A semana foi negativa para Matteo Salvini. O líder da Liga, partido que há meses segue destacado nas sondagens, viu o Senado levantar a sua imunidade em resposta ao pedido do tribunal da Catânia, na Sicília, relativo ao caso Gregoretti. Em julho do ano passado, o navio Gregoretti da Guarda Costeira recolheu 131 migrantes no Mediterrâneo, mas o então ministro do Interior proibiu a sua entrada em terras italianas sem que antes os restantes parceiros europeus não chegassem a acordo sobre a sua distribuição. Os migrantes permaneceram quatro dias a bordo do navio, sem destino definido, motivo para ser acusado de abuso de poder e sequestro de pessoas..A procuradoria pediu o arquivamento do caso, mas este é o primeiro de vários que envolvem o vice-primeiro-ministro da coligação governamental anterior, que juntou o Movimento 5 Estrelas e a Liga. No dia 27, a comissão sobre imunidade do Senado vai decidir sobre um caso análogo, relativo ao Open Arms, sendo certo que dessa vez os migrantes estiveram 20 dias ao largo de Lampedusa. A capitã do Sea Watch, Carola Rackete, detida em junho do ano passado por ter furado o bloqueio de duas semanas das forças navais italianas, também intentou um processo contra Matteo Salvini por difamação e instigação à violência. O líder populista usara as redes sociais para dizer que a ativista alemã era uma "pirata" responsável por um "ato de guerra"..Foi com bravatas como estas que Salvini e o seu partido galgaram nos índices de popularidade, a ponto de em poucos meses trocarem de posição com o 5 Estrelas - o milanês não resistiu à tentação de provocar a queda do executivo e livrar-se do parceiro, mas a jogada foi travada quer pelo presidente, Sergio Matarella, quer pelo primeiro-ministro, Giuseppe Conte. Mas ainda há mais problemas legais, neste caso do partido. Em 2018, a Liga foi condenada a pagar 49 milhões de euros ao Estado por fraude, mas só devolveu aos cofres do erário três milhões. A liderar a oposição, Salvini enfrenta longos processos, aos quais responde como o anterior líder da direita, Silvio Berlusconi: vitimizando-se e atacando os juízes. "Querem eliminar-me pela via judicial.".Na quarta-feira, dia em que os senadores levantaram a imunidade de Salvini, Giorgia Meloni, a líder do outro partido de extrema-direita, dirigiu-se à câmara alta para "manifestar solidariedade" para com Salvini. "Defendamos o direito de um ministro a fazer no que os italianos votaram, porque sem essa liberdade a democracia acabou." Nos temas da imigração e da soberania, Meloni só discordará do ex-ministro por exigir mão mais pesada. Por exemplo, durante a crise do Sea Watch, a dirigente defendeu o repatriamento dos migrantes, a prisão dos ativistas e nada menos do que o afundamento do navio..Sem o tempo de antena nem a omnipresença nas redes sociais, mas também sem o respetivo desgaste de Matteo Salvini, Giorgia Meloni tem feito o seu caminho de política profissional a partir das cinzas da I República e dos movimentos pós-fascistas. Em plena crise provocada pela Operação Mãos Limpas, de combate à corrupção, a jovem de 15 anos inscreveu-se no Movimento Social Italiano, o partido dos herdeiros do fascismo, mais tarde Aliança Nacional, e fez da atividade política o seu trabalho..