Miguel Sousa Tavares: "Não há um único dia em que não me lembre da minha mãe"
Faz 100 anos no dia 6 de novembro que nasceu Sophia de Mello Breyner Andresen, no Porto. Mãe de cinco filhos do casamento com Francisco Sousa Tavares - Isabel, Sofia, Maria, Miguel e Xavier -, descendência que o poeta Jorge de Sena fez questão de deixar sinalizada num poema sobre Sophia ao iniciá-lo assim: "Versos e filhos, como os que dás ao mundo?"
Em ano de centenário do nascimento da poeta, estão a decorrer várias celebrações por todo o país e em várias cidades do mundo. Para o filho Miguel Sousa Tavares, este é um tema sobre o qual não quer falar e tem recusado participar nos eventos. A justificação é apenas uma, a impossibilidade de dividir Sophia entre a mãe e a figura pública, além de não querer desvendar a intimidade de uma relação que o marcou para sempre.
Excecionalmente, Miguel Sousa Tavares aceitou falar com o DN sobre a mãe e recordar momentos passados com ela, explicar o peso da sua influência na personalidade e a beleza que invadiu a sua vida através da sagesse da mãe.
Qual é a primeira memória que tem da sua mãe?
É difícil dizer qual, mas a memória mais antiga que tenho está numa fotografia que o Eduardo Gageiro tirou, uma imagem muito conhecida da minha mãe a escrever, e na borda da janela, em fundo, estão dois carrinhos que são meus. A minha recordação é estar a brincar com eles e a minha mãe estar a escrever poesia.
É a fotografia que fixa essa memória como verdadeira ou ela sempre esteve na sua cabeça?
Olhando muito para aquela fotografia, e vendo lá os meus carros, lembro-me bem desse momento. Eu só tinha dois carros e associo estar a brincar nessa sala onde ela escrevia poesia e deixá-los naquele lugar.
Sophia não reclamava com o barulho que o filho faria?
Não, desde que estivesse calado. A minha mãe precisava de muito silêncio e gostava muito das pessoas que falavam pouco, como ela, aliás. Tinha essa característica e quem não a conhecia bem ficava um pouco à toa, pois era capaz de estar a falar com uma pessoa e de repente, pura e simplesmente, desligava a meio de uma frase e ficava a olhar para o vazio, para o além. Muitas vezes significava que a conversa tinha deixado de a interessar ou que tinha começado a pensar noutra coisa completamente diferente.
Essa era uma atitude complicada para os filhos?
Era complicado se a pessoa não tivesse o mesmo registo, que era um pouco o meu caso. Também nunca gostei muito de pessoas bastante faladoras e, embora faça disso profissão, também não gosto muito de falar.
Os filhos aperceberam-se dessa forma de ser a dado momento e passaram a aceitar?
Falo por mim, apercebi-me muito cedo de que não era uma mãe como as outras. Diferente, porque a sua dimensão estava fora do que era socialmente estabelecido e do que eram os padrões comuns, não apenas os daquela época mas os de toda a gente. Era uma pessoa que apelava muito à contemplação, tanto que me ensinou a olhar e também a olhar para os outros. Lembro-me que às vezes estávamos a discutir política, devido à presença de algum político no ecrã da televisão, e ela dizia-me sempre: "Miguel, olhe para a cara das pessoas - é o primeiro indicador. Olhe sempre para a cara delas e, se não gosta da cara de alguém, desconfie." E recordo-me disso muitas vezes e até faço esse teste: deixa-me cá olhar para a cara deste senhor. O que é que a minha mãe pensaria da cara deste tipo?
Quando é que se apercebeu de que existia um mito em torno dela e que era uma figura pública?
Isso foi muito mais tarde, e até consigo situar: é quando ganha o Grande Prémio de Poesia da Sociedade Portuguesa de Autores em 1965. Foi a primeira vez em que compreendi que era uma figura pública em vez de ser como até aí, uma figura privada, e percebi que havia muita gente que a admirava, que a visitava e com quem se dava. Gente fantástica, alguns que vinham do mundo inteiro e pessoas extraordinárias, porque os amigos dela eram todos diferentes, tal como ela. Até esse dia não tinha entendido a sua dimensão pública.
Passa a ter duas mães?
Não, nunca, e esse é um exercício que me custa. As pessoas estão sempre a pedir para eu falar da minha mãe e esperam que o faça de uma perspetiva da pessoa pública, mas, por mais pública que seja uma pessoa, ela não deixa de ser minha mãe e o meu olhar é sempre de filho primeiro. Estou muito bem situado, por exemplo, para perceber de facto a pessoa que ela foi. Digo-lhe uma coisa, ela foi uma pessoa muito mais rica e mais complexa do que aquilo que os outros pensam ou dizem ter sido. Não li nenhuma das biografias que já se escreveram sobre ela porque, apesar de gostar muito de biografias e de reconhecer o esforço a quem as escreve, quando se está dentro ou próximo do biografado, um trabalho desses é sempre um exercício que toca na nossa sensibilidade. O que penso é isto: o que for verdade eu já sei, o que não for vai irritar-me.
Não leu nenhuma?
Abri uma das biografias que alguém estava a ler ao meu lado e vi logo duas coisas que não eram verdade. Fechei-a imediatamente. Uma destas situações dizia respeito a uma fotografia em que eu apareço com 4 anos e estava datada de antes de eu ter nascido. Um erro absurdo!
Erros que não se pode aceitar em relação à biografia da sua mãe?
