É com Belle, do japonês Mamoru Hosoda, que a sala do São Jorge abre hoje as portas à 21.ª edição do festival que todos os anos traz a Lisboa a face mais universal do cinema. Enfim, não se entenda por "universal" o cinema dito infantil ou familiar. A MONSTRA está muito para lá desse rótulo. A prová-lo, as duas antestreias que marcam a abertura trazem visões verdadeiramente adultas da realidade contemporânea. Desde logo, o referido anime, Belle (19h30), que se estreia logo a seguir nas salas, mergulha no mundo virtual de uma aplicação para recontar a história de A Bela e o Monstro a partir da angústia de uma adolescente que se torna uma estrela online. Trata-se de uma deslumbrante e séria incursão do realizador de Mirai nos caminhos sinuosos da cultura da internet, que aponta para a interrogação da nossa identidade num tempo em que a fronteira digital baralha a definição do "eu"..Uma interrogação que não deixa de ser feita também, noutros moldes, em Flee - a Fuga, do dinamarquês Jonas Poher Rasmussen (amanhã, 20h00, Cinema City Alvalade). Um filme que mistura animação e técnicas do documentário para nos levar na narrativa intensa de Amin, um homem gay de origem afegã, que construiu uma carreira de sucesso na Dinamarca sem nunca ter revelado ao parceiro, de quem está noivo, as atribulações por trás da sua chegada ao país. Da Cabul dos anos 1980 à Copenhaga dos dias de hoje, passando por Moscovo, Flee testemunha o momento em que essa experiência é posta em palavras (e imagens), tocando nas feridas de um passado que é também um relato coletivo do que significa ser refugiado. Este percurso duro e comovente tem por base uma história verídica e encontra-se nomeado em três categorias dos Óscares: Melhor Documentário, Melhor Longa-metragem de Animação e Melhor Filme Internacional. A estreia está prevista para o dia 7 de abril..Com estas duas fortes antestreias, a MONSTRA começa em grande uma edição que passa, além do São Jorge e do City Alvalade, pelas salas da Cinemateca e Cinemateca Júnior, dando lugar a uma programação com mais de 400 títulos, de 46 países. Filmes que ajudam a pensar a relação entre a animação analógica e digital, este ano apontado pelo diretor do festival, Fernando Galrito, como um tópico específico: "O tema surge da necessidade de mostrar que o diálogo entre tecnologias sempre existiu e existirá. No entanto, quando olhamos para o encontro geracional vemos que mesmo os mais novos por vezes recorrem ao encontro entre o analógico e o digital. Um exemplo disso é a exposição que temos na Sociedade Nacional de Belas Artes, onde encontramos duas escolas mais antigas de grandes desenhadores, enquanto ilustradores e realizadores de animação em cinema - Joanna Quinn e Andrey Koulev -, em diálogo com uma nova geração de autores portugueses, do estúdio de animação do Porto BAP, que, sendo jovens, em muitos momentos dos seus trabalhos recorrem ao desenho ou à gravura.".A propósito de Joanna Quinn, do traço desta britânica nasce um dos objetos mais excêntricos da competição de curtas-metragens: Um Caso de Arte é uma deliciosa amálgama de obsessões mais ou menos artísticas que constrói o retrato de Beryl, uma heroína da classe trabalhadora criada em 1987 para a curta Girls Night Out, que voltou a aparecer em Body Beautiful (1990) e Dreams & Desires: Family Ties (2006). No novo filme, que está nomeado para um Óscar, ela faz trinta por uma linha para se tornar uma artista de renome....Para além do desenho, há mais técnicas que Fernando Galrito destaca de títulos da competição de longas: "No filme de Florence Miailhe [A Travessia], a viagem que utiliza animação de pintura sobre vidro, ou o filme do brasileiro Cesar Cabral [Bob Cuspe, Nós Não Gostamos de Gente], que utiliza marionetas de animação stopmotion, a animação 2D no filme da autora checa Michaela Pavlátová [A Minha Família Afegã] ou as marionetas em 3D de Até os Ratos Merecem o Céu, da dupla Denisa Grimmová e Jan Bubeníček". Esta expressão tecnológica reflete-se ainda no espectador, que tem disponível a aplicação A Minha MONSTRA, "com a qual se pode, em qualquer