"Meu pai era faxineiro, mas eu cheguei a astronauta, o único a falar português que foi ao espaço"
Vamos começar pela visita aqui em Lisboa ao Pavilhão do Conhecimento - Ciência Viva, um local muito apreciado pelas crianças e onde o vi divertir-se. No Brasil sente ser mais popular junto das crianças por ser ministro da Ciência ou por ser astronauta?
Eu acho que elas juntam as duas coisas em mim, mas o facto de ser astronauta e o espaço mexer com a imaginação das crianças faz com que isso seja uma ferramenta que temos de usar bastante na popularização e na promoção da ciência. A NASA faz muito isso, e eu criei no Brasil, dentro do Ministério, a Secretaria voltada para a articulação, popularização e promoção da ciência. Eu adoro - acho que deu para perceber o quanto eu gosto dessa área - conversar com os jovens, desde os pequeninos até à universidade, sobre as possibilidades da ciência. Vemos os olhinhos deles a brilhar quando contamos as histórias dentro do veículo espacial, de como é ser piloto, de como é ser astronauta... O que eu mais quero com isso é que eles percebam a importância da educação, de como tudo isso só se consegue estudando, que vejam a importância da educação para conseguirem realizar os seus sonhos. Eu vim de uma família muito pobre - o meu pai era faxineiro, servente de serviços gerais, tipo empregado da limpeza, numa empresa que, naquela época, se chamava Instituto Brasileiro do Café.
A família vivia ainda em Bauru, onde nasceu, em março de 1963?
Sim, bem no centro do interior de São Paulo. Então, eu quando era criança não tinha dinheiro, não tinha nada, não tinha brinquedos, morava na periferia, a minha casa era constantemente alagada pelo rio que passava ali perto, e eu percebi logo que estudar era o caminho, que se eu estudasse conseguiria realizar coisas. Eu queria ser piloto e ia ao aeroclube conversar com os pilotos, pois não tinha dinheiro para pagar as horas de voo, e eles diziam-me que como eu não tinha dinheiro para voar ali devia ir para a Força Aérea onde poderia voar e ter uma carreira. Para entrar na Força Aérea no Brasil é preciso passar num concurso, fazer um exame de admissão para entrar na Academia da Força Aérea. É preciso estudar bastante, fazer um curso e tudo. Então, aos catorze anos comecei a trabalhar, estudava de manhã a fazer um curso técnico de eletricista e à tarde trabalhava na Rede Ferroviária Federal como aprendiz de eletricista, onde ganhava meio salário mínimo. Com um mês de salário mínimo, eu pagava um curso noturno de técnico de eletrónica, para poder pagar a minha faculdade, pois para arranjar um emprego eu tinha de ter um curso técnico - fiz quatro. Aí, o único tempo que eu tinha para estudar era dentro das locomotivas onde trabalhava como eletricista, quando tinha uma pequena folga acendia a luz de manutenção e ficava a ler os livros de física e matemática. Lembro-me que um dos homens que trabalhava lá e me via com os livros perguntava: "Moleque, você está sempre com esses livros aí. Você está estudando para quê?" Eu respondia que estava a estudar para entrar na Academia da Força Aérea, que queria ser piloto e não ia ficar ali a minha vida inteira. Ele dizia que isso era para filho de ricos, que eu nunca iria conseguir e ia ficar frustrado. Nesse dia cheguei a casa chateado e a minha mãe - que era italiana de olho azul - quando chegou do trabalho olhou para mim e perguntou o que é que se passava. Eu disse-lhe que os meus amigos me tinham dito que eu não ia conseguir passar no exame, que aquilo era para filhos de ricos. Ela respondeu: "Preste atenção, eles têm a vida deles e fazem o que quiserem com ela, mas você tem a sua vida e você consegue ser tudo o que quiser na vida desde que estude, trabalhe, persista e faça sempre mais do que aquilo que esperam de si." É isso que eu passo para a miudagem.