Vejo sempre a minha mãe à frente de tudo e aquilo que entendo sobre a escrita dela decorre também da pessoa que era e que conheci enquanto mãe. Não é por acaso que o Jorge de Sena lhe dedica aquele poema que começa assim: "Versos e filhos, como os que dás ao mundo?" É porque as coisas estavam mesmo misturadas. A pergunta que faço é: como é que alguém que tem cinco filhos ainda encontra espaço para a poesia e para a intervenção política que teve e tudo o mais? Sinceramente, entendo que numa biografia nenhuma homenagem lhe conseguirá fazer justiça e mostrar exatamente como era. Para começar, ela era avessa a homenagens e a prémios - não lhes ligava nenhuma -, e era de facto muito mais complexa. Aliás, quando vejo a poesia da minha mãe, aquela que as pessoas dizem ser uma poesia simples e que entra facilmente em toda a gente - é verdade -, sei que aquela simplicidade esconde uma complexidade da personagem e um imenso trabalho literário. Escrever simples não é fácil de maneira nenhuma e só escritores como um Tchekhov o conseguem. Escrever tão simples como brilhante parece que está ao alcance de muitos, mas não é assim, a poesia dela é simples porque está ligada àquilo a que chamou o esplendor das coisas visíveis, e é isso, principalmente, que estou constantemente a ver na sua poesia e nas memórias que tenho. A minha mãe é uma pessoa que amou exuberantemente a vida, as coisas bonitas e o que lhe tocava: o mar, o perfume de uma flor, um jardim, uma ida ao mercado de peixe de Lagos - sobre o qual escreveu um dos textos mais bonitos na minha opinião, o Caminho da Manhã. E é isso que faz que as pessoas que a leem se sintam identificadas, porque todos nós já vivemos aquilo, contudo não o sabíamos dizer por palavras. Todos nós vimos os jardins que brilham ao luar sobre o qual ela escreveu, as praias batidas pelo vento, as águas quietas, a Grécia, as manhãs e as noites; todos nós percebemos que há muita poesia nessas situações que não sabemos trazer cá para fora, e ela fê-lo. Porque era uma poeta muito pouco preocupada consigo própria. Se reparar, ela escreve muito pouco sobre si, antes sobre o mundo, as coisas que a deslumbram, as que a inquietam e as que a indignam, e desse modo foi ao nosso encontro. Quando olho para a literatura dela, vejo a pessoa que conheci. Ou seja, mesmo pensando que se pode dizer isto sobre todos os escritores, ninguém teria escrito determinada obra se não fosse a pessoa que era. Mas ninguém pode escrever poesia como a dela, até pode escrever muito melhor, mas será sempre diferente porque não olhou para as coisas do mundo com a atenção que ela lhes deu desde sempre.
Voltemos aos filhos. Estas cinco existências não a perturbavam?
Perturbavam, sim. Aliás, tem uma frase muito engraçada em que dizia: "Eu gosto muito dos meus filhos, mas um de cada vez..." E eu percebia isso perfeitamente. Os meus grandes momentos com a minha mãe são os que tivemos sozinhos, e os meus irmãos poderão dizer o mesmo. Quando viajei com ela, que não foram tantas vezes como gostaria, quando íamos visitar as grutas de Lagos...
Quando Sophia recebe o prémio em 1965, percebe então que existe uma outra pessoa além daquela que é a sua mãe?
É a primeira vez que a vejo de fora, digamos assim, e como uma pessoa admirada. Ainda me lembro do discurso - e de muitos outros - que fez ao aceitar esse prémio, que é uma homenagem à poesia e no qual às tantas diz: "A poesia ensina-nos que não somos apenas animais na luta pela sobrevivência." Essa passagem tem muito que ver com o que era na altura, porque foi depois daquele compromisso terrível dela em ser apenas um escritor e fazer aquilo de que gostava - escrever - mas não deixar de ser comprometida com a situação do país. Que é uma coisa que, para ser completamente justo, não nasce com ela mas é-lhe transmitida pelo meu pai [Francisco Sousa Tavares]. O meu pai é que ensinou a minha mãe a ser resistente contra o fascismo, porque a educação dela, bem como o meio de onde vinha, não a tinha predisposto para tal, embora, provavelmente, lá chegasse porque tinha um sentido de justiça e de liberdade que lhe era inato. Mas, de facto, quem a formatou politicamente foi o meu pai.
Apesar de existir aquela frase "os extremos atraem-se", como é que um pai com essa cultura política se apaixonou por uma mulher que era tão oposta?
É estranho e corajoso da parte dele, porque o meu pai jamais teve a menor inveja da projeção da minha mãe, pelo contrário, sempre a impulsionou. Sempre, sempre e sempre. Lembro-me bem de um dia, em que teria uns 10 anos, e alguém ter perguntado "qual é a sua poetisa preferida", e eu tive o azar de responder "Florbela Espanca". O meu pai pôs-me de castigo oito dias sem sair do quarto. Ele tinha um sentimento de grande admiração em relação a ela e nunca teve a mais pequena inveja do seu estatuto, mesmo quando Mário Soares a quis puxar para a política. Ela foi deputada na Assembleia Constituinte, cabeça-de-lista pelo Porto, e o meu pai não; e ele é que gostava de política, ela estava ali por espírito de missão.
Alguma vez a sua mãe se sentiu manipulada pelos políticos?
Ela achou que era uma obrigação antes do 25 de Abril e foi por isso que aceitou presidir ao Centro Nacional de Cultura e ser presidente da Comissão de Socorro aos Presos Políticos, entre outros cargos. Depois do 25 de Abril, ela muito rapidamente se fartou da política. Há um poema dela que é contra os demagogos, escrito muitos poucos meses depois da revolução, porque percebeu que a política era um jogo e já não era o combate desigual de antes e não tinha mais essa beleza. Havia uma separação entre a política por dever cívico e obrigação moral e a política como estratégia de poder.
A sua mãe nunca questionou o seu pai sobre essa forma nova de fazer política?
