Naquilo que parece ser um momento franco de prazer degustativo, Vince Vaughn mastiga uma sandes ao lado de um silencioso e carrancudo Mel Gibson, visivelmente incomodado com o barulho. Estão ambos dentro de um carro, polícias sem distintivo, a vigiar uma logística criminosa. Quando o primeiro termina a iguaria, Gibson diz com secura: "Ámen. Tenho estado a ouvir e a cheirar isso nos últimos 98 minutos...".A hipérbole tem graça e, embora não seja para se levar à letra, não está longe do que o realizador deste Na Sombra da Lei, S. Craig Zahler, nos quer também fazer sentir: ligeiramente incomodados. E não serve apenas para esta situação caricata, que tem o tempo real de dois (longos) minutos. Na verdade, quase todo o filme assenta nessa paciência para tornar concretos os detalhes da convivência comum..Na sua anterior longa-metragem estreada em Portugal, com o espirituoso título A Desaparecida, o Aleijado e os Trogloditas (2015), Zahler já tinha deixado bem patente os seus traços autorais. Nesse filme, que fazia uma notável incursão pelo género "morto" do western, é igualmente o ritmo brando e seguro que salta à vista como inteligente labor narrativo - a propósito, importa lembrar que, antes de realizador, Zahler é um romancista, daí que os seus argumentos reflitam uma atenção redobrada pelas personagens..Aqui essas personagens são Brett Ridgeman (Gibson) e Anthony Lurasetti (Vaughn), os referidos polícias caídos em desgraça depois de se divulgar na televisão um vídeo que mostra as suas práticas agressivas. Suspensos e sem pagamento, cada um com as suas necessidades financeiras pessoais - o veterano vive num bairro problemático com a mulher, que tem esclerose múltipla, mais a filha adolescente, que volta e meia é vítima de bullying, e Lurasetti quer pedir a namorada em casamento -, os dois acabam por ceder à tentação do crime e envolvem-se na atividade do submundo....Começa por ser Ridgeman quem usa dos seus contactos, tomando conhecimento de um assalto a um banco em vias de acontecer, e Lurasetti junta-se a ele na operação de intersectar o roubo. Mas até que tudo isto ganhe contornos de ação, muita água vai passar debaixo da ponte..Paralelamente aos desafortunados agentes, há uma terceira personagem importante no painel. Henry Johns (Tory Kittles) é um afro-americano acabado de sair da prisão que se mete logo num esquema obscuro para poder, igualmente, dar melhores condições de vida à mãe e ao irmão: será ele um dos condutores da carrinha do dito assalto. O encontro cara a cara tardará, mas enquanto não acontece S. Craig Zahler dá azo à sua arte do diálogo (muitas vezes politicamente incorreto) espraiada ao longo de cerca de duas horas e meia de filme, que agarra o espectador não só pelo trabalho cirúrgico da cadência narrativa como pela cuidadosa mise-en-scène noturna e irrepreensível desempenho dos atores - inclusivamente dos secundários, a quem é dado contexto e substância humana..Ora um thriller que nos permite apreciar tudo isto com um verdadeiro sentido de contemplação não é qualquer coisa. Aliás, como verdadeiro interessado no cinema de género que é, Zahler tem a grande destreza de, ao mesmo tempo que o homenageia, transgredir a lógica dominante da ação vigorosa (que é, naturalmente, o que o cartaz sugere, ainda mais exibindo o rosto marcado de Mel Gibson). Mas desengane-se quem, depois do que se descreveu, achar que não há violência em Na Sombra da Lei: ela existe de diferentes formas, surgindo visualmente quase como um gesto minimalista e, no entanto, bastante gráfico e brutal. A pacatez cinematográfica não impede águas agitadas nas entrelinhas, já que, por exemplo, o racismo é um dos traços de carácter incómodos que desafia, com habilidade, a nossa empatia com os protagonistas - mesmo que nunca se converta num "tema"..Em entrevistas, Zahler faz questão de pôr isso em pratos limpos. O seu cinema não é político, mas a política, estando entranhada no dia-a-dia (sobretudo dos americanos), não é aqui convertida numa ficção bem-comportada. O que nos leva a duas das suas maiores referências - Don Siegel e Sam Peckinpah - que se diz que o próprio Mel Gibson identificou no mesmo instante em que leu o argumento e aceitou o papel. Com efeito, Zahler encontrou em Gibson, não só uma chamada direta para o charme da velha guarda como uma voz grave e suave perfeita para sustentar a estrutura dos diálogos: é um aspeto tão orgânico quanto sensorial..E depois temos uma espécie de melancolia a pairar nos olhos cansados do ator que, tal como a sua personagem, anda um pouco caído em desgraça. Sem forçar muito, Zahler restitui-lhe a aura com um filme de exímio artesanato, tanto na forma como no conteúdo. Este é um cinema que importa seguir.. *** Bom