Há aquela brincadeira que os adultos fazem às crianças fingindo que lhes "roubam" o nariz, e depois há um conto satírico de Nikolai Gógol chamado O Nariz, que narra o absurdo de um oficial de São Petersburgo cujo órgão do olfato decide libertar-se do rosto e ir à sua vida. Publicado em 1836, esse conto esteve na base de uma ópera criada por um jovem Dmitri Shostakovich, no final da década de 1920, e agora é o realizador veterano Andrey Khrzhanovsky quem o revisita na animação O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes, usando, justamente, excertos sonoros da ópera do compositor russo numa montagem visual dinâmica com desenhos animados e imagens documentais. Este é o filme mais experimental da competição de longas-metragens desta edição da Monstra (passa quinta-feira, às 20h45, no Cinema São Jorge), e aquele em que a história, a cultura e a política convergem numa homenagem às personalidades artísticas da Rússia que estiveram à frente do seu tempo..Nesse sentido, O Nariz ou a Conspiração dos Dissidentes é também uma animação a vários tempos. Tudo começa dentro de um avião, com os passageiros a verem diferentes filmes, de diferentes épocas, nos pequenos ecrãs embutidos nos bancos. Num desses ecrãs surge a figura animada de Nikolai Gógol de partida para São Petersburgo, à procura do sucesso literário. Uma viagem que, por sua vez, nos leva ao encontro de outras figuras, desde o referido Shostakovich, de par com o encenador Vsevolod Meyerhold, ao cineasta Serguei Eisenstein; este último retratado num momento de epifania, quando lhe ocorreu a ideia do carrinho de bebé que desce desgovernado a escadaria de Odessa na cena emblemática de O Couraçado Potemkine. Isto entre os desenhos que encenam a ópera O Nariz... Mas onde Andrey Khrzhanovsky quer chegar é à crítica a Estaline e às suas práticas de perseguição política (o segundo ato do filme reflete o caso do escritor Mikhail Bulgákov), e fá-lo com uma mistura criativa de técnicas visuais que celebram a arte insubordinada, apetece dizer, através da "insubordinação" formal..Algo que contrasta, por exemplo, com as linhas perfeitas da animação irlandesa Wolfwalkers, de Tomm Moore e Ross Stewart, belíssimo inédito (estreou apenas no streaming, Apple TV+) que já vem com o carimbo da nomeação para o Óscar e é o grande candidato da competição de longas da Monstra. Aí também se descobre Josep, de Aurel, retrato do artista catalão Josep Bartolí num campo de concentração após a Guerra Civil Espanhola, e Aya e a Feiticeira, nova realização de Gôro Miyazaki, filho de Hayao Miyazaki, que chega esta semana às salas..VEJA AQUI A PROGRAMAÇÃO COMPLETA DA MONSTRA.Sendo a Bélgica o país convidado da 20.ª edição da Monstra, há uma programação em parceria com o Festival Anima, de Bruxelas, que contempla sessões de curtas e longas-metragens de animação belgas, entre as quais, adaptações do universo da banda desenhada franco-belga. Já a competição nacional apresenta 11 curtas-metragens, com títulos de Alexandra Ramires (Elo), Pedro Serrazina (Lote B e Heróis da Comunidade: Muhammad Munir), Joana Toste (A Menina Parada) e João Fazenda (Mesa), entre outros..Finalmente, é também do material de um filme português que se faz a exposição no Museu da Marioneta: a curta O Peculiar Crime do Estranho Sr. Jacinto, de Bruno Caetano, sucede a Tim Burton - As Marionetas de Animação, e dá a ver uma Lisboa em miniatura, entre cenários, marionetas e maquetes, até 5 de setembro..dnot@dn.pt