Sim, ela questionava-o o tempo todo e, às tantas, nunca tendo ficado verdadeiramente desinteressada, dizia coisas fora da caixa. A pessoa que lhe deve ter ouvido as afirmações mais imprevisíveis foi o Mário Soares, a quem ela abanava de cima abaixo ao fazer-lhe perguntas e ao dizer coisas que não teriam resposta lógica para um político como ele. Soares era um grande admirador da minha mãe e um dos grandes amigos dela, ele e a Maria de Jesus, e quis sempre puxá-la para próximo e como exemplo, pois entendia que ela era uma mais-valia para o país enquanto figura pública. Ela resistiu tanto quanto pôde. Eu estava ao lado dela quando tocou o telefone e eu atendi, era o Mário Soares Presidente, que me pediu "posso falar com a sua mãe?". E eu ouvi a minha mãe a responder-lhe: "Olhe, Mário, mas eu não quero essa condecoração para nada, o que eu precisava era de uma boa cozinheira, a Ordem da Liberdade, não." A resposta dele foi que ia falar com a mulher porque "pode ser que ela saiba de uma cozinheira". Ela era assim na verdade.
Não tinha muitas amizades, pode mesmo dizer-se que criou fossos com várias pessoas. Porque a desiludiam?
Não acho tanto isso. Os amigos de infância eram um mundo do Porto à parte nela e mantiveram-se até ao fim da vida. Creio que cortou relações com poucas pessoas, muito poucas, e mesmo com a Agustina Bessa-Luís, uma relação que era ora conturbara ora íntima, nunca acabou. Acho que tinha amizades selecionadas, depois existia uma situação tremenda, é que quando as pessoas não lhe interessavam ela não disfarçava minimamente. Não tinha interesse, acabou. Mas era alguém que gostava de conhecer pessoas, tanto que me lembro de uns anos antes do final da vida dela eu levar algumas pessoas a sua casa. Sem abusar, quando pensava que eram interessantes para conhecer e que lhe fariam bem, levava-as e ela recebia-as muito bem. Lá fazia o seu chazinho e conversava.
Um dos poemas mais importantes sobre o 25 de Abril é dela, "Esta é a madrugada que eu esperava". Pode dizer-se que a revolução foi um deslumbramento?
Com certeza, e há fotografias em que está o meu pai, e eu também, na libertação dos presos políticos no Forte de Caxias. Ela estava lá como presidente da comissão e a sua cara de felicidade era absoluta.
O Miguel valorizava mais o papel político do seu pai do que o da sua mãe?
Ele era mais interveniente, estamos a falar de antes do 25 de Abril, enquanto ela tinha um papel de mulher do combatente. Era a retaguarda. Mas foi um tempo muito intenso para ela, principalmente quando o meu pai era preso. Foram tempos muito difíceis para ela esses da militância política do meu pai e, olhando retroativamente, penso que a minha mãe podia ter tido uma vida muito mais feliz e não a teve por razões pessoais, familiares, políticas, materiais - nunca teve uma vida despida de angústias. Nunca, e essa é uma das coisas que lhe admiro, porque, apesar disso, nos intervalos, ela agarrava todos os instantes de felicidade com uma força juvenil e incrível. Não desperdiçava um minuto em que pudesse ser feliz, uma hora da vida dela. No entanto, muitas vezes pensei, e hoje ainda, que ela merecia ter tido uma vida mais despreocupada e feliz, com menos problemas que a angustiassem.
A visita à prisão era um momento muito emocional?
Nós tínhamos visita à segunda-feira em Caxias e só podia ir a minha mãe acompanhada de um único filho. A conversa passava-se através de um vidro que nos separava - uma cena tremenda - e, como se não fosse suficiente, ainda havia um pide sentado numa cadeira ao nosso lado a ouvir a conversa. Era apenas meia hora por semana. Além disso, eles correspondiam-se em código, que a PIDE nunca conseguiu decifrar e que só eu é que sabia a chave - ela pedia-me ajuda para escrever e para decifrar as cartas. O meu pai tinha uma semana inteira para escrever - não o deixavam ler livros - e escrevia imensas cartas usando esse código, que era diabólico de se usar. Prometi à minha mãe que nunca revelaria o código que eles inventaram, um ovo de Colombo que lhes permitia corresponderem-se com franqueza. Eu era o único dos irmãos que estava dentro do segredo e fazia daquilo uma coisa muito secreta, sendo certo que a minha mãe quando lia as cartas do meu pai, ou escrevia as suas, fechava-se comigo e fazíamos os dois o enigma.
Aquela paixão pela Grécia, por exemplo, devia-se aos problemas com que se confrontava no dia-a-dia?
Creio que vem de trás. Ela tinha uma grande influência da cultura helénica, lera Homero muito nova, e sempre teve o fascínio da Grécia. Curiosamente, a descoberta física da Grécia coincide com a de Lagos, que na altura eram muito parecidas. Havia menos gente no Algarve, mas as casas eram todas caiadas de branco também, e aconteceu uma espécie de fusão dos dois mundos. Ela reconheceu muito da Grécia nesse Algarve dos anos 1960, e vice-versa. Na minha opinião, a paixão pela Grécia tem que ver com a sua formação, toda a busca pelo belo e por uma vida que faça sentido e que acreditava existir na Grécia e que não era assim para todos. Aliás, uma vez que foi lá com o meu pai, ele contava: "Passei o tempo todo a olhar para os lados, a ver se via os tais deuses gregos que a sua mãe falava, mas nada." E ela respondia-lhe: "Mas, Francisco, já lhe expliquei que esses são os turcos e não os gregos."
Quando visitou a Grécia revia a sua mãe...