Os miúdos, sobretudo os mais pobres, quando olham para si, o ouvem, inspiram-se, reconhecem-se nesse percurso ou na possibilidade de fazer esse percurso?
Exato. É isso que eu lhes digo sempre, que não importa se se é rico ou pobre, não importa onde se mora, o mais importante é onde se quer chegar. Só depende de nós, se estudarmos chegamos lá. A minha função, hoje, como ministro acaba por ser um complemento a essas coisas que eu lhes digo como astronauta, porque como ministro, embora não seja ministro da Educação, trabalho muito próximo da Educação. Eu consigo criar programas que abrem caminho para as crianças que querem estudar, para que elas possam desenvolver os seus talentos, fazer as suas empresas, tornarem-se empresárias, e isso é uma coisa que me dá muito prazer, poder ajudar.
Conseguiu ser piloto, que é uma coisa fantástica, mas depois é astronauta, o que é um salto qualitativo enorme. É uma experiência que não é comparável com a de ser piloto?
É mais ou menos. [Risos] O meu primeiro sonho era ser piloto, aí fiz a Academia e formei-me como piloto; próximo sonho: quero ser piloto de caça, lá fiz o curso e tornei-me piloto de aviões de caça; agora quero ser líder de esquadrilha, liderar os aviões, etc., tornei-me líder; depois quero ser instrutor, tornei-me instrutor, sempre em escada... Depois comecei a trabalhar em segurança de voo e decidi que queria ser engenheiro também. Voltei para a faculdade e fiz mais cinco anos de engenharia para ser engenheiro aeronáutico. Aí resolvi somar a parte da engenharia com a pilotagem e decidi ser piloto de testes. Quando me dizem que tive muita sorte na vida costumo dizer para verem a quantidade de cabelos brancos que tenho. E quando me dizem que tive muitas oportunidades respondo que é preciso criarmos as nossas oportunidades. O que eu vi foi que tinha de aproveitar a oportunidade de ligar a parte da pilotagem com a parte de engenharia e tornar-me no primeiro piloto de testes do Brasil que era piloto e engenheiro. Voei em todos os aviões que havia na Força Aérea, voei nos Estados Unidos, na Rússia, etc. e comecei a pensar que queria voar um pouco mais alto e mais rápido. Aí, comecei a pensar em ser astronauta.
Não era um sonho de juventude, foi algo que surgiu mais tarde?
Não, foi-se desenvolvendo. Queria voar mais alto, mais rápido e planeei entrar na NASA. Então, apareceu um concurso público para uma turma de astronautas na NASA para fazer o doutoramento. Inscrevi-me, fiz o concurso, fui selecionado e fui.
Foram nove dias e muitas horas no espaço, certo?
Na verdade, foram dez dias.
Tinha astronautas americanos e cosmonautas russos a bordo consigo na Estação Espacial Internacional?
Sim. Na verdade, eu formei-me em dezembro de 2000 e ia voar em 2001. Preparei-me para voar no vaivém espacial americano e em 2001 não fui escalado, em 2002 também não. A minha turma tinha 32 elementos e eu fui o segundo a ser escalado, mas demorou um tempo. Aí, tivemos o acidente com o Columbia em 2003 e pararam totalmente os voos com o vaivém espacial nos Estados Unidos. Em 2005 ligaram-me a dizer que eu ia voar com os russos. Eu sou especialista em missão, que é um tipo de engenheiro de bordo que trabalha com a manutenção de vários sistemas, por isso eu sabia tudo do nosso lado, do lado do vaivém espacial, mas não do lado russo, que é só a parte de emergência, basicamente. Eu achava que os próprios cosmonautas não precisavam de mim lá para fazer isso, mas tudo bem... Quando perguntei quanto tempo tinha para aprender tudo do lado russo - pensava que seria um ano ou dois - responderam-me que tinha cinco meses, o que seria um grande desafio. No fim da conversa disseram-me que tinha de saber russo, porque toda essa parte estaria em russo - check list, painel, manual, controlo de voz - e eu disse que não sabia falar russo. Então, deram-me três meses dos cinco para aprender russo.
