Memória e identidade
Carros a circular sem condutor, lentes de contacto com câmaras e telecomandos virtuais. Ficção-científica a servir um melodrama que se encaixa no sub-género dos dramas com doenças terminais. Assim é este Swan Song, não fazer confusão com Swan Song (inédito entre nós), de Todd Stephens, com Udo Kier, também do mesmo ano. Este é a obra de estreia do britânico Benjamin Cleary, que nos leva para um futuro de requintes tecnológicos onde um brilhante ilustrador publicitário decide clonar-se a si próprio depois de perceber que tem uma doença incurável. Cameron (Mahershala Ali) ama a sua mulher (Naomi Harris) e o seu filho mais do que tudo e sem ninguém perceber dispõe-se a esse processo de regeneração de um outro corpo numa ilha nos arredores de Seattle, em que uma médica cientista (Glenn Close, imperial como sempre...) cria um novo Cameron com todas as suas memórias, pronto para o substituir quando for a hora.
Apesar do aparato futurista de "sci-fi low", a atração da história reside precisamente no fator humano. Trocado por miúdos, é um filme onde as pessoas são as estrelas, um conto sobre a nossa alma, algures a navegar entre a equação da memória e identidade. Quem somos nós, que legado deixamos e quais os momentos da nossa vida que não abandonamos...
O estreante Benjamin Cleary é perito em construir um ambiente dramático com múltiplos e variados registos, uma elegia de vida onde o efeito visual é a alma de um homem, neste caso um homem bom. A fórmula ensaia uma relação fecunda com o flashback na medida que somos levados a um álbum de memória dos tais momentos fortes de uma vida que se despede. Mas o que poderia ser um "derrama lágrimas" desavergonhado e sempre em concubinato com a pieguice de Hollywood, acaba por se tornar em algo verdadeiramente tocante e a tocar em pontos sensíveis de um relato de uma relação. Importa sublinhar que tudo é servido com diálogos certeiros e sem nunca o seu conceito de base colocar como refém tudo o resto.
E, mais importante, temos um Mahershala Ali a todos os níveis perfeito neste papel duplo. É a primeira vez que tem direito a um papel (que acabam por ser dois...) como protagonista. Uma interpretação de arrepiar, tão suave e doce em modo Cameron doente e tão dúbia e surpreendente como o Cameron réplica. Parece ser sem esforço, como os grandes, os maiores atores conseguem. Para já, está na corrida dos prémios desta temporada, estando inclusive nomeado para melhor ator nos Golden Globes, isto depois de ter recebido nos últimos anos dois prémios da Academia como melhor secundário, em Moonlight e Green Book. Trunfo forte de um filme cujo elenco também raia a perfeição, de Naomi Harris a Glenn Close, passando por uma impecável Awkwafina.
Swan Song serve também de exemplo para a indústria americana continuar a acreditar em pequenos projetos de custo médio. Cinema para adultos com alguma frescura narrativa e de conceito, ainda que, escusamos de ser inocentes, agora só possíveis nas plataformas. Antes de The Tragedy of Macbeth, de Joel Coen, a Apple a marcar pontos nas suas apostas de cinema...
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