Constantemente, mas nem é preciso visitar a Grécia. Devo dizer que não há um dia que passe em que não pense na minha mãe. Não é só ter saudades, é muito mais. Ela foi para mim uma espécie de maître à penser a vida e, em muitas circunstâncias, tento pensar qual seria o conselho que ela me daria nessa situação. O que pensaria disto? O que pensaria desta pessoa? O que pensaria deste novo partido? O que pensaria desta discussão sobre o ambiente? Porque ela tinha uma grande sagesse em relação às coisas da vida, que lhe vinha de muita reflexão e de uma grande atenção, e do tal sentido de justiça e da faculdade de não perder tempo com pessoas ou com temas que achava desinteressantes para se concentrar no resto. Por isso, ela era como um farol para mim em muitas coisas. Quando me sentia com dúvidas, recorria sempre a ela. Constantemente. E ela fazia o mesmo do ponto de vista político, estava sempre a perguntar-me coisas porque tentava seguir a política depois do 25 de Abril e eu explicava-lhe o que se passava.
O Miguel era mais o "menino da mamã" ou o "menino do papá"?
Menino do papá seguramente não fui, só muito mais tarde é que comecei a ter um estatuto para o meu pai me ligar mais. Mas não era menino da mamã, de facto não era de nenhum dos dois.
Mas a relação era mais fácil com a mãe do que com o pai.
Era. Éramos mais parecidos também.
Tinha uma relação difícil com o seu pai?
Não era difícil, só até aos 15 anos, depois não.
O que a sua mãe lhe deu com a sua sagesse o seu pai deu-lhe com a vida política?
Esse é outro capítulo! Havia uma coisa no meu pai que atraía muito a minha mãe, e a mim também: a coragem. Ele foi a pessoa mais corajosa que conheci até hoje em todos os aspetos, a ponto de às vezes me perguntar se aquilo era coragem ou destemor. Para ser corajoso é preciso ter noção do perigo e ele, por vezes, parecia não ter a noção do perigo. Ela até escreveu sobre ele "Os outros vão à sombra dos abrigos e tu caminhas de mão dada com os perigos". Realmente, ele andava literalmente de mão dada com os perigos, física, intelectual e politicamente. O perigo atraía-o, o combate atraía-o, que às vezes pensávamos: "Pai, não vale a pena ir a todas as lutas! Dê um descanso a si próprio." Mas ele não dava e essa sua qualidade foi o que mais me fascinou.
A família inspirava a sua mãe na escrita de poesia ou ficava de fora?
Não creio que nós a inspirássemos de todo, ela não precisava disso. O que ela inspirava era a poesia em nós. Em mim, concretamente, pois lembro-me de ter 13 anos e ter-me feito decorar Rimbaud em francês, sonetos de Shakespeare em inglês, Goethe em alemão... Eu não falava uma palavra dessas línguas na altura e ela gostava de recitar para eu sentir a musicalidade da poesia. Lembro-me de recitar o Llanto por Ignacio Sánchez Mejías, de Lorca, de cor, que são umas trinta páginas. Tínhamos um disco lá em casa com o poema todo dito por uma senhora chamada Germaine Montero e ouvia-a tantas vezes que decorei tudo porque a minha mãe pedia-me muito para eu recitar. Ela gostava muito de recitar poesia em voz alta e eu adorava ouvi-la a declamar. Ela gostava de ouvir o Luís Miguel Cintra a dizer poesia, e quando os amigos poetas iam lá a casa, o Ruy Belo por exemplo, todos recitavam poesia normalmente. Tinha graça aquilo, parecia que se juntara um circo e um fazia de palhaço, outro de domador de leões e outros de qualquer coisa. Cada um mostrava a sua arte e havia sessões com pintores em que eles pintavam ao desafio: o José Escada, o Nikias, todos. Houve um, o João Vasconcelos, que como já não tinha mais papel pintou a tampa de madeira do quadro da eletricidade. Agarrou numa régua e fez um risco azul de alto a baixo e um encarnado na horizontal e assinou João Mandrião, numa alusão a Mondrian. Quando vendemos a casa ainda lá estava essa pintura.
A qual dos filhos dava mais atenção? Ou distribuía-se por todos?
Acho que se distribuía, mesmo que a atenção dela fosse uma coisa rara, e não era de conquista fácil. Ela tinha um quarto onde se isolava para escrever e onde não podíamos entrar ou fazer barulho. Ela passava os dias inteiros a escrever e eu percebi que aquilo era um ofício muito complicado. Ela reescrevia 20 ou 30 vezes o mesmo poema, deixava a meio e voltava a pegar passados meses. Estava o dia inteiro a escrever, era extraordinário. E quando não estava a escrever punha-se a ler poesia.
Existem vários inéditos no espólio. Tem consultado esses manuscritos entretanto?
Sim, tudo. Grande parte das coisas inéditas que apareceram estavam na biblioteca dela, que ficou para mim, e o meu filho mais novo andou a pesquisar aquilo tudo, encontrando vários rascunhos. Fui acompanhando mais ou menos de perto as descobertas e num dos livros apareceu uma peça que eu a tinha ouvido falar muitas vezes, chamada "Os gracos", e que era inspirada na morte do Kennedy - que foi um acontecimento que lhe fez muita impressão. Começou a escrever uma peça que não concluiu. E havia poemas escritos nas margens dos livros, muita coisa.
Sentiu vontade de interpretar como se chegava a esses escritos?
A essa parte eu não chego, porque não tenho capacidade para isso. Há muita gente que fala sobre a poesia dela, o Frederico Lourenço, a Ana Luísa Amaral, etc., com um profundíssimo conhecimento literário que eu não tenho de forma alguma. A única vantagem que tenho é saber o que é que na vida dela inspirou aqueles poemas, ou seja, fui observador privilegiado. É como se eu fosse discípulo de Miguel Ângelo e tivesse sido a única pessoa que assistiu enquanto ele estava a fazer o David e eu podia dizer quais eram os estados de alma dele nessa altura. Para mim, na poesia dela, por mais estudos que façam, por mais brilhantes, faltará sempre como é que aquela pessoa escreveu determinada poesia. Esse é o meu privilégio, mesmo que não soubesse contar por palavras de A a Z todas as situações.
