MUDE. De portas fechadas, o museu continua a crescer

Nas reservas do MUDE, há uma mini-cozinha que muitos museus de design querem mostrar, vestidos Givenchy oferecidos por uma senhora da alta sociedade portuguesa e registos de quase 100 anos da publicidade em Portugal. O museu está fechado, à espera de obras, mas continua a crescer. Faz 10 anos esta terça-feira.
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A minikitchen de Joe Colombo está para o MUDE como os Painéis de São Vicente para o Museu Nacional de Arte Antiga. É uma das peças-chave da coleção, aquela que muitos museus pedem licença para mostrar. A diferença é que, ao contrário da pintura atribuída a Nuno Gonçalves, este exemplar da primeira série produzida, de 1963, de vez em quando é mostrado fora de casa.

Emprestado a um museu em Londres, acaba de regressar às reservas do MUDE. Ainda está no corredor, dentro da respetiva caixa de madeira, à espera da última revisão, e de voltar ao seu local habitual nas reservas do museu quando o DN entra no local. "Estão sempre a requisitar-nos esta peça", diz Bárbara Coutinho, diretora do MUDE. "Pediram-nos para que itinerasse pelo mundo, mas recusámos", diz. Por questões de conservação.

A peça de Joe Colombo é umas das 1362 peças da coleção Francisco Capelo (690 de design de moda, 672 peças de design de produto) um conjunto maioritariamente internacional, de 1937 ao século XX, que deu origem ao museu.

Esta terça-feira faz 10 anos que o museu abriu portas na antiga sede do Banco Nacional Ultramarino, na Rua Augusta. E, apesar de fechado, à espera das obras que vão requalificar o edifício de Cristino da Silva, cresceu. São mais de 12 mil as peças que constam do inventário.

Um museu que tem feito a história do design em Portugal

Não é por acaso que, caminhando pelas reservas, bem perto da minikitchen se encontrem uma pós-moderna cadeira de Tomás Taveira e outra de António Garcia. Também elas vieram de uma exposição na Cordoaria Nacional, em Lisboa. Serão submetidas a uma última revisão antes de voltarem ao seu núcleo.

São incorporações mais recentes, aquelas que vieram fazer das reservas do MUDE um lugar menos vazio e frio do que aquele que era em 2011 quando o DN as visitou pela primeira vez. O que mudou em nove anos? O número de portugueses aqui representados. O primeiro foi António Garcia (1925-2015), o homem da cadeira Osaka e dos maços de tabaco SG Filtro. Depositou aqui o seu acervo.

Seguiram-se outros. A diretora elenca-os: "Eduardo Afonso Dias, Daciano da Costa, Carlos Rocha, Carlos Galamba, Nuno Baltazar, José António Tenente, Manuel Alves/ José Manuel Gonçalves. Estão em organização e tratamento, a coleção Maria Gambina e Cristina Reis".

A estilista cedeu coordenados antigos agora que está de volta ao trabalho (após uma paragem), a cenógrafa entregou aqui o seu arquivo após o encerramento da companhia de teatro A Cornucópia. "Os 40 anos de design gráfico, maquetes e figurinos" estão no MUDE, diz Bárbara Coutinho.

"Este espaço tem vindo a ganhar ocupantes, com o propósito de construir a história do design em Portugal que era muito pouco representada na coleção Francisco Capelo", afirma.

As peças fundacionais são, maioritariamente, internacionais, com os grandes nomes do design internacional, uma riqueza inigualável", explica. Todos os nomes importantes estão lá. Le Corbusier, Alvar Aalto, Verner Panton, Andrea Branzi, Oscar Niemeyer, Grupo Memphis, Fernando e Humberto Campana, Marc Newson, Phillipe Starck. E, na moda, Chanel, Schiaparelli, mas também Vivienne Westwood, John Galliano, Alexander McQueen.

