Lembro-me bem da senhora Isilda, uma mulher muito bonita e viva, que, já com 91 anos, um dia me esclareceu no café quanto ao baptismo. Segundo ela, baptiza-se as crianças pequeninas, para receberem o Espírito Santo, que é mais forte do que Jesus, e que é o Espírito falador: é ele que dá às crianças a capacidade divina para falar..À sua maneira, a senhora Isilda tinha consciência do milagre que é falar. Quem algum dia reflectiu sobre isso - a capacidade de falar: proferir sons articulados que transportam sentido - falando, dizemo-nos a nós próprios, damos ordens, fazemos declarações de amor, e ódio também, ensinamos, contamos anedotas, fazemos paralisar uma pessoa, erguemos alguém caído, dirigimo-nos ao Infinito -, não pode deixar de cair no assombro interrogativo. Um corpo humano, pelo simples facto de falar, nunca deixará de constituir um enigma e mesmo um milagre pura e simplesmente. Aristóteles definiu o Homem como "animal que fala"..E as palavras não são arbitrárias. Vejamos quanto aos temas do título desta crónica..1. Embora em Portugal já se note que há quem não quer trabalhar, encostando-se ao Estado, o que é facto é que temos de trabalhar. A vida foi-nos dada, é um dom, mas, depois, precisamos de, numa bela e exigente expressão, ganhar a vida, e isso significa trabalhar. Mas lá está: trabalhar é duro, como diz o étimo da palavra trabalho: tripalium era um instrumento de tortura. Sem trabalho, não há vida, e trabalhar em conjunto, colaborando ( laborare + cum); penso nisso, logo ao pequeno almoço: quem semeou, quem cultivou, quem colheu, quem transportou o que eu como?...); viajo em autoestradas (desgraçadamente, até com buracos!) e não fui eu quem as construiu, num carro que veio donde e quem o montou e com peças que vieram donde e com saber feito ao longo de séculos...; e escrevo num computador...; e aprendi numa escola e em universidades e com professores... Mas é construindo o mundo que nos fazemos... E, por isso, vamos realizando uma obra: em inglês, trabalhar diz-se to work (o étimo é érgon, donde deriva no alemão a palavra Werk, com o significado precisamente de obra, e dizemos: "as obras completas" de alguém....2. Em breve, temos férias. Ora, cá está: a palavra latina feria, no plural feriae, tinha o sentido de "descanso, repouso, paz, dias de festa". No século III, a Igreja assumiu os dias da semana como dias de "comemoração festiva", enumerando-os como feria prima, feria secunda, tertia, quarta, quinta, sexta, ou, invertendo a ordem das palavras: prima feria, secunda feria, tertia feria, quarta feria, quinta feria, sexta feria. Daí, ao contrário de outras línguas, como o espanhol, o italiano, o francês, etc., que adoptaram a classificação romana baseada na divinização de um planeta: Lunes, Martes, Lundi, Mardi, etc., o português, ao seguir a designação eclesiástica, ter dado origem aos dias da semana como: segunda-feira, terça-feira, quarta-feira, etc. Que feira enquanto mercado esteja igualmente associada a feria deriva do facto de os comerciantes aproveitarem os dias festivos para vender as suas mercadorias..De qualquer modo, o importante é sublinhar, até do ponto de vista histórico e etimológico, o carácter festivo associado às férias. Isso é tanto mais significativo quanto isso mesmo está presente noutras línguas, que seguiram caminhos etimológicos diferentes. Assim, em espanhol férias diz-se vacaciones e em francês vacances. Ora, vacaciones e vacances têm o seu étimo no latim vacatio, com o significado de isenção, dispensa de serviço. Os ingleses em férias dizem que estão on holidays, em dias santos. Os alemães, esses têm Ferien ou Urlaub. Ora, a raiz de Urlaub é Erlaubnis, com o sentido de dias livres de serviço e trabalho..É necessário sublinhar que a Bíblia fez questão de dizer que Deus deu um mandamento de um dia feriado semanal, santo, sem trabalho, para que a pessoa fizesse a experiência de que não é uma besta de carga, mas um ser festivo. Tem de trabalhar - e duro -, mas não é besta de carga..Afinal, se pensarmos bem, as férias não têm como finalidade última ser um intervalo no trabalho para repor as forças, em ordem a trabalhar outra vez e mais. As férias têm o seu fim em si mesmas: a experiência de que o ser humano é um ser festivo. É preciso ler e escrever poesia, dançar, apanhar sol na praia, no campo, na montanha, ouvir música, que nos remete para origens imemoriais e para a transcendência utópica toda. É preciso reaprender a ver o sol a nascer no Oriente e a pôr-se no Ocidente e a exaltar-se com a lua enorme - cheia - ou pequenina que nem um fio, e com o alfobre das estrelas: isso que na cidade não se vê. É preciso voltar às alegrias simples: contemplar uma simples folha de erva, acolher o perfume de uma rosa sem porquê, como dizia Angelus Silesius, exaltar-se com o mistério de um rosto humano. É preciso ter tempo para ouvir o silêncio: haverá milagre maior do que estarmos cá? Se se for fora, encontrar-se com culturas outras e diferentes modos de ser ser humano: como americano, asiático, africano e, de modo mais concreto, chinês, ugandês, mexicano (nestes tempos de globalização, que Deus nos livre da uniformidade!). É preciso ter tempo para a família e para os amigos. Para andar solto. Para dialogar com o Infinito. Para contemplar e criar beleza: não é ela que redime o mundo, como disse Dostoievski?.Padre e professor de Filosofia. Escreve de acordo com a antiga ortografia