Não fica irritado por não existir um trabalho mais grandioso sobre a obra da sua mãe, um espelho maior?
Não sei, repito, não li as biografias que se baseiam nos factos que são públicos e em presunções que, umas, serão verdadeiras e outras não. Não é por deficiência dos autores, mas porque a simplicidade da personagem esconde uma grande complexidade que não deixa saber tudo. Há três ou quatro pessoas que estiveram próximas dela e que poderiam explicar melhor: Mário Soares, Manuel Alegre, Vieira da Silva, Menez, mas tirando essas é difícil fazer o retrato certo e completo dela. Mas também não sei se uma biografia chega ao fundo.
Lembra-se de alguma vez ter ouvido o seu pai fazer sugestões ou emendas à poesia da sua mãe?
Num texto dela nunca, não me lembro, nem sequer a sugerir temas. Não me lembro de todo.
Estava em roda livre?
Completamente.
Alguma vez lhe pediu para escrever um poema ou lhe deu um tema?
Não, de todo, seria incapaz de o fazer. Tudo o que eu sei que era essencial na vida dela, mais tarde ou mais cedo, aparecia em poema - mesmo que às vezes me tivesse demorado tempo a descodificar. Quando olho para a antologia e vejo as datas, começo a associar e, de repente, lembro-me que este poema corresponde a uma fase da vida dela em que se estava a passar por isto ou por aquilo.
O 25 de Abril divide a sua vida ao meio. Era-lhe mais fácil escrever antes ou depois?
Acho que foi igual. Antes do 25 de Abril só há um livro especificamente antifascista - Grades - e não há nenhum livro correspondente depois. Existem poemas dispersos, mas não creio que a resistência à ditadura tenha sido um tema de inspiração para ela, era mais uma necessidade e uma obrigação cívica que sentiu. E sentiu próxima porque era casada com um resistente, mas a intervenção política esgotou-se com a revolução. Ou talvez existissem outras formas que achava serem mais importantes, mas não a intervenção política concreta. Ela não gostava da política, mas houve aquela coisa muito marcante que foi a atribuição do Prémio da Sociedade Portuguesa de Autores ao Luandino Vieira e fecharam a SPA. Ela na altura estava ligada à direção e esse foi um momento de rutura entre os escritores que eram do regime e os que não eram. Foi uma altura de separação de águas e uma clara divisão política que ela viveu e muito próximo.
Escreveu um poema sobre a Catarina Eufémia, tema bem diferente dos clássicos gregos...
Ela gostava da vida inteira e não só dos gregos, e essa originava muitos poemas de indignação contra injustiças. Acho que se mitifica muito a parte da Grécia porque, embora os melhores poemas sejam de facto sobre a Grécia, que estão em Geografia, como aquele absolutamente inesperado e incrível diálogo com o Fernando Pessoa a partir das ilhas gregas, quando ela diz no poema "Cíclades": "O teu nome emerge como se aqui/ O negativo que foste de ti se revelasse." Uma vez disse-lhe: "Ó mãe... este é o melhor poema que alguma vez escreveu na vida!" Ela respondeu-me: "Também acho que é", talvez o maior, e ela gostava muito de poemas curtos.
A família que fez era completamente diferente daquela em que nasceu. Foi fácil aos pais da sua mãe aceitarem a relação com o seu pai?
Não, de todo. Uma das pessoas mais próximas da minha mãe era a mãe dela, e a minha avó sofria muito com isso. Primeiro, fazia-lhe muita confusão que tivesse um genro que volta e meia era preso e que não conseguisse arranjar trabalho porque se lhe fechavam as portas todas. Depois, quando ela vinha a Lisboa passar temporadas em casa da minha mãe, fazia-lhe também muita confusão a quantidade de segredos que os meus pais trocavam entre si. Lembro-me de uma vez em que se fecharam na casa de banho para dizer segredos e ela queria servir o jantar. Foi-lhes bater à porta e disse: "Importam-se de acabar de salvar a pátria, que a sopa está a ficar fria?" A minha avó tinha muita graça e um grande sentido de humor, mas o meu pai não achava piada nenhuma àquilo. Não foi fácil para a minha mãe; sei que foi complicado a vários níveis: o meu pai era olhado como um ser perturbante e perturbador, um trouble maker, pela família dela e ela teve muita coragem porque foi contra o que era a sua zona de conforto, de comodidade e de interesse material imediato, ficando sempre do lado do meu pai - sempre.
Se não fosse o seu pai toda a sua vida literária seria diferente?
A escrita não sei, mas a vida toda seria diferente com certeza. Acho que tinha já uma preocupação social mas não tão marcadamente antes do meu pai - nem faria uma leitura política como ele. Ela vinha de uma sociedade em que os pobres existiam para receberem esmolas e as pessoas que tinham preocupações sociais faziam uma visita mensal aos pobres. Lembro-me de a minha avó dizer "tenho quatro pobres", famílias que ela visitava e a quem levava queijo, marmelada e outras coisas, uma vez por semana. Isso era de quem tinha preocupações sociais, mas passar daí para uma interpretação política das coisas foi o meu pai que lhe deu essa noção.
Então, terá influenciado a obra?
Na parte política da obra, sim, e na forma de olhar para a vida também. Deve ter influenciado tudo.
Há uma chave para entrar na poesia da sua mãe?
