Numa pequena coluna publicada no jornal The Guardian, Elena Ferrante foi a primeira a congratular-se por Maggie Gyllenhaal, despida da pele de atriz, escolher adaptar um dos seus livros: "Há algo muito mais importante em jogo do que o instinto de proteger as minhas próprias invenções. Outra mulher encontrou neste texto um bom motivo para testar as suas capacidades criativas." E, de facto, diante do filme acabado, sente-se em A Filha Perdida qualquer coisa de território de experimentação, revelando a sensibilidade de Gyllenhaal atrás da câmara numa leitura visual que tanto nos aproxima da filigrana narrativa da escritora como projeta uma tradução íntima da realizadora. Terá sido a correspondência de Gyllenhaal com o universo mental da personagem (neste caso, também narradora) que a atraiu para a possibilidade de uma adaptação. Dir-se-ia um universo com um fio de thriller que conduz a uma verdade pouco agradável..O filme em si assenta numa impressão de incómodo quase permanente, que é antes de tudo parte do fascínio da literatura de Ferrante, a autora italiana que melhor consegue chegar às dobras difíceis da intimidade feminina, sem medo das palavras que condensam sentimentos estranhos ou, pelo menos, que tendem a ser ocultados por vergonha. Com o título A Filha Obscura, a história está publicada entre nós pela Relógio d"Água, no livro Crónicas do Mal de Amor (com um prefácio de James Wood intitulado Mulheres nos Limites), e aí encontramos confissões tão límpidas e pouco convencionais como: "Observava as minhas filhas quando estavam distraídas, sentia por elas uma complicada alternância de simpatia e antipatia.".É esta mãe de sentimentos "antinaturais" que Olivia Colman encarna aqui com uma subtileza fora de série. No início nem sabemos bem porque é que a sua presença sugere uma ambivalência semelhante à da citação (simpatia/antipatia). Há algo de espinhoso nesta mulher de 48 anos, Leda, uma professora universitária inglesa que chega à ilha grega de Spetses para umas férias. Cedo, o descanso, a leitura e os banhos de sol são interrompidos por uma família grecoamericana barulhenta que se comporta como se a praia fosse propriedade sua - uma atitude que gera alguma hostilidade no momento em que a protagonista se recusa a mudar de guarda-sol e cadeira para lhes dar ainda mais espaço. Pouco depois, o episódio do desaparecimento de uma criança do clã, encontrada por Leda, muda os termos da relação entre as duas partes, e, para além disso, há um vínculo invisível que liga Leda a uma mulher daquela família..Na verdade, a condição de observadora é aquilo que vai revelando a sua interioridade, já que Gyllenhaal, responsável também pelo argumento (premiado no Festival de Veneza), optou por omitir a narração na primeira pessoa e confiar aos olhares e ao não-dito das suas atrizes a tensão mais subterrânea. Entenda-se: ao observar Nina (Dakota Johnson), uma jovem mãe esbelta que deixa transparecer um certo desconforto perante as exigências de atenção da sua filha pequena, Leda/ /Colman começa a ser invadida por memórias da sua própria maternidade, do seu próprio desconforto enquanto jovem académica que tentou gerir as suas ambições de carreira e a criação das duas filhas. Essas sequências de flashback, em que Jessie Buckley (em sintonia perfeita com Colman) interpreta a Leda de 20 e tal anos, funcionam como complemento para descodificar a personagem no presente, levantar um pouco o véu sobre o mistério da sua postura imprevisível..Instalando uma sensação de estranheza desde o princípio, A Filha Perdida não dissipa a sua complexidade feminina à medida que dá um vislumbre dos fantasmas interiores de Leda. Pelo contrário. O grande achado de Gyllenhaal nesta estreia na realização é permitir que o retrato da protagonista seja construído ao sabor dos seus impulsos inexplicáveis, que viabilizam o suspense. "As coisas mais difíceis de contar são aquelas que nós próprios não conseguimos compreender", lê-se nas primeiras páginas do livro. E a realizadora assumiu essa abordagem adulta do indizível e do irracional como a única que serve o desejo da câmara. Aquela em que a exímia linguagem corporal de Colman, mulher no limite, vai dando expressão a um caos muito subjetivo e feio - "feio" dentro dos códigos da expectativa social que se deposita nas mulheres..É raro um filme arriscar com tanta confiança no movimento interior que é apanágio da ficção literária sem recorrer a uma bengala óbvia de raconto. Ao mergulhar na cabeça de Leda, nas texturas emocionais do seu passado, refletidas num corpo sempre na defensiva, Maggie Gyllenhaal, com a absoluta cumplicidade de Olivia Colman, produziu no ecrã um outro tipo de heroína, "alguém que causou danos provavelmente irreparáveis a si mesma e às suas filhas. O que quer que isso signifique". Palavras da realizadora ao The Washington Post, numa resposta que recusa a punição ou o juízo moral: "Ela é uma heroína para mim porque é corajosa o suficiente para ir até às partes mais sombrias, dolorosas, vergonhosas dentro de si e dar uma vista de olhos. É aí que está a vida.".dnot@dn.pt