São 45 postais que o líder do movimento pela independência da Guiné-Bissau e de Cabo Verde escreveu à mulher, Ana Maria, entre dezembro de 1966 e 1972. O último data de poucos dias antes do seu assassinato a 20 de janeiro de 1973, em Conacri, por dois militantes do próprio partido. Postais que enviava de várias cidades onde participava em reuniões políticas para afirmar o partido na luta contra a dominação portuguesa..O primeiro postal foi enviado de Genebra, o segundo do Cairo, o terceiro de Nicósia, o quarto de Argel... Há muitos outros, enviados de Roma, Estocolmo, Argel, Bucareste, Dakar, Trípoli, Adis Abeba, Rabat ou Túnis, em que o dirigente se transforma num homem apaixonado e conversa com Ana Maria de Sá (Cabral). Um parêntesis que usa nos primeiros postais, antes de passar a designar a destinatária por companheira, ou Madame quando anda em países francófonos..É principalmente uma história de amor a que é relatada no álbum lançado nesta semana, Itinerários de Amílcar Cabral, onde surgem estes postais, a transcrição do texto manuscrito e um enquadramento. O amor domina, mas como em muitas cartas de namorados, também surgem queixas de Amílcar por Ana Maria não o ter querido acompanhar (como no postal enviado de Nicósia em 1967, ao mesmo tempo que no espaço que lhe resta relata a atividade política: "Tenho trabalhado muito e, pelo que me dizem, bom trabalho. Ao serviço do nosso povo e do nosso partido.".O fim dos anos em que não tornara públicos estes postais terminou nesta quinta-feira, na sessão de lançamento realizada no Grémio Literário, em Lisboa. Foi aí que Ana Maria Cabral justificou ter autorizado a publicação deste livro, referindo que o volume "não têm nada de mais se não, a partir de um conjunto de memórias até aqui íntimas e privadas, tornarem-se agora públicas". Não deixa de afirmar que decidiu partilhar estas memórias "com o público em geral, pois como devem calcular esta decisão não foi fácil e só o fiz por uma razão muito simples: acreditar que possam inspirar gerações mais novas e o aparecimento de vários Amílcar em todo o mundo, em especial nos nossos países - não para lutar pela independência porque já a conquistámos -, mas pelo progresso e o bem-estar de todos os nossos povos"..Os postais são por norma escritos sem emendas e de forma escorreita, não deixando de enviar repetidamente beijos e abraços para o seu filho Raul e Aristides Pereira, o líder que lhe sucederá após a morte..Outra particularidade é a escolha das imagens que ilustram os postais. Tanto pode ser um pôr do Sol marroquino, quando participava das reuniões da OUA (Organização da Unidade Africana), como uma avenida onde estão os bustos de vários heróis da URSS, país onde esteve a pedir apoio militar para treinar os quadros do movimento. A fotografia do primeiro faz que escreva algo entre o amor e a política: "Um pôr do Sol tempestuoso mas belo como a rebelião." A fotografia do segundo, escolhida para "os amigos [soviéticos] não ficarem ofendidos", afinal nesse dia tinha sido noticiada mais uma vitória espacial da União Soviética..Quanto aos postais mais íntimos, está o enviado de Adis Abeba (25.06.1971) com um rosto de mulher na capa, em que Amílcar Cabral escreve: "Esta deve ser uma das expressões de mulher das mais belas do mundo. Mas será de certeza a segunda, porque, para mim, a primeira é tu, meu amor." Não esquece o lado político no parágrafo que se segue: "Encontrei vários chefes de Estado e almocei com o Senhor. Depois te conto." Em seguida, regressa à intimidade ao referir que "por todos os lados, gente que se parece contigo, que, se fosse necessário, não me deixa esquecer-te.".O lado mais romântico e ao mesmo tempo o lado bastante político de Cabral surgem reunidos num postal enviado da Suécia com uma flor a ilustrar, sobre a qual escreve: "Aqui está uma túlipa: bela, altiva, rica de silêncios e de mistérios. Que tenhamos longa vida na luta difícil mas gloriosa pela libertação e o progresso do nosso povo; para que à luz da tua beleza, na altivez cada dia mais construtiva dos teus gestos, transformemos os silêncios em alegria de viver e o mistério na força da nossa vida: o amor pela justiça.".A sessão de apresentação deste livro decorreu num tom tão político como de declarações de amor do político à mulher, que a editora Márcia Souto ia lendo entre as intervenções de Filinto Elísio, Aurora Almada e Santos e Carlos Lopes. Este último fez uma intensa digressão sobre a importância de Amílcar Cabral a nível político e intelectual, enquanto a investigadora responsável pela contextualização histórica do álbum evocou o perfil combativo de forma acalorada. Diga-se que estava presente na plateia o presidente do PAIGC, Domingos Simões Pereira, vários ex-governantes de Cabo Verde, escritores da Guiné, Tony Tcheka, e de São Tomé e Príncipe, Inocência Mata, o capitão de Abril Pezarat Correia, entre muitos outros..A apresentação do álbum Itinerários de Amílcar Cabral segue-se a uma anterior revelação das Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena: A Outra Face do Homem que a editora da Rosa de Porcelana editara sobre a correspondência entre o dirigente político e a sua anterior mulher, também cartas íntimas. Desta vez a organização esteve a cargo de Ana Maria Cabral e dos editores Filinto Elísio e Márcia Souto, e conta com textos introdutórios de António Guterres, Guilherme d'Oliveira Martins, Jorge Carlos Fonseca e José Maria Neves..Itinerários de Amílcar Cabral.Editora Rosa de Porcelana.124 páginas