Não sei bem. Porque é que aquele poema sobre o 25 de Abril, por exemplo, fez tanto sucesso? Fizeram cartazes com um desenho da Maria Helena Vieira da Silva! Porque era o que as pessoas percebiam imediatamente. Porque tenho poemas da minha mãe escritos na porta dos armários de casa? Porque são de mobilização imediata. O que eu gostaria era de poder mudar os poemas todos os dias, porque gosto de olhar para eles e recentrar-me, de encontrar um equilíbrio e uma força por saber que a pessoa que escreveu aquilo sentiu qualquer coisa de muito forte e pôs coisas em palavras de um modo que eu não seria capaz. Essa é a chave da poesia dela. Todos nós já vivemos aquilo e já tivemos aqueles momentos de felicidade. Olhámos, só que umas vezes estivemos desatentos e não percebemos a beleza, noutras estivemos atentos mas esquecemos, e depois vem a poesia dela lembrar-nos, explicar-nos e convocar-nos. Acho que tem uma poesia muito competente, mobilizadora e bonita musicalmente. Ela dizia que o poema mais antigo que conhecia era a "Nau Catrineta" e recitava-nos, também deve ter sido o primeiro poema que fixei por causa da sua musicalidade. Somos um país onde se lê muito pouca poesia, no entanto, quando ela é boa, é grande, eloquente e esmagadora, é impossível fugir-lhe.
Quando escrevia um poema não estava preocupada com o leitor - se era um homem ou uma mulher - nem escrevia como uma mulher...
Se alguém lhe perguntasse se a escrita dela era feminina ou não, ela não saberia responder. Era uma coisa que para ela não fazia nenhum sentido. A literatura de género é uma noção que não lhe entraria na cabeça, nem sequer que pudesse existir.
Se Sophia vivesse hoje, como olharia o mundo dividido segundo questões de género?
Ela seria vista como uma pessoa conservadora, seguramente.
Quando na sua altura era vista como revolucionária?
Ela não era revolucionária, antes das poucas mulheres públicas que se opunham ao regime e que fez uma obra independente. Não sei se isso era revolucionário ou não, mas ela não o era. Nem queria derrubar o mundo para fazer outro. Era uma pessoa que se indignava com as imperfeições e as injustiças do mundo, até porque no seu ideário tudo isso era uma criação divina, dos deuses. Muita gente se pergunta quem era o deus dela. Porque fala constantemente na obra divina e há poemas em que se dirige a Deus com um Tu, em maiúscula. Está a falar do Deus dos católicos, que era a religião pela qual foi batizada, ou está a falar dos deuses gregos? Provavelmente, nem uma coisa nem outra, antes a presença do divino nas coisas humanas, que é aquilo que é de tal maneira forte, belo e inexplicável, que para ela só pode ser uma criação divina. É essa perfeição que busca constantemente na Grécia, no Algarve de antigamente, nos jardins e nas praias do norte. Está constantemente em busca dessa perfeição.
Quando diz que se mitifica demasiado o lado da Grécia, ela gostaria disso?
Creio que não. A minha mãe foi dos melhores viajantes que conheci até hoje. Apesar de ter viajado poucas vezes com ela, seguia o rasto das suas viagens porque mandava postais de todo o lado. Há um postal que nunca esqueço, uma vez que vai ao Brasil e o avião faz escala no Recife, onde o dia deveria estar a nascer. Passou duas horas no aeroporto e envia-me um postal onde diz "o Recife parece um fruto roxo aberto ao meio". Como é que uma pessoa pode dizer isto quando acabou de chegar e ainda não viu nada? O entusiasmo que tinha com as viagens, nem que fosse a Badajoz, era impressionante - adorava viajar. Reduzir o seu mundo de viagem à Grécia é muito redutor. Eu tenho uma fotografia que tirei à minha mãe quando foi à Índia na comitiva presidencial e eu estava também em Goa a fazer uma reportagem. A certa altura ela vai também para Goa e fica no Forte Alvorada, na ilha em frente de Pangim. Como nessa altura não era fácil falar ao telefone, resolvi ir ver se estava bem - nunca fiquei preocupado porque ela safava-se sempre em viagem. Meti-me num barco e, quando estou a atravessar o canal, vem outro barco, apinhado de indianos e com um único europeu a bordo: a minha mãe. Chamei-a e fiz-lhe uma fotografia porque ela estava com um ar de felicidade impressionante. É uma das fotografias em que mais gosto de a ver. Era uma pessoa fascinada pelas viagens e não só pelo que conhecia ou queria ver melhor, Espanha, Itália ou Grécia, mas pelo desconhecido e pelas coisas únicas. A primeira vez que fui a São Tomé e Príncipe tomei banho numas rochas não sei onde e estava lá uma senhora que me disse: "Oh que engraçado, a tua mãe veio cá e tomou banho aí também." Isto dez anos antes, quando ninguém ia para ali. A qualquer lado a que fosse, conhecia os sítios mais absurdos e voltava fascinada. Cada vez que eu viajava, havia o ritual de ir almoçar a casa dela e contar-lhe a viagem. Havia uma coisa que a intrigava particularmente, porque é que eu gostava tanto de ir ao deserto. "O que é que há no deserto?", perguntava-me. E eu respondia: não há nada. E ficava a pensar naquilo. Depois foi à Líbia para um encontro de escritores e ficou uma noite numa tenda no deserto, viu o Kadhafi e veio de lá deslumbrada. Porque o Kadhafi pareceu-lhe um príncipe, um Lawrence da Arábia. Era das melhores viajantes que conheci, no sentido de aproveitar e agregar tudo. É o que eu disse, tinha uma capacidade de não desperdiçar uma hora de ser feliz.
Nunca deu muitas entrevistas. Porquê?
Não queria dar e até me ficou atravessada uma que deu quase no fim da vida. Insistiram muito comigo para que ela desse uma entrevista ao Independente, não queria mas lá a convenci. Foi um desastre, uma vergonha e fiquei pior do que estragado. Fizeram perguntas idiotas e ela não tinha paciência. Sobretudo, havia uma pergunta que ela detestava: porque escreve? Tirava-a do sério.
Alguma vez teve curiosidade nas vossas origens dinamarquesas?
