Não valia a pena esperar mais. Eduardo já há muito que sabia exatamente a profissão que queria seguir: ser informático. Viu no ensino profissional uma forma de adiantar esse sonho, mas a estrutura atual do sistema de ensino português tornou para si o caminho mais difícil do que para qualquer aluno do ensino científico-humanístico, o secundário regular. A história repete-se no percurso de milhares de jovens. Fruto do "preconceito" que existe em torno deste tipo de ensino e que "começou quando foi inserido de forma abrupta" nas escolas secundárias, alerta Joaquim Azevedo, investigador da Universidade Católica e membro do Conselho Nacional de Educação..Preconceito que, diz Joaquim Azevedo, se reflete na campanha Não Desistas de Ti, criada pela Associação Portuguesa para o Desenvolvimento das Comunicações (APDC), mas que é apoiada pelos ministérios da Educação e o do Ensino Superior. Uma iniciativa que visa a promoção do ingresso no ensino superior para estudantes dos cursos científico-humanísticos e profissionais. Algo que Joaquim Azevedo considera ser um sinal de desprezo perante a razão que levou à origem dos cursos profissionais: preparar jovens para o mercado de trabalho..O que critica é a promoção do ensino superior para estes alunos, o que considera ser um fator de preconceito. "Bem sei que com a queda da natalidade e com menos jovens nas escolas o ensino superior não vai captar tantos alunos e quer ir buscá-los onde quer que seja. Mas isto subverte as próprias expectativas dos jovens e as suas necessidades de desenvolvimento. Querem ir para uma atividade prática concreta? Porque é que vamos adiar mais a entrada no mercado de trabalho? Porque é que precisamos de uma campanha que os influencie a ir para a universidade?", questiona..O presidente da Associação Nacional de Escolas Profissionais (Anespo), José Luís Presa, explica que "o objetivo primário dos alunos do ensino profissional é entrar na vida ativa", mas considera que o ensino superior deve também ser um caminho para os estudantes que considerem relevantes aprofundar os seus conhecimentos.."São tantos os que vão parar ao ensino superior", lembra. Doze por cento dos alunos que saem das escolas profissionais, mais exatamente, "dados que não se têm alterado muito" ao longo dos anos. "Só não são mais porque há vários entraves", nomeadamente os exames nacionais..Governo quer facilitar acessos.Aos 26 anos, Eduardo Nogueira é programador informático numa empresa sediada no Porto. É a segunda em que trabalha desde que concluiu os estudos na Escola Profissional de Valongo, no curso de Gestão e Programação Informática. Quando o terminou, a grande maioria dos colegas "não queria ir para a universidade". Escolheram o profissional com os olhos postos na entrada no mercado laboral, assim que concluído o secundário. Mas Eduardo queria ir mais além, "aprofundar os conhecimentos" adquiridos até à data no curso..Não é que a aprendizagem no ensino secundário não fosse suficiente para conseguir emprego assim que o acabasse - afinal, admite que não conhece nenhum destes seus colegas de curso que esteja desempregado e fora da área. "Mas sabia que para chegar a programador de uma grande empresa teria de tirar uma licenciatura e aprender ainda mais", conta..Para ingressar no ensino superior, Eduardo precisava de realizar exames nacionais, assim como todos os outros alunos. A dificuldade surgiu aqui mesmo: tratava-se de exames com matérias que nunca tinha aprendido ao longo dos três anos de secundário. Ainda assim, estava determinado a candidatar-se à faculdade. Por isso, durante os três meses finais do 12.