Quando a vi, pareceu-me uma pessoa fria. Não sorriu, e olhou-me sem expressão, quando nos sentámos naquele bar de hotel em Berlim. Nadia Murad, que tinha 25 anos quando a entrevistei, no final do ano passado, acabara de publicar o seu livro, Eu Serei a Última (editado em Portugal pela Objectiva). Após mais de dois anos de escravidão, no Estado Islâmico, conseguira fugir, e estava agora à frente de um movimento, enquadrado pela ONU e orientado pela advogada de Direitos Humanos Amal Clooney, mulher de George Clooney, de denúncia do genocídio do povo yazidi e dos crimes sexuais cometidos pelo Daesh. Mas a sua postura era a de uma mulher subjugada..Conversámos durante cerca de uma hora, e nem tudo correu bem na entrevista. Apesar de Nadia falar inglês, o tradutor que a acompanhava, um yazidi do staff que a ONU reuniu para trabalhar com ela, não a deixava responder às perguntas. Só ele podia falar, e era notório que nem sempre traduzia exatamente o que Nadia dissera. Por vezes dava ele mesmo a resposta, antes de a jovem poder falar. Eu exigia ouvi-la, e ele acedia, contrariado..Tive a impressão de que o homem se considerava, mais do que um tradutor, uma espécie de protetor. De um modo que em vários momentos me pareceu dúbio. Falava-lhe muito próximo do ouvido, num sussurro, e frequentemente pousava o cotovelo na coxa dela..Mas o clima azedou seriamente quando eu quis falar de um assunto incómodo..A hostilidade dos grupos sunitas vizinhos para com os yazidis começou com um episódio que raramente é contado. Em meados de 2007, numa altura em que os EUA enviavam mais tropas para o Iraque, uma rapariga yazidi apaixonou-se por um muçulmano. Os pais da jovem, que se chamava Du'a Khalil Aswad, suspeitaram de que ela tencionava casar-se com o seu preferido, o que implicaria ser raptada pela família dele e converter-se ao islão. Para evitar essa vergonha, levaram a filha até um descampado e, com a ajuda de mais alguns parentes, apedrejaram-na até à morte. Gravaram em vídeo e divulgaram na internet e na televisão, o que provocou uma crescente hostilidade dos vizinhos muçulmanos, e serviria de pretexto para o genocídio que o Estado Islâmico cometeria mais tarde..Eu quis falar do caso, porque ele mostra que as tradições dos yazidi não são muito melhores do que as dos muçulmanos radicais. E Nadia, como quase todos os yazidis da região, nunca tinha, praticamente, saído da sua aldeia, pelo que era natural que não questionasse os costumes do seu povo. Mas o facto de ter sido raptada e escravizada não a teria agora feito refletir sobre a situação da mulher na sociedade?.Se fez, e eu acredito que sim, o tradutor não lhe permitiu exprimir a sua opinião. "Essa história foi um caso extremo", respondeu ele. "A família do rapaz muçulmano andou a exibir a rapariga pelas aldeias, com o seu noivo, numa atitude claramente provocatória. A família yazidi foi levada aos limites da paciência.".Interrompi-o: "Está a justificar o homicídio por apedrejamento?"."Não estou a justificar. Mas estes são os factos", disse o tradutor, ostensivamente agressivo. Nadia baixou os olhos, manteve o silêncio. É apenas uma mulher..O que parecia frieza era afinal racionalidade. Nadia é muito inteligente, mas nada emotiva, e talvez a esse traço de personalidade deva a sobrevivência. Ainda que me pareça que fugiu de uma escravidão para se lançar noutra. Sabe que ter sido aceite de novo na comunidade, ou no que resta dela, foi uma indulgência pela qual nunca deverá deixar de mostrar-se grata.