Foi uma oportunidade que bateu à porta de Francisco "Fininho" Sousa, um dj, produtor e investigador português que nos últimos anos tem sido um verdadeiro arqueólogo da música dos países africanos de expressão portuguesa - tanto como membro da dupla Celeste/Mariposa ou enquanto produtor executivo de compilações dedicadas a essa temática..Voltemos a esse dia, quando alguém lhe tocou à porta da casa nova e, ao abrir, deu de caras com o produtor francês Fabrice Henri, mais conhecido por Guts, por ter sido com esse nome que foi um dos pioneiros do hip-hop no seu país. "Como não tenho redes sociais, essa foi a única forma de chegar a mim", recorda Francisco ao DN..A ideia de Guts era fazer mais uma coletânea com música antiga dos Palops, a exemplo do que Francisco já tinha feito anteriormente, na aclamada compilação Space Echo: The Mystery Behind the Cosmic Sound of Cabo Verde, que teve cinco edições e ganhou vários prémios internacionais. "Ele queria fazer algo do género, mas eu sugeri algo um pouco mais megalómano, que passava por criar uma banda intergeracional e colocá-la a tocar temas antigos, nunca antes gravados em disco, mas com uma abordagem mais atual e urbana", recorda..Para sua grande surpresa, o francês deu-lhe total carta-branca para fazer o que bem entendesse. "Foi uma surpresa que aceitassem. Aliás os músicos até acharam o orçamento que pedi muito elevado, mas depois até acabou por ser o dobro, devido a um subsídio do Ministério da Cultura francês", conta..Pouco tempo antes deste encontro, Francisco tinha ido à Guiné-Bissau, numa das suas "muitas viagens de mochila às costas, à procura de música". Enquanto por lá andou, percebeu não só a riqueza musical do país, mas também que "a Guiné é uma espécie de parente pobre dos Palops no que à música diz respeito e esta era uma forma de começar a contrariar isso"..O nome escolhido para o projeto foi Bandé-Gamboa, que remete para o animado bairro de Bandé, em Bissau, e a famosa praia de Gamboa, em frente à capital de Cabo Verde, Praia, considerada o berço do Funaná. Acabou por não ser só só uma, mas duas, as bandas criadas, uma em cada país, envolvendo um total de 17 músicos. E para unir isto tudo surgiu naturalmente o nome de Amílcar Cabral, o ideólogo da independência dos dois países, que segundo os seus planos deveriam ter-se tornado num só. "Pareceu-me um belo pretexto para fazer um disco em memória a Amílcar Cabral, que continua, ainda hoje, a ser uma personagem histórica quase invisível em Lisboa", salienta Francisco..O disco, intitulado Horizonte - Revamping Rare Gems from Guiné-Bissau and Cabo Verde, é lançado esta sexta-feira, através da editora parisiense Heavenly Sweetness e é apresentado como "um híbrido entre uma compilação e um álbum de estúdio". Centra-se apenas em dois estilos musicais, o funaná cabo-verdiano e o gumbé guineense.."Quando um músico não tem o que comer ou vestir, não pode ter sucesso. É por isso que a Guiné ainda não tem nenhum artista de primeira linha mundial, como existe, por exemplo, em Cabo Verde ou em Angola. E isso é muito injusto, tendo em conta a riqueza musical do país", defende Francisco, que escolheu os músicos e o repertório cabo-verdianos do disco, mas para a parte guineense contou com o auxílio do músico guineense Juvenal Cabral..O também fundador dos Tabanka Djaz assumiu assim a direção e produção musical do disco na Guiné-Bissau e, ao mesmo tempo, cumpriu também um sonho antigo, como revela ao DN: "Abracei este projeto como se fosse meu, porque já há algum tempo que andava a pensar em fazer algo parecido, no fundo juntou-se a fome com a vontade de comer", diz com humor. O músico já tinha até uma seleção prévia de alguns temas, por si recolhidos, que mostrou a Francisco Sousa, quando este lhe apresentou o projeto, e dos quais acabaram por escolher seis.."Consegui recuperar algumas das bobines originais na Rádio Nacional, que era onde os músicos gravavam na altura. Foi muito especial para mim tocar estes temas, porque foi a ouvi-los na Rádio Nacional que me fiz músico", recorda. Juvenal espera agora "que o gumbé comece finalmente a chegar aos grandes palcos internacionais" e possa um dia rivalizar, em termos de popularidade, com o funaná cabo-verdiano ou o semba angolano, embora reconheça que ainda há muito a fazer.."Após o primeiro golpe de estado, em 1980, houve um retrocesso no desenvolvimento que estava a ser alcançado desde a independência. E quando falta tudo o resto, é natural que cultura fique para último, como também acontece agora na Europa, por causa da pandemia", sublinha. Pela mesma razão, a apresentação ao vivo de Horizonte, prevista para daqui a uns dias, em Paris, foi também adiada para dezembro, mês em que, segundo Francisco Sousa, o coletivo Bandé-Gamboa também deverá atuar em Lisboa. Certo é que, mais tarde ou mais cedo, o gumbé vai mesmo chegar aos grandes palcos - Amílcar Cabral haveria de gostar disso.