º ano, enquanto estagiava numa empresa a título curricular, investiu em explicações de Matemática - exame com o qual teria de concorrer. Meses depois, entrou no Instituto Superior de Engenharia do Porto. Entre os que da sua turma se inscreveram para o exame, lembra, Eduardo foi "o único" que conseguiu passar. E, por consequência, também o único que entrou no ensino superior..De acordo com um relatório da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, dos 23 625 alunos que concluíram os estudos secundários no ensino profissional, 84% (quase 20 mil) não ingressam no ensino superior. A realidade é inversa relativamente aos cursos científico-humanísticos, em que a proporção de alunos que concluem o secundário e fazem inscrição no ensino superior é de 80%. Atualmente, são 69 320 os alunos que frequentam o ensino profissional em Portugal, de acordo com os dados da PORDATA..Para grande parte dos estudantes, os exames são um fator inibidor na vontade de prosseguir os estudos. Como, aliás, ficou comprovado num estudo encomendado pela Direção-Geral do Ensino Superior que apontava o modelo de acesso ao ensino superior como um obstáculo para os alunos do ensino profissional que decidem candidatar-se às instituições académicas. O documento recomendava a alteração de regras..Face a esta proposta, o governo anunciou a criação de concursos especiais para estes alunos no acesso ao superior. Embora a medida não vá avançar para já, dada a falta de tempo "para uma mobilização dos estudantes", disse o presidente da Comissão Nacional de Acesso ao Ensino Superior, João Guerreiro..Mas as exigências atuais são, na perspetiva do antigo aluno do profissional Eduardo Nogueira, o normal que deve ser exigido. "Percebo que manter uma média mais alta num curso profissional pode ser mais fácil. Porque nas disciplinas gerais - como Português e Matemática - a exigência é menor (relativamente a um curso científico). O que até é injusto para alguns alunos do ensino regular que gostariam de entrar no ensino superior e que podem perder essa oportunidade para dar lugar a um aluno do profissional", reitera..Também o investigador da Universidade Católica Joaquim Azevedo considera que pedir a um estudante de um curso profissional que faça um exame como todos os outros alunos para entrar na faculdade não é mais do que "uma simples regra de jogo". "Assim como um aluno do ensino geral que queira acabar o secundário e ir trabalhar como mecânico tem de passar por uma formação qualquer, um outro do ensino profissional terá de estudar para um exame", explica, em entrevista ao DN..Nos termos da legislação atualmente em vigor, os alunos do profissional têm de fazer o exame de Português e de uma outra disciplina que o aluno escolhe, relacionada com o curso para o qual depois ingressará no ensino superior. A diferença que existe entre os planos curriculares, diz o dirigente da Anespo, é o grande problema.."Os alunos das escolas profissionais podem fazer os exames que o Ministério da Educação quiser que façam. Têm é de estar relacionados com as matérias lecionadas e aprovadas por este mesmo ministério, e fazer exames de matérias de outros cursos", o que atualmente não acontece, diz. E acrescenta: "O que está aqui em causa não é fazer ou deixar de fazer exames, mas sim fazê-los com as condições adequadas.".Ainda em setembro do ano passado, o ministro da Educação lembrava que não só o mercado de trabalho precisa de alunos que saiam do profissional "mas também as nossas universidades e o ensino politécnico precisam verdadeiramente destes alunos"..Mas esta é "apenas uma das questões" em torno das fragilidades que o dirigente da Anespo considera que o ensino profissional tem. "Aquilo que entendemos é que os alunos que passam do nível de qualificação 4 (equivalente ao 12.º ano) para um nível 5 (universitário) devem ter uma passagem direta, como é em qualquer país da União europeia", lança José Luís Presa. Isto é, para um nível similar àquele de onde saíram no profissional. "Porque o que acontece é que vão para o ensino superior assistir a aulas que já deram. As universidades começam por lecionar um nível de especialização mais baixo, sendo que a maioria dos que lá entram nunca teve contacto com aquela área antes. Ao contrário dos alunos do profissional", sublinha. O resultado, garante, é que "estes alunos acabam por ser considerados os melhores das universidades"..Preconceito começou com a inclusão do profissional nas secundárias."As pessoas pensam que o ensino liceal/geral é