É verdade que consta no seu currículo ter exercido a atividade de jornalista, mas foi no órgão oficial da Aliança Nacional. Nessa altura, entre 2004 e 2006, Meloni presidia também à juventude daquele partido - feito inédito para uma mulher num partido italiano de direita. A mais nova vice-presidente do Parlamento, com 29 anos, em 2006, e o mais jovem membro de um governo, em 2009, ao desempenhar o cargo de ministra da Juventude no governo de Berlusconi são outras medalhas no percurso de Meloni..Popularidade em alta.A romana de 43 anos é cada vez mais reconhecida pelos italianos. Nas eleições parlamentares de 2018, o Irmãos de Itália - partido que fundou em 2012 depois de ter abandonado o Povo da Liberdade (o nome da formação de Berlusconi à época) - obteve 4,3% de votos. No ano passado, encabeçou a lista às europeias e recebeu 6,4%. Renunciou ao mandato, mas o partido tem seis deputados em Bruxelas (tantos quanto o português PSD)..As mais recentes sondagens dão ao Irmãos de Itália 13%, a dois pontos percentuais do Movimento 5 Estrelas, o partido mais votado em 2018. Em conjunto com a Liga, os dois partidos perfazem 41%. Um valor que seria suficiente para governar em maioria no sistema eleitoral italiano, e sem precisar de recorrer ao Força Itália de Berlusconi, que apresenta 7% de intenções de voto. Os partidos do governo somam 35%..Mas tão ou mais importante são os índices de confiança dos eleitores nos políticos. O primeiro-ministro mantém-se no topo (38%), seguido de Giorgia Meloni (35%), e só depois surge Matteo Salvini (31%)..Meloni vale agora mais do que o seu partido e poderá até chegar à liderança do seu campo político. Para já, a estratégia é a de reafirmar publicamente "fidelidade aos pactos eleitorais" com a Liga. No final de maio realizam-se eleições em seis regiões e em duas delas o cabeça-de-lista da direita é do Irmãos de Itália. Esta não é a altura para despiques, mas eles têm existido e fazem parte da estratégia de cada um dos partidos da direita. Em 2016, Berlusconi criticou-a por concorrer à presidência da autarquia de Roma por ser mulher e estar grávida..Descubra as diferenças.Onde a Liga reivindica melhores condições fiscais para o norte do país e critica a capital, o Irmãos de Itália reafirma a importância da unidade nacional e de Roma. O partido de Salvini foi fundado por Umberto Bossi como Liga Norte e tinha no seu programa a secessão do norte - a Padânia, uma divergência ideológica irreconciliável, apesar de hoje a Liga ter deixado cair esse desígnio. E Meloni afirma-se uma fervorosa nacionalista e herdeira do passado fascista - não o condena nem o glorifica, apesar de ter no partido herdeiros de Benito Mussolini e de os seus membros fazerem campanha pela recuperação de nomes do fascismo..Outra linha divisória entre Salvini e Meloni é a religião. Ambos dizem-se católicos, mas o primeiro usou um rosário numa manifestação em Milão e quando mencionou o nome de Francisco ouviram-se vaias, uma resposta às críticas do pontífice à política de portas fechadas aos migrantes. Meloni prefere dizer o que pensa: "Sou crente, ouço as palavras de sua santidade. No plano político às vezes concordo, às vezes não. Nunca gostei daqueles políticos que fazem o que a Igreja diz só porque a Igreja o diz, nem aqueles que se lhe opõem por princípio.".Meloni , que se afirma "soberanista, nacionalista, cristã e mãe", sem surpresa, é contra o casamento entre pessoas do mesmo sexo e contra a adoção por casais gay. No entanto, tem uma filha de uma relação com o seu companheiro, fora do casamento. Além das contradições entre os valores apregoados e praticados, Meloni e o seu partido são também uma caixa-de-ressonância de lóbis. Uma investigação do L'Espresso concluiu que o partido teve um orçamento de 2,3 milhões de euros, mais um milhão do que no ano anterior, e que as doações, quer de forma direta quer através da família política europeia, envolvem a indústria de armamento, de tabaco, petrolíferas e até a chinesa Huawei..No ano passado, a Foreign Policy perguntava em título se Giorgia Meloni poderia tornar-se a Marine Le Pen de Itália. A resposta não era, nem podia ser, definitiva. O problema de Meloni, concluía a revista norte-americana, é a existência de Matteo Salvini, um homem cujo discurso menos ideológico consegue captar eleitores descontentes da esquerda e da extrema-esquerda.