compreendo que tenham medo e queiram barreiras de acesso à informação." A análise é de Inês Ferreira Leite. "Mas imagine-se que a comissão considera que 30% das denúncias não têm fundamento e daqui a 15 ou 20 anos percebe-se que afinal eram verdadeiras. Estaremos a responsabilizar esta comissão. Até por isso deviam ter muito cuidado."
André Lamas Leite vê outro risco: o de se manter, malgrado a enormidade do escândalo e a gravidade dos crimes, a imagem de uma instituição habituada a considerar-se acima de tudo e de todos: "É a ideia do privilégio da igreja: antes de entregar à jurisdição do estado, vou ver se, à minha luz, isto é crime. É um sistema paralelo completamente."
Uma ideia de privilégio que se prolonga no debate sobre se a hierarquia da Igreja Católica portuguesa tem a obrigação legal de comunicar à justiça casos de abuso sexual que lhe sejam denunciados ou de que se aperceba. Se noutros países, como França, EUA e Austrália, bispos e cardeais têm sido levados a julgamento e condenados por encobrimento, Souto de Moura sustenta que a lei portuguesa não obriga os responsáveis hierárquicos a denunciar. Há no entanto penalistas que defendem o contrário, embora considerando que a lei deve ser clarificada; é o caso de André Lamas Leite e Teresa Quintela de Brito.
Mas, mesmo que considere não haver essa obrigação legal, a Conferência Episcopal poderia determinar que todas as suspeitas de abuso fossem reportadas às autoridades - bispos já puseram publicamente essa hipótese. Mas não o fez. Como poderia abrir os seus arquivos a investigadores independentes. Em vez disso, optou por formar uma comissão que tem apenas jurisdição na diocese de Lisboa - e cujas intenções, como se vê, levantam muitas dúvidas.
Garcia Pereira sorri: "Imagine-se que uma coisa destas se passava na banca. Diziam que nomeavam uma comissão para decidir que práticas é que tinham relevo criminal para serem comunicadas às autoridades. Tenho a certeza de que não ficava toda a gente tão calada. Estamos a falar de abuso sexual de menores. Será que as pessoas acham que é menos grave que os crimes cometidos na banca?"
É também, releva André Lamas Leite, "uma questão de prevenção geral; está-se a passar a mensagem errada para a sociedade. Numa investigação que se deveria pautar pelos mais elevados padrões éticos, alegar-se que não é obrigatório avisar as autoridades é dizer: se houve notícia de um crime não se apressem."
Para este penalista, o abuso sexual de menores na Igreja Católica deveria ser objeto de uma investigação especial, dirigida pelo Estado. "Isto é um caso em que podia haver uma comissão de inquérito, por exemplo. Ou a Procuradoria-Geral da República criar uma equipa específica, coordenada por um procurador-geral adjunto do Departamento Central de Investigação e Ação Penal, que fizesse um inquérito. A própria PGR devia ter uma atitude mais proativa nesta matéria."