Sim, aliás, ela conta mais ou menos essa história num conto chamado Saga. A história é muito romântica, de um miúdo que era o meu trisavô e que foge de casa do pai aos 15 anos porque ele o maltratava. Vem para o Porto escondido num barco e quando dão por ele estava na cidade. É adotado por um armador do vinho do Porto, funda a Casa de Vinho do Porto Andresen e nunca mais volta a casa. O pai nunca mais o quis receber. Quando é pai, escreve à mãe e esta responde que o marido não quer saber do filho e só lhe pede duas coisas: "Vai aí o berço em que todos os primogénitos foram embalados, faz o mesmo. O teu filho tem de se chamar João Henrique, tal como os mais velhos das gerações seguintes." Só fui uma vez à Dinamarca, mas por mais que procurasse não encontrei nada de familiar.
As sucessivas maternidades afastam a sua mãe da poesia?
Não sei responder a essa pergunta. Na primeira maternidade a que assisti, a do meu irmão mais novo, o que aconteceu foi que ela afastou-se de mim. Puseram-me a morar numa quinta em Amarante, onde estive dois anos. Quando fui para lá ela estava grávida e quando voltei o meu irmão já tinha mais de 1 ano.
Essas maternidades são, no entanto, as responsáveis pelos livros infantojuvenis que acabam por ser uma parte fundamental da obra. Concorda?
É uma parte fundamental e uma parte determinante de sustentação material do casal na altura. Ela começou a ter muito sucesso com os livros infantis, não havia nada de jeito em Portugal, e os seus livros começaram a ser lidos por toda a gente - o que foi muito importante do ponto de vista material. Na realidade, ela começou a escrever esses livros porque nos contava histórias para ficarmos quietos quando estávamos doentes.
Já as conheciam antes de serem publicadas?
Sim, ela testava-as connosco. Eu fiz o mesmo com o meu primeiro livro infantil, também era uma história que contava ao meu filho mais velho para adormecer e depois fui-a testando com ela. Ela sugeria "mude isto" ou dizia "isto está bem", até que a escrevi - O Segredo do Rio. A certa altura eu não sabia como é que ia resolver um problema e ela sugeriu: "Meta raposas." E eu meti as raposas. Testei o livro todo com ela; ela sugeria mude isto, isto está bem.
Ela queria ter um herdeiro literário?
Herdeiro literário é capaz de ser um adjetivo forte de mais. Ela gostava muito de ler o que eu escrevia e quando estava a fazer o Equador ia-lhe contando a história - ela pedia-me para eu ler - cada vez que lá ia. A certa altura perguntou-me o que ia acontecer ao protagonista e eu disse-lhe que ia morrer. Ela ficou nervosíssima, passou imenso tempo a dizer "não mate a personagem principal, não faça isso", mas [a minha mãe] morreu antes de eu acabar o livro e nunca lhe cheguei a ler o livro pronto.
Mas Equador seguiu o rumo que o Miguel queria e não o que a sua mãe achava melhor...
Seguiu o rumo que eu queria desde o princípio, além de que nunca percebi a sua obsessão para que eu não matasse a personagem principal. Talvez como já estava próxima de morrer lhe fizesse confusão.
O seu filho Pedro acabou um conto dela?
Sim, era um dos inéditos que encontramos, Os Ciganos, que só tinha o primeiro capítulo e ele acabou.
Essa é uma prática para continuar?
Eu gostava que ele continuasse porque acho que se saiu bem.
É uma coisa de família?
O meu pai também era um contador de histórias e podia ter escrito um romance se se tivesse virado para aí. Também inventava as suas histórias, e quando se nasce numa família de contadores de histórias, há a tentação de o ser também, e a vontade de escrever é muito forte. Realmente, aqueles jantares eram extraordinários, quer estivessem só eles ou mais gente. Lembro-me do Ruy Cinatti, que tinha ido para Timor e quando volta era completamente efusivo com a minha mãe. Até parecia um dos irmãos, tanto que o meu pai convenceu-nos de que era um nosso irmão mais velho, que tinha vivido muitos anos em Timor, e nunca nenhum dos dois desfez a história. Era fascinante para nós ver um tipo todo queimado do sol e que tinha vivido imensas aventuras, que falava o dialeto deles, a contar-nos histórias. Nós nem fazíamos ideia onde era Timor!
A primeira crítica ao primeiro livro da sua mãe, Poesia, é a do futuro marido...
Não será a primeira, creio que existe uma do Teixeira de Pascoaes, que não é bem uma crítica mas um texto curto escrito num jornal em que ele diz "Atenção, há uma poetisa nova..." A do meu pai, tenho a ideia de que foi uma das primeiras.
Seria uma declaração de amor ou mesmo uma análise crítica?
Mais depressa seria uma declaração de amor, seguramente.
A sua mãe era católica...
É difícil responder a essa pergunta. Que ela tinha fé, talvez, agora se era católica, era uma má católica... Era cristã, mais depressa.
Tinha fé?
Ela tinha fé na criação e na ordem divina. Por exclusão de partes, penso que ela seria católica. Ia à missa quando se lembrava, uma vez por semana, à última hora, na Igreja da Graça. Ela queria que eu fosse e eu dizia "ó mãe, que chatice", a que seguia "vá, despacha-te que eu tenho de ir à missa. Já estou atrasada", e eu acompanhava-a. Mas, em Lagos, por exemplo, raramente ia à missa. Nunca a vi confessar-se ou a comungar, portanto não seria propriamente um católico-modelo. Noutras coisas era, quando foi a história da vigília pela paz na Capela do Rato, ela estava lá.
Era um dos católicos progressistas?
Exato, dos que eram mais progressistas do que católicos.
O seu pai tinha a alcunha de Tareco e a sua mãe também tinha uma...
Xixa, vinha da infância. No caso dela não percebo a origem, mas o meu pai tinha uma irmã mais velha que era a Tareca. Ele odiava essa alcunha. Quando me tentaram pôr uma, ele fez uma guerra tão grande que o carapau ficou pelo caminho logo.
