Miguel Monjardino: "A Ucrânia estará sempre em risco enquanto Putin liderar a Rússia"

Três décadas depois do fim da Guerra Fria, a invasão russa da Ucrânia e a resposta do Ocidente está a mudar o sistema internacional, aquilo a que Miguel Monjardino, professor de Geopolítica, chama de "Crise dos Trinta Anos" no livro <em>Por Onde Irá a </em><em>História?</em>, hoje lançado.
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O Ocidente está a mostrar, pela atual reação à invasão russa da Ucrânia, que unido continua a não ser rival à altura?
Há três anos, na Conferência de Segurança de Munique, discutiu-se o conceito de "Westlessness", ou seja, a ideia o de que o "Ocidente" estava de tal maneira dividido que o futuro pertenceria à China e à Rússia. Como argumento no livro, a pandemia e a guerra de Moscovo contra Kiev levaram Washington e as capitais europeias a reagir e a mostrar que estão dispostas a continuar a ser uma das principais fontes da Ordem Internacional. Além disso, o conceito de "Ocidente" não é hoje meramente geográfico, mas cada vez mais político, tecnológico, financeiro e económico. A união dos países europeus, Washington, Canadá e, por exemplo, do Japão em relação ao destino da Ucrânia, tem sido uma grande surpresa para Moscovo e Pequim.

Os Estados Unidos, agora que têm autossuficiência energética, estão a demonstrar que as previsões de declínio como superpotência estavam erradas?
Desde há alguns anos estão em curso mudanças estruturais na área da energia. Estas mudanças têm sempre consequências estratégicas. O shale oil e o shale gas, que já tem uma década, são um bom exemplo. Ambos permitiram aos EUA aumentar a sua margem de manobra a nível internacional, fortalecer as relações com os seus principais aliados e aumentar a competitividade da sua indústria. Todavia, a produção de shale oil e shale gas nos EUA tem vindo a diminuir. Andamos há décadas a discutir o declínio dos Estados Unidos. Washington, todavia continua a ter vantagens muito consideráveis em relação aos seus rivais e adversários. A dúvida continua a ser esta: a orientação geoestratégica de Washington continuará a ser internacionalista? Não sabemos. Este é um ponto que temos de ter em atenção na avaliação do risco que fazemos nos países europeus.

Muito fragilizada pela política de covid-zero, com um crescimento económico de apenas 3% em 2022 e uma população a diminuir, a China continua capaz de desafiar a liderança americana?
Tenho dúvidas. Pequim é, e continuará a ser, uma capital indispensável na política internacional. Todavia, continuamos a pensar sobre a China de uma forma muito linear, sobretudo em termos económicos. Esta tendência deverá ser reforçada ao longo de 2023, com a saída da China da fase mais difícil da pandemia. Todavia, como argumento no livro, Pequim cometeu erros estratégicos graves desde 2008. Tal dificultará a execução e concretização de alguns dos principais objetivos do Partido Comunista da China.

Uma guerra Estados Unidos-China é provável, com Taiwan como causa ou como pretexto?
O livro propõe um modelo de análise da política internacional onde a variável tempo é importante. O meu argumento é que a China deverá atingir o ponto máximo ao nível económico e político até ao final desta década. Se assim for, a janela de oportunidade de Xi Jinping e do PCC parece-me ser bem mais curta do que pensamos. A isto acresce a centralização do poder no líder chinês. Por outro lado, nos Estados Unidos, no Japão, Coreia do Sul, Austrália e países europeus, o destino de Taipé é visto como essencial para a defesa dos seus interesses e valores políticos. Neste contexto, uma campanha de coerção chinesa contra Taiwan, ou mesmo a sua invasão, podem a vir ser possíveis. A interpretação da variável tempo em Taipé, Pequim, Washington e Tóquio, a política doméstica em todos estes países e a avaliação do poder tornam Taiwan num dos temas mais delicados e difíceis na política internacional.

Como se pode interpretar a decisão alemã e japonesa de grande reforço do investimento militar?
Como um sinal da mudança de avaliação que Tóquio e Berlim fazem do período histórico que vivemos. A guerra da Rússia contra a Ucrânia e a maior ambição da China são um sinal da Crise dos Trinta Anos. O processo de reorientação estratégica do Japão, todavia, é mais antigo do que o de Berlim. Por razões comerciais e históricas, e também de atrofiamento estratégico durante as últimas décadas, a Alemanha deverá ter mais dificuldade em fazer a sua adaptação do que o Japão. Angela Merkel e Olaf Scholz não são Shinzo Abe e Fumio Kishida.

Esta corrida ao armamento gerada pela guerra contra a Ucrânia traz nova incerteza geopolítica ao mundo?
Os investimentos militares resultam da avaliação do risco e das oportunidades que as principais capitais na Ásia, Europa e América do Norte fazem. Do ponto de vista tecnológico, energético, financeiro e militar, já entrámos numa nova época histórica. O período que começou em 1989/1991 acabou e, como defendo no livro, o sistema internacional entrou em desequilíbrio. Chegámos a um ponto de bifurcação na história. Levaremos algum tempo até chegarmos a uma nova configuração do sistema.