A diretora admite a existência de lacunas. "Haverá sempre", diz. "Com o tempo tentaremos colmatar". A mais evidente é situar o início da coleção internacional antes de 1937.

"É muito difícil estarmos a adquirir estas peças originais, mas não está fora do nosso alcance ou perspetiva. O que se considerou foi que, perante a coerência da coleção fundacional, para o conhecimento do design português, começar a ter uma coleção representativa dessa evolução, o que foi desde o início uma missão do MUDE. Houve prioridades a fazer. Se calhar, em vez de uma peça icónica de um destes grandes nomes internacionais por ano, compramos cinco de nomes portugueses, que são muito importantes, que permitem ir percebendo esta realidade, e que se não formos nós a fazer ninguém faz", diz Bárbara Coutinho.

É um museu com um orçamento de 93 mil euros para conservação, ações de estudo, inventariação e restauro. Para programação (exposições e publicações), 260 mil euros por ano.

A política de incorporações do MUDE está escrita no projeto museológico do MUDE e tem quatro braços: atualização do acervo, história do design em Portugal, design industrial, ampliação do núcleo de design gráfico.

"Uma vez que o espólio fundador integra um pequeno grupo de peças da autoria de Daciano da Costa, Conceição e Silva, Siza Vieira, Souto Moura, Pedro Silva Dias, Filipe Alarcão e Francisco Rocha, a prioridade é passarem a estar representadas no acervo as várias gerações de designers, desde os anos 1950/60 até à atualidade, passando pela produção dos anos 80 e pelos projetos pioneiros que, desde a década de 1990, têm procurado renovar os sectores produtivos tradicionais", diz o documento.

Na última década, Daciano da Costa foi reforçado, acaba de chegar à coleção uma nova peça de Conceição e Silva, oriunda de uma casa no Guincho. Foi adquirida ao mesmo tempo que uma reinterpretação do banco de Alvar Aalto, de Pedro Gadanho, para o bar Anikibobó.

Em 2016, veio o escritório de Miguel Jacobetty, uma divisão completa, dos anos 50, um ano antes fora José Espinho, alma dos Móveis Olaio, o protagonista. Há um quarto da autoria de Frederico Jorge, por encomenda de Fernando Seixas, a cadeira muito anos 80 de Francisco Pinto Coelho, desenhadas para uma discoteca privada, e os azulejos de Querubim Lapa para a loja da TAP. Estiveram em exposição no museu e agora, desmantelados, mas preservados, guardam-se, etiquetados e meticulosamente arrumados, em caixas de plástico azuis.

"Cada uma das foi avaliada e foi entendido que tinha uma riqueza enquanto conjunto que permitiria o conhecimento daquele designer, e de todo o sector de produção", diz Bárbara Coutinho sobre as incorporações. Dá como exemplo Eduardo Afonso Dias, que sempre trabalhou com a indústria, e de Carlos Galamba, autor do design do único carro português, o UMM. No museu não existe o carro, mas estão os desenhos.

As estantes sucedem-se e os charriots de roupas também. À semelhança do que acontece com o design de produto, na moda há clássicos dos clássicos - Coco Chanel, Elsa Schiaparelli, Courrèges, John Galliano, Vivienne Westwood, Jean-Paul Gaultier ou Alexander McQueen - enquanto a lista de nomes portugueses vai crescendo. José António António Tenente quando ainda não se tinha dedicado apenas às artes performativas ("tem peças representativas das suas diferentes fases", diz a diretora), Nuno Baltazar e, mais recentemente, Maria Gambina.

A designer abordou o MUDE para que peças de roupa que desenhou nos anos 90 ficassem aqui - começam no momento em que a jovem designer vence o Sangue Novo.