Teve de aprender pelo menos o russo básico para poder voar?
Disse que sim e fui para lá aprender. Não posso dizer que seja muito letrado em russo, mas sei o suficiente para voar. Aí, ao fim de cinco meses de treino fui para o espaço com os russos. Fomos os primeiros do lado americano a ir. Hoje em dia, praticamente toda a gente voa lá - aliás, agora começaram os voos com a Space X. Eu aprendi muito e foi bom, porque aprendi tecnologias, metodologias do lado do programa americano e aprendi também do lado do programa russo.
Quando estava lá em cima, quem estava consigo?
Na minha missão estava o Pavel Vinogradov, o comandante russo, e o Jeffrey Williams, astronauta americano, e eu. Nunca ninguém que falasse português tinha ido antes de mim para lá, para o espaço. [Risos]
Mas lá teve oportunidade de falar português, comunicou para a Terra em português, foi isso?
Na verdade, lá só se podia falar inglês ou russo, mas aconteceu um episódio numa situação mais crítica em que a comunicação estava má - eu tinha dois minutos para passar uma informação, mas com a dificuldade de comunicação eu tinha basicamente 30 segundos para passar a dita informação aos cientistas e como estava difícil de perceber eu comecei a falar em português a dizer "Pára, pára, pára!" Aí, fui chamado à atenção porque ali era proibido falar português...
Mas falou em português no espaço, mesmo que pouco...
[Risos] Sim, mas só era permitido falar russo ou inglês na estação espacial, mas eu tinha de resolver o problema...
Depois da excitação de ir lá acima, passar os tais dez dias no espaço é aborrecido ou não?
Não, nada. Ali cada minuto conta. Há trabalho o tempo todo, é literalmente ao minuto. Quando se termina uma tarefa, aparece logo outra para se fazer, não dá para parar. Temos aproximadamente seis horas para dormir por dia. É preciso ver que estamos dentro de um veículo espacial que dá uma volta à Terra em 90 minutos, assim passamos 45 minutos do lado do dia e 45 minutos do lado da noite, a 28 mil Km/h de velocidade. A vida ali não tem nada de monótono, as coisas mudam muito. Dá um certo cansaço fisiológico por causa das mudanças do ciclo circadiano, mas acabamos por nos adaptar. Temos a desidratação do corpo, perdemos densidade óssea, sofremos a radiação, mas faz parte da vida de astronauta... Eu estava prestes a voltar ao espaço quando fui convidado para ser ministro. Fiquei na situação em que se não aceitasse ser ministro podia, quando fosse mais velho, pensar que tinha tido a possibilidade de ajudar o país sendo ministro e não tinha aceitado. Achei que não iria conseguir dormir bem com isso, por isso decidi aceitar e aqui estou, a cumprir uma missão para o país, uma missão que eu acho que é bem nobre.
Agora mais como ministro do que como astronauta, ou juntando as duas condições, pensa que o Brasil, que já é uma potência tecnológica que faz aviões, carros, tudo, pode ser uma superpotência científica? Tem essa capacidade?
Temos, temos. Eu vejo o planeta como um veículo espacial onde estamos todos e gosto muito de parcerias, de fazer cooperações com outros países. Eu penso que o sentido da tecnologia e da ciência vai ser de uma cooperação internacional. Nós temos problemas muito sérios no planeta e que vão ser cada vez piores, podemos ver isso refletido nos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável da ONU - eu também sou embaixador da ONU para o Desenvolvimento Industrial -, mas esses problemas não podem ser resolvidos por um país ou outro, eles têm de se juntar para os resolver. Os problemas da fome, do acesso à água, da pobreza, das alterações climáticas têm de ser trabalhados em conjunto. Eu vejo a ciência muito colaborativa em geral e o Brasil tem muito boas condições para ajudar. Se imaginarmos todos os nossos recursos naturais que precisam de ser preservados e que nós preservamos através da ciência - o Ministério lançou uma série de programas de desenvolvimento sustentável em todos os biomas do país. Além disso, temos cientistas muito bons no Brasil que trabalham em colaboração com o planeta. Acabámos de inaugurar um cabo submarino que conecta Portugal com o Brasil e, de certa forma, a Europa com a América Latina como um todo, que vai permitir o tráfego de muita informação científica também, por isso é que nós, no Ministério, ajudámos a fazer o financiamento do lado do Brasil. Eu vejo a ciência como uma colaboração muito grande.