lugar, criar um espaço cénico em realidade aumentada e interagir e fotografar-se nele". Reforça Galrito: "São estes diálogos e transdisciplinaridades, em constante mutação, que nos interessa explorar, e colocar os nossos espectadores também como atores dessa criação.".No que toca à animação nacional, para além de valores seguros como Pedro Serrazina (Who Can Resist?), um dos belíssimos destaques será, sem dúvida, a curta-metragem de Laura Gonçalves, O Homem do Lixo. Depois de Água Mole (2017), cuja autoria partilhou com Alexandra Ramires, o novo filme é uma ternurenta recordação de um falecido tio que emigrou para França e de lá trazia todo o tipo de objetos para presentear os familiares. Um homem que trabalhava na recolha do lixo e tinha "sensibilidade para gostar de agradar", como a certa altura alguém diz no almoço de família em Belmonte onde tudo acontece: os desenhos doces e "simples" de Laura Gonçalves acompanham o fluxo das memórias contadas à volta da mesa, com as vozes de pessoas "genuínas" a dar carne e alma às ilustrações vivas..De referir também, entre o sangue novo, Degelo, de Susana Miguel António e Filipa Gomes da Costa, um conto sobre a atração física, com Linda Martini na banda sonora e a Baixa de Lisboa como cenário, e A Boneca de Kafka, de Bruno Simões, uma fábula inspirada na história verdadeira dos últimos dias do escritor Franz Kafka, que se dedicou a escrever cartas a uma menina contando-lhe as aventuras da boneca que ela havia perdido no parque Steglitz, em Berlim - aperta o coração ouvir este Kafka pela voz do ator Filipe Duarte, que morreu em 2020. Foi o seu último trabalho..Este ano a MONSTRA homenageia a Bulgária. Um país que conhecemos muito mal em matéria de cinema de animação, mas que, segundo o diretor, "foi um dos mais importantes e vanguardistas do Leste Europeu, a par do polaco. Atualmente mantém uma grande qualidade e das escolas saem anualmente novas gerações de grandes animadores.".Celebrando os 75 anos da criação do departamento de Animação no Instituto Nacional da Cinematografia Búlgara, o festival programa uma retrospetiva em que se recuperam nomes maiores como Todor Dinov, o pai do cinema de animação búlgaro, Ivan Veselinov, Stoyan Dukov, Slav Bakalov e Nikolay Todorov, ou, da atual produção, Andrey Koulev, de quem haverá uma exposição de desenhos e será exibido, em estreia mundial e com a presença do realizador, Dito Suavemente, uma aventura mágica noturna em forma de musical, à volta da mentira omissa de uma criança..Do Leste Europeu, de salientar também a escolha que a MONSTRA fez de manter os filmes russos em competição, apesar da onda de cancelamento da cultura russa que nos últimos dias se tem sentido. "Os realizadores e animadores russos foram os primeiros artistas, através de um abaixo-assinado com mais de mil assinaturas, a expressar-se contra qualquer guerra. Retirá-los da programação pareceu-nos que seria retirar pessoas que usam a criatividade e a arte para nos pôr a pensar sobre os problemas do mundo. Seria mais prejudicial para os valores em que acreditamos, do conhecimento das diferentes culturas, da sua aceitação, do diálogo com elas. Aceitá-los é, assim, também uma forma de lutar contra todas as formas de opressão ou violência", diz-nos Fernando Galrito, sublinhando que "a arte é a melhor forma de combater a guerra, de mostrar a diferença e de fazer sentir a todos que em todas as culturas existem pessoas capazes de criar, de sensibilizar e de nos emocionar"..E é esse o poder das curtas A Vida é Complicada, de Varya Yakovleva, tocante retrato de um sem-abrigo numa plataforma ferroviária, O Botão da Mãe, de Anna Kritskaya, bonita evocação, com traço infantil, dessa conversa que nunca acaba entre mães e filhos, por mais que estes últimos se afastem, Oh, Não!, de Ivan Maximov, giríssima acumulação de vinhetas cómicas que vão das situações mais banais às mais surreais, e o objeto experimental e cubista O Passeio de Vadim, de Sasha Svirsky, a refletir, em construções imagéticas e palavras, o efeito do confinamento e outras ideias abertas à interpretação política..dnot@dn.pt