No lugar que sempre foi ocupado pela tenda da Cruz Vermelha Portuguesa, em cada peregrinação, está agora uma carrinha estacionada. É Manuel Guedes quem a conduz, desde sábado, quando um grupo de amigos partiu de Gaia em direção a Fátima. Esta terça-feira, dia 11, o funcionário das Águas de Gaia chegou chegou cedo a Pombal antes dos outros, dos que vêm a pé. Ele, ao volante da Bedford da empresa, e o irmão, a conduzir outra carrinha, são os motoristas dos carros de apoio do grupo de 10 pessoas, em que oito vão a pé. Manuel já montou o fogão onde vão aquecer um tacho de rancho, uma mesa comprida e um toldo, que os há de proteger da chuva ou do sol. É a primeira vez que se faz à estrada, no apoio aos amigos peregrinos, e diz que está a adorar a experiência. Não tarda chegarão os outros, mais o irmão, António, que é "o cozinheiro de serviço"..Num ano como este, o apoio próximo tornou-se vital para os pequenos grupos de peregrinos. São eles que vão às farmácias repor o stock de pensos para as bolhas nos pés, de pomadas e outros remédios que ajudem a combater a fadiga e as dores musculares. Porque neste tempo de pandemia, não é só a lotação do Santuário que sofre alterações substanciais (o limite serão 7500 pessoas no recinto, em simultâneo). O apoio aos peregrinos, nos postos colocados pelas estradas, também deixou de existir. Flávio Oliveira sentiu-o bem, quando ao fim de uma noite e um dia a caminhar perdeu uma unha no dedo do pé. "Tinha os pés sem conserto", conta ao DN, ele que faz o caminho de Fátima pela primeira vez. Acabou por desistir na zona de Condeixa, antes de começar uma das etapas mais duras, até Pombal, quase sempre pelo IC2. Agora segue no carro de apoio, ao lado de António Guedes..Naquele parque de merendas que assinala o desvio para os Caminhos de Fátima param ainda muitos grupos, embora já saibam que, desta vez, não há enfermeiros para lhes tratar das mazelas. Os irmãos Liliana Teixeira e Paulo Vieira param para um breve descanso, antes de seguirem até ao Barracão, onde a mãe os aguarda com o almoço, numa carrinha que lhes serve para dormir. Vieram do Porto, como sempre, nos últimos cinco anos, desde que o filho de Liliana foi internado com uma meningite, tinha apenas 15 dias. "Prometi que se ele ficasse bom, vinha a Fátima a pé todos os anos. E assim há de ser". No pescoço, Paulo tem tatuada a frase "fé para tudo", e segue viagem, com a frescura dos 19 anos..Os irmãos já partiram quando um outro grupo se aproxima do local. À cabeça vem Ana Martinho, outra mãe que numa hora de aflição prometeu fazer o caminho. O filho é Kiko Maria, o mais jovem piloto português que acaba de regressar à competição de motas, depois de uma lesão grave, há 15 meses, que o deixou entre camas de hospital, aos 17 anos. "Eu sou da Régua, vivi no Porto, depois em Gaia, e agora estou em Lisboa já há 11 anos. Deixei no Porto os meus amigos quase todos. Quando liguei a um deles a contar da promessa, todos se dispuseram a acompanhar-me", revela ao DN..E foi assim que oito pessoas partiram de lá, contando com a experiência de Pedro Silva, que fez o caminho pela primeira vez há 13 anos e organizou tudo: onde parar, onde comer, onde dormir. O grupo é tão diverso como animado. Vem ali o DJ Pedro Tabuada, o produtor de eventos Cristiano Barros, o empresário Rodrigo Pinto de Barros, presidente da Associação Portuguesa de Hotelaria, Restauração e Turismo. E também a cantora Márcia Barros, que descansa agora num pufe disponibilizado pelo grupo de Gaia, que oferece cervejas frescas e convívio. "Tem sido um tempo muito difícil para nós, desde março de 2020. Estamos sem trabalhar...mas há sempre alguma coisa para agradecer", conclui Cristiano. No caso, é a saúde de Kiko Maria..Desde o ano passado que nada voltou a ser como dantes nas estradas que conduzem a Fátima, à semelhança do resto do mundo. Há um ano, as celebrações de Fátima nem sequer foram abertas, pelo que quase não houve sinais de peregrinos. Na verdade, desde outubro de 2019 que não há postos de apoio, como aquele que a Ordem de Malta costumava ter na localidade de Barracão (Colmeias), na fronteira do concelho de Pombal com o de Leiria. "Até dezembro/janeiro ainda nos estávamos a organizar para isso. Mas entretanto a pandemia galopou, entrámos em confinamento, e foi impossível voltar à estrada", diz ao DN Bernardo Ribeiro, presidente do Corpo de Voluntários da Ordem de Malta. Tradicionalmente, a organização tinha mais de 20 postos montados, em forma de tendas, envolvendo cerca de 200 voluntários. ."Também eles sentem falta disso, este ano", admite, ele que se tornou voluntário em 1998 (depois de uma peregrinação a Santiago de Compostela), cavaleiro em 2003 e presidente em 2020. Sublinha que este era um apoio em rede, coordenado pela Cruz Vermelha Portuguesa, GNR, Bombeiros, o próprio Santuário e o Movimento da Mensagem de Fátima, e que todas estas comissões "não desencadearam nenhuma ação"..Talvez em outubro regressem, dois anos depois da última vez. Talvez os voluntários encontrem José Baptista, 56 anos, 35 peregrinações feitas. Vem do Porto, leva avanço ao resto do grupo, e para junto ao grupo de Gaia para dois dedos de conversa. Veste a rigor, um equipamento do clube azul e branco, e diz que espera ter saúde para fazer "as bodas de ouro de peregrinações"..Mas tem alguma promessa? "Não, mas tenho muito para agradecer. Já fui atropelado duas vezes. Já caí de um terceiro andar. O meu irmão já teve cancro. A mulher de um grande amigo também". Desta vez, adiou uma cirurgia ao nariz, marcada para 9 de maio, para rumar a Fátima. Sabe, como todos os outros, que corre o risco de não entrar no Santuário, por causa da limitação de 7.500 peregrinos. Mas não acredita que tal aconteça: "há de haver um lugar para nós!".