Os misteriosos vestidos de alta-costura doados ao MUDE

E ha peças que entram no museu nas formas mais inesperadas, como constata Bárbara Coutinho ao DN, abrindo um porta-fatos branco e mostrando um vestido de Hubert de Givenchy em perfeitas condições. Eis a sua historia:

"A proprietária quis doar algumas das duas peças a um futuro Museu do Design ainda no tempo de Santana Lopes", conta a diretora. Anos depois, o filho contactou o MUDE curioso para conhecer o destino que havia sido dado às peças da mãe, prossegue Bárbara Coutinho. Por essa altura, o paradeiro era um mistério.

Foi depois possível localizar as peças no Museu da Cidade. Eram sete os coordenados que Maria Cupertino de Miranda queria que fossem peça de museu - peças de Givenchy, de quem era amiga, e Saint-Laurent. Integram o acervo do MUDE, farão parte de exposiçoes futuras.

"A próxima exposição de longa duração onde a intenção é colocar em diálogo autores nacionais e internacionais neste plateau que vai ser a exposição", promete. "Isso, a médio prazo, vai ter consequências nos jovens designers, que vão poder fazer do MUDE uma casa de observação de estudo, investigação e pesquisa", perspetiva a diretora.

O foco no design português é estratégico, um segundo objetivo é diversificar, nota. "Hoje, felizmente, começamos a ter áreas de representação mais diversas. Ganha um peso significativo o design gráfico e a joalharia. Também começamos a entrar em áreas mais experimentais como o web design. Queremos mostrar design de autor, mas também design industrial. E não queremos parar. Queremos ir integrando. O MUDE é, cada vez mais, um museu do design, ponto."

Há outro objetivo: "Colecionar as peças, mas também os desenhos e o processo". E aqui, Bárbara Coutinho realça a importância do espólio de Carlos Rocha que chegou ao MUDE.

Um século de publicidade com o apelido Rocha

A coleção de Carlos Rocha, designer gráfico, que criou a agência Letra, é responsável por pelo menos 5 mil dessas peças do inventário do MUDE. Algumas, frisa Bárbara Coutinho, são mais do que isso: "Quando dizemos que a coleção de Carlos Rocha tem 5 mil entradas, pode ser um dossier com 70 papéis. Pode ser guache, desenho em grafite, tinta da china...".

Além do seu próprio trabalho, foi doado ao MUDE o acervo de José Ferrer Rocha, tio de Carlos Rocha, que em 1936 criou o ETP - Estúdio Técnico de Publicidade. Trabalha com os mais importantes nomes do modernismo em Portugal. "É a primeira agência com serviço completo", diz António Rocha, sobrinho-neto de José Rocha e filho de Carlos, também designer, que tem colaborado com o MUDE na identificação e contextualização do acervo dos seus familiares.

Fala de artistas como o pintor Carlos Botelho, Maria Keil, Bernardo Marques, Thomaz de Mello, Stuart Carvalhais. "Até Fernando Pessoa chegou a fazer textos para a ETP", diz António Rocha. "Não havia designers vocacionados para a publicidade. Eram artistas, arquitetos, escritores..."

Um "dos melhores colaboradores" de José Rocha foi, nas palavras do sobrinho-neto, o artista plástico suíço Fred Kradolfer (1903-1968). É ele o autor de famosos cartazes que promovem as praias de Espinho. Os originais, em guache, estão nas gavetas cinzentas das reservas do MUDE protegidos por papel branco de seda, ao lado de outros, dedicados à Costa do Sol, assinados pelo próprio José Ferrer Rocha (1907-1982), desenhador virtuoso, aluno de Belas Artes.

Os clientes iam do produtor de vinhos José Maria da Fonseca, para quem rótulos de vinhos que ainda hoje são usados, o metro de Lisboa ou os cinema da capital passando pelo SNI - Serviço Nacional de Informação, dirigido por António Ferro, a partir do qual se organizavam eventos de turismo e feiras internacionais. "Apesar de estar encostado ao regime, não se importava que os artistas fossem de esquerda".