melhor e, na verdade, não tem nada de melhor. É uma falácia. Porque o ensino geral tem debilidades enormes", diz o investigador Joaquim Azevedo. Por isso, recomenda que a questão do preconceito receba mais atenção por parte das entidades competentes. "O Estado deveria ter muito presente esta questão do preconceito e atuar contra ele.".Uma problemática que praticamente sempre existiu, embora em diferentes moldes. O investigador da Católica lembra que "antes do 25 de Abril, todo o ensino técnico e profissional era criado no pressuposto de ser para os alunos com piores resultados ou menos capacidade de aprendizagem e para os economicamente mais desfavorecidos [sem hipótese de enveredarem pela faculdade]"..Após o 25 de Abril, o ensino técnico-profissional desapareceu. Voltaria com a lei de bases dos anos de 1980, sob "uma grande preocupação em criar um ensino profissional de grande qualidade", de forma a ser uma alternativa para os alunos escolherem por vocação e não pelos seus resultados escolares. "Criaram-se campanhas incisivas nas escolas, no final dos anos 1980, com o objetivo de explicar às famílias e aos jovens o que estava em jogo. O ensino profissional nasceu aqui", lembra..Mas no início do milénio, quando se decidiu que o modelo de ensino profissional (que existia em escolas profissionais) também passaria a integrar as escolas secundárias, "tudo voltou a mudar". "Porque o que impera nas escolas é o modelo liceal, que chegou antes do 25 Abril. As escolas disseram 'OK, aqui está uma boa saída para os alunos com negativas no 9.º ano e menos capazes'. Voltou o preconceito e com muito mais força do que anteriormente já tínhamos assistido. As pessoas começaram a aconselhar 'fazes o 9.º ano, podes passar com umas negativas e depois vais para o ensino profissional'", conta Joaquim Azevedo. O preconceito renasceu na "forma abrupta e sem cuidado" com que se inseriu este modelo nas secundárias..O mesmo não acontece na maioria dos países do norte da Europa, diz o presidente da Associação Nacional de Escolas Profissionais. "É uma questão cultural.".O que se presencia em Portugal é "transversal ao sul do continente" e "contrasta completamente com os países do norte, onde o normal é os alunos enveredarem por um curso profissional". Na Suécia, Noruega e Alemanha, "70% dos alunos do secundário estão em percursos qualificados, porque estar num curso geral não interessa a ninguém nem gera emprego", diz José Luís Presa. "Aqui, algumas empresas com políticas de recursos humanos bem sustentadas naturalmente preferem os alunos com qualificação profissional, porque sabem bem o seu valor. Até porque o que a maior parte das empresas precisa é de quadros intermédios e não superiores.".Formação profissional "chama a atenção no currículo".A história de Eduardo Nogueira assemelha-se à de Sara Costa. Tem 27 anos e é designer de comunicação, área na qual se licenciou através da Escola Superior de Artes e Design, em Matosinhos, depois de sair de um curso de artes gráficas numa escola profissional..A antiga aluna não tem dúvidas de que ter escolhido o ensino profissional foi uma vantagem. A começar pela experiência no ensino superior, em que sentiu "um grande avanço face aos colegas". "Sobretudo na parte do ritmo de trabalho, de já estar habituada a desenvolver projetos, de ter perceção de como poderiam ser levados à prática", conta..Garante ainda que a experiência que adquiriu no secundário tornaram o seu percurso profissional mais apelativo para o mercado de trabalho. "Chama a atenção no currículo, sobretudo quando se está a começar a trabalhar.".Contudo, Eduardo Nogueira acredita que "ainda não há o mesmo número de oportunidades para quem segue o ensino profissional e se fica por ali" (não envereda pelo superior). Embora confesse que "já se começa a assistir a um grande número de alunos saídos do profissional para grandes empresas". "Acho que estamos a seguir uma tendência típica americana", em que "os cursos são bem mais caros e, por isso, há muitos autodidatas que começam a aparecer nas grandes empresas".