A sua mãe é de origem italiana, como disse, e o seu pai, o sr. Pontes, é de origem portuguesa?
O meu pai era uma mistura interessante porque, até onde eu sei, o meu avô embora tendo nascido no Brasil era descendente de portugueses, morreu com cento e tal anos, teve 25 filhos, 17 com a primeira mulher e oito com a segunda - eu só conheço esses irmãos mais próximos do meu pai deste segundo casamento - e dizia que a família dele era portuguesa. A minha avó era brasileira nativa da tribo Tibiriçá que existia naquela região, o que deu uma mistura interessante.
Para si, e agora volto ao astronauta, quando imagina aqueles navegadores portugueses todos dos séculos XV e XVI, também pensa neles como fazendo parte de uma aventura fantástica?
Sim, sem dúvida. Quando nos colocamos no lugar desses navegadores daquela época e sabemos que eles tinham um conhecimento de navegação apoiado por instrumentos ainda muito rudimentares para a precisão da navegação... Hoje, quando queremos ir a algum sítio, pomos o endereço no GPS e vamos. Se nos disserem que não podemos usar o GPS e nos derem um mapa, já temos uma certa dificuldade, se não tivermos um mapa e tivermos de navegar pelas estrelas vemos que já não é tão simples assim. Então, acho que temos de respeitar, e muito, esses navegadores daquela época que partiam numa grande aventura e precisavam de muita coragem para fazer aquilo. Eu comparo muito com a exploração espacial - nós temos mais tecnologia, sem dúvida nenhuma, mas quando estamos no espaço sentimos quão frágil é o nosso corpo para tudo isso. Aí aparecem outras fragilidades. Temos uma máquina que mandamos para Marte, passa oito meses a viajar, sujeita a um monte de radiações, quando lá chega tem, muitas vezes, um pouso espetacular e depois vai estar sujeita na superfície de Marte a uma atmosfera completamente inóspita, com irradiação e tudo. E o ser humano? O ser humano tem um corpo, uma saúde, que é muito limitativo e, quando nos aventuramos nessas viagens no espaço profundo, longe da Terra... Eu estou na estação espacial e se houver um problema sério lá, em três ou quatro horas eu estou de regresso à Terra, onde tenho um hospital e ajuda, mas se pouso em Marte depois de oito meses de viagem não tenho um hospital à minha espera.
Mas acredita que o homem vai tentar ir à Lua outra vez, e a Marte, e por aí fora?
Com certeza, esse é o caminho. A previsão é o regresso à Lua em 2024, a ida a Marte lá para 2035 e a outros lugares. Eu acho que essa coisa dos navegadores antigos e dos astronautas agora é intrínseca ao ser humano - ver o que está além das fronteiras e ir para além delas. É isso que também me motiva na ciência, ver as experimentações, ver como ultrapassar os limites. O que eu sinto só, é que a nossa vida é muito curta para tudo isso. Acho que temos de trabalhar para aumentar a longevidade do ser humano. Diria que os 100 anos são uma data limite para a maioria das pessoas - além do meu avô, eu conheço o senhor Alexandre que os passou. Aliás, os pais do senhor Alexandre eram daqui da Sobreda, do lado de lá da ponte, no concelho de Almada. O problema é que nós vivemos muito pouco e há muita coisa para aprender, eu tenho sempre essa sensação de querer aprender mais, porque há sempre muito mais, ninguém sabe tudo. Portanto, é importante para mim passar o conhecimento para os jovens.
leonidio.ferreira@dn.pt