A nova vitalidade da NATO inibe a União Europeia de ter capacidade militar própria ou esse deve continua ser um objetivo?
A reação emocional das sociedades europeias contra a invasão russa da Ucrânia e a enorme violência das tropas russas contra os civis ucranianos relembrou-nos a importância da NATO e da União Europeia. Vladimir Putin conseguiu duplo-feito: é um dos agentes da fundação de uma nova Ucrânia e da refundação da Aliança Atlântica e da integração europeia. Todavia, a guerra de Moscovo contra Kiev deixou os países europeus excessivamente dependentes de Washington em termos militares. Tal parece-me imprudente da nossa parte.

Vê alguma saída para a guerra na Ucrânia?
A curto prazo não. Do ponto de vista de Vladimir Putin, do regime que lidera e da Igreja Ortodoxa russa, esta é uma guerra existencial. A sua Rússia só poderá existir com o controlo de Kiev. Moscovo continua a ser uma capital imperial e entende que esse império será uma das fontes de ordem na política internacional. A Ucrânia estará sempre em risco enquanto Putin liderar a Rússia. Para Kiev, esta também é uma guerra existencial. O preço pago em sangue e em destruição é a melhor prova do que está em jogo para a sociedade e a liderança da Ucrânia. Este é um país determinado a garantir a sua independência a todo o custo. O ciclo eleitoral na Ucrânia - haverá Eleições Presidenciais em 2024 - reforçará tudo isso. Os próximos meses deverão ser muito violentos. Aí, veremos se Kiev conseguirá ou não - e a que preço em termos humanos e de equipamento - executar uma campanha ofensiva que lhe permita recuperar o seu território.

Uma Rússia ameaçada de derrota pode ser tentada pela opção nuclear?
Tudo depende da definição da derrota. Uma coisa é uma derrota que implique a continuação da existência de uma Ucrânia pluralista do ponto de vista político e mais próxima da Europa. Outra é uma derrota russa que leve Kiev a recuperar todo o seu território perdido após 24 de fevereiro do ano passado. Por fim, temos um cenário em que Kiev recuperaria o controlo da Crimeia. Pelas suas implicações políticas a nível interno e externo, a opção nuclear só deverá fazer sentido numa situação de perigo existencial para a Rússia de Putin. A dificuldade é que ninguém sabe onde está essa linha. Daí a tensão em alguns países europeus e nos Estados Unidos entre a necessidade de garantir que a Ucrânia não perca a guerra ao mesmo tempo que se tenta evitar uma grande derrota da Rússia.

Há uma disputa entre o mundo democrático e as autocracias ou tudo se resume a uma luta de poder e de influência entre potências?
Há claramente uma dimensão ideológica entre autocracias, como a China e a Rússia, e as sociedades democráticas. Xi Jinping e Vladimir Putin têm sido claros sobre isto. Tal tem consequências em relação à forma como exercem o poder e influência. Temos desvalorizado em Portugal essa dimensão ideológica, sobretudo em relação à China. Como a sua história mostra, os Estados Unidos também são uma potência ideológica. É claro que os interesses também continuam a ser muito importantes. A grande questão é a hierarquização que as democracias liberais devem fazer em termos estratégicos ao nível dos valores e interesses. Aqui as diferenças entre a Administração Biden e alguns dos seus aliados são evidentes.

Portugal deve reforçar as suas capacidades militares no âmbito da NATO e, mesmo estando comprometido com a UE, privilegiar a aliança tradicional com Estados Unidos e o Reino Unido pós-Brexit?
Sim. A NATO e a União Europeia são alianças absolutamente fundamentais para o futuro de Portugal. Durante a Crise dos Trinta anos, devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para reforçar o papel destas instituições. Por razões geográficas, acho que devemos adotar uma estratégia marítima. Todavia, como defendo no livro, a nossa trajetória não é animadora.

A atual crise devolveu o valor estratégico à Base das Lajes?
Sempre que falamos na Base das Lajes, pensamos nos Estados Unidos. Nunca pensamos em Portugal. Tal parece-me errado. Os Açores são território nacional no coração do Atlântico. O ponto essencial é saber como tiramos partido do seu valor estratégico independentemente da avaliação que Washington faça da Base das Lajes. O livro inclui uma proposta para tal. No que toca a Washington, os seus investimentos na manutenção da logística da base sugerem que continuará a ser relevante para os seus interesses. Dito isto, a importância da base diminuiu claramente nas últimas décadas. Continuamos a ter imensa dificuldade em aceitar isto. É um pouco como dizer que a miúda mais gira deixou de namorar connosco. A base é importante para a autoestima do país e dos Açores. Em 2009, Washington tornou claro que as Lajes passariam a ser uma base secundária na rota central do Atlântico até 2025. Na altura, cometemos um erro grave de avaliação política em Portugal sobre o assunto. Hoje em dia, o papel da base é semelhante ao da Fortaleza de S. João Baptista no século XVI e XVII: apoiar o trânsito da superpotência marítima em direção ao sul de Espanha. Se a evolução da Crise dos Trinta anos levar a aumento da importância estratégica do Atlântico, a base poderá recuperar a sua importância. Por agora, é uma Bela Adormecida militar.

Por onde irá a história?
Miguel Monjardino
Clube do Autor 19 euros
383 páginas

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