Usavam esses petits noms entre eles?
Não, nunca ouvi. Quem chamava Xixa à minha mãe eram as pessoas da infância dela e da família, ninguém mais. Ela também não gostava.
Há um momento determinante e trágico na vida da sua mãe, que é o acidente com o seu irmão. Ela mudou depois disso?
Sim. Foi aos 15 anos, a jogar futebol. Estava ao meu lado e foi por causa de uma cabeçada numa bola de futebol e depois um mau diagnóstico médico.
Alterou a vida dela?
Completamente. Alterou absolutamente a vida dela. Absolutamente. É como uma pessoa que se tiver 99 motivos para ser feliz há um que nunca a deixa ser completamente.
Teve efeitos na obra?
Sim, há poemas em que isso se nota. Como disse antes, há poemas dela em que eu olho para a data, e neste caso também sinto que foram influenciados por isso. Determinante.
Um dos últimos dados da biografia dela é ter sido trasladada para o Panteão. Sophia teria gostado?
Creio que não, assim como eu também não gostei. Mas como somos cinco irmãos e o meu voto foi solitário... Acho ela não gostaria de todo de estar no Panteão, de todo. E eu não gosto de a ver lá; enfim, não vou ser ingrato, gosto da homenagem mas não gosto de saber que a minha mãe está no Panteão. Gostava muito mais de saber que ela estava no Cemitério da Luz, que era um sítio onde eu podia ir conversar com ela de vez em quando, e o Panteão é um sítio onde não me apetece estar.
Como é que os portugueses a veem hoje?
Isso faz-me ficar muito orgulhoso, porque a minha mãe conseguiu uma unanimidade nacional, geracional e de classe sociais que atravessou gerações inteiras. É difícil encontrar alguém que não gostasse dela, tirando no meio literário algumas rivalidades que existiram a certa altura, mas de gente menor, mesmo. De resto, acho que é dos portugueses mais admirados que eu vi. É a minha opinião, posso estar errado.
Se Sophia não fosse poeta...
... seria bailarina, que era o que ela gostaria de ter sido. "Bailarina fui mas nunca bailei", escreveu num poema. Ela gostava muito de dançar.
Esses momentos de alegria em família eram frequentes?
Eram, sobretudo quando ela estava no Algarve. Adorava, era o que mais gostava, ficava permanentemente feliz. A minha mãe defendia-se muitíssimo contra a idade, não só porque era uma pessoa muito aberta ao que era novo, a descobrir pessoas, a viagens novas, mas porque adorava ir à praia, tomar banho, nadar. Sempre a conheci a andar na rua a uma velocidade extraordinária, como a minha avó, e era difícil acompanhá-las.
Como está a seguir as comemorações do centenário do seu nascimento?
Estão no fim. No dia 6 [de novembro] faz 100 anos que nasceu, portanto creio que acabam aí. O Presidente da República vai fazer o discurso e pronto. O que quer que lhe diga mais?
Não são as suas comemorações?
Pode parecer muito presunçoso dizer isto, mas ela não gostava de homenagens em vida e eu também não. Se por um lado reconheço o esforço de quem colaborou nas comemorações e o de quem gostou que o centenário tivesse sido celebrado, por outro lado acredito que ela não teria aguentado e, para mim, volto ao princípio, ser filho da Sophia de Mello Breyner, filho de minha mãe, a minha comemoração é falar com ela todos os dias tal e qual como se estivesse aqui, ou quase. Não preciso do Panteão nem do centenário para a ter bem viva, e isso é o essencial.
É um sentimento partilhado com os seus irmãos?
Suponho que sim. Agradeço em nome da memória dela porque se mobilizaram neste ano, eu mantive-me afastado fisicamente - não em espírito.
O que lhe ensinou a sua mãe?
Primeiro que tudo, ensinou-me a olhar, procurar e não ser indiferente nem ingrato perante a beleza das coisas, tentar encontrar uma ordem, uma justiça e uma justificação. Ensinou-me que a beleza nunca é em vão e por isso acho que herdei dela um lado muito conservador no sentido de preservar as coisas. Isso tem que ver com o nosso património, tem que ver com os nossos hábitos. A minha mãe nunca foi a uma tourada, mas tenho a certeza de que ela hoje defenderia a continuação das touradas - o lado bonito daquilo e o inspirador -, por isso também aprendi com ela a não ser consensual. Com ela e com o meu pai. Procurar ver sempre além da aparência, do imediato e do que a maioria pensa, do que está politicamente correto no momento e guiar-se sobretudo pela sensibilidade. Essa foi a grande lição dela e que revejo nos seus poemas e no que escreveu. A literatura infantil tem em atenção o despertar nas crianças o gosto pelas coisas simples e boas. A Menina do Mar, por exemplo, tem uma coisa extraordinária, que é um rapaz que resolve mostrar a uma menina que vive no fundo do mar as coisas mais bonitas da Terra e mostra-lhe o fogo e uma flor. Isso é altamente eloquente de generosidade do ponto de vista literário. Se a pessoa quer formar crianças com a literatura, sabe que esta é como a música: vai-nos salvar. E ela tinha a noção de missão de salvar através da escrita.
Qual é a última memória que tem dela?
A última é a do dia em que ela morreu, mas essa não é uma memória bilateral. A memória que tenho de como ela era é justamente na casa de Lagos. Ela já estava muito enfraquecida e doente, fazia confusões, e a certa altura eu estava desesperado porque não conseguia ter uma conversa direta com ela e sentia-a completamente ausente. Então, de repente, veio-me uma inspiração, e comecei a dizer o princípio de poemas dela e ela acabava-os. Era impressionante! Eu disse o princípio de uns cinco poemas e ela terminava-os, com um sorriso. É a última memória bonita que tenho dela tal como era. A última coisa que desapareceu na minha mãe foi a poesia.