Estiveram juntos na exposição do Mundo Português, em 1940, documentam as fotografias de Mário Novais que também fazem parte do acervo.

José Rocha trabalhou por toda a cidade e foi pioneiro no uso dos tapumes de obras para fazer publicidade. No edifício do Diário de Notícias, na Avenida da Liberdade, fizeram-se as primeiras experiências.

Carlos Rocha, pai de António, prosseguiu o trabalho do tio, como o seu pai, Carlos Rocha Pereira. São quase 100 anos da história da publicidade em Portugal.

Carlos Rocha, fundador da Letra, em 1972, frequentou a António Arroio e aos 15 anos foi para Londres estudar vitrinismo.

Há uma década, Carlos Rocha foi uma voz crítica da abertura do MUDE, situa Bárbara Coutinho. Morreu em 2016, aos 73 anos, quando já havia feito as pazes com a ideia de um museu do design e concordado doar o seu acervo.

"Ele tinha uma consciência, de facto, enquanto designer, que é uma riqueza para um museu do design. Espero que seja cada vez mais investigado. Permite estudar a ideia, o erro, a arte final e o resultado já em cartaz. É o design como processo. Um grande manancial de leitura", explica Bárbara Coutinho. Nesse caminho, mostram-se também as ferramentas de trabalho que acompanharam os autores, os métodos de impressão - de litografia ao offset.

Como foi acordado com Carlos Rocha, esse quase século de publicidade com assinatura Rocha será alvo de uma exposição quando o MUDE reabrir.

Portas fechadas. O lado sombrio do museu

Quem passa pela Rua Augusta vê o pano que cobre as fachadas, remetendo para o site do museu (www.mude.pt) e para o MUDE Fora de Portas, a solução que tem levado exposições temporárias do museu pela cidade. Elvas, Palácio dos Condes de Calheta, em Belém, e, a partir de 6 de junho, à Cordoaria Nacional para a primeira exposição dedicada a Fernando Lemos, o artista português surrealista conhecido pelas suas fotografias em Portugal e como designer gráfico no Brasil.

Em 2016, o MUDE fechou as portas para que começassem obras de requalificação. Ganhar mais e melhor espaço para uma exposição de longa duração, serviço educativo, para a conservação, para a investigação, um terraço com restaurante e salas para as reservas, que assim deixariam de noutro ponto da cidade.

Os trabalhos, que deveriam durar quase 18 meses, pararam com a insolvência da construtora Soares da Costa, vencedora do concurso público para esta empreitada. O edifício, que ocupa um quarteirão na baixa, está rodeado de tapumes. Fechado. Ainda sem data de reabertura.

Resumindo a longa história, as obras de reabilitação (e requalificação) do MUDE, que deviam estar prontas em 2017, pararam, com a insolvência da construtora Soares da Costa. Retomar as obras requer novo concurso público. "Respeitamos todos os prazos da contratação, há procedimentos que não é possível alterar". Nem acelerar. Um deles é o procedimento que permite encontrar novo construtor - a revisão de projeto.

O nome pode fazer pensar em alterações ao programa. "O projeto é o mesmo e não há alteração nenhuma". Bárbara Coutinho afiança que não. A revisão do projeto é "apenas" um estudo do edifício. Dizer o que está feito e o que ainda falta, assim como registar o estado em que se encontra o edificado. "Não é fácil, em 8 pisos e 15 mil metros quadrados."

Mantêm-se as encomendas de design da loja - Marco Sousa Santos; sinalética - Pedro Falcão; fardamento - com consultoria de Ana Salazar.

O MUDE foi para a baixa de Lisboa quando a zona ainda era sinónimo de comércio falido e casas devolutas. Fechou em alta. Voltará. "Seremos um contributo em prol do design e da cidade", promete a diretora.

Quando voltar a abrir, o que será? Um lugar central na cidade, pela sua localização e pelo que mostra. Um Museu do Design. Ponto.

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