Médicos sem Fronteiras Portugal torna-se no 32.º escritório da organização, presente em 72 países e que conta com 45 mil trabalhadores. Destes, 80 são portugueses e com "um bom desempenho", o que levou a estrutura a fixar-se no país, com início oficial a 15 de janeiro.."Os Médicos sem Fronteiras (MSF) são uma organização muito orgânica, muito participativa, e vai crescendo e mudando consoante as realidades. Temos 80 expatriados portugueses e uma massa crítica portuguesa, o que torna possível montar aqui um escritório. É raro abrir um escritório noutro país, mas Portugal sempre foi muito atrativo. Temos um bom sistema de educação, somos um país multicultural e as pessoas falam idiomas. E precisamos de gente que trabalhe connosco no terreno", explica Ana Lemos, diretora executiva dos Médicos sem Fronteiras Brasil, que está a apoiar a implementação da delegação em Portugal, a par dos MSF em Barcelona..Ana Lemos nasceu em Angola, cresceu e estudou em Portugal, entrou para a organização há 19 anos, nos últimos dos quais a gerir a estrutura no Brasil, tendo participado em 12 missões..É João Antunes o chefe de delegação portuguesa, um economista que esteve em 17 missões da MSF e se fixou em Portugal há um ano para abrir a delegação. "Há uma rede de escritórios na Europa e, aproveitando a experiência dos MSF em Barcelona e dos MSF Brasil, pensámos em criar aqui uma presença permanente, até porque a família portuguesa tem vindo a aumentar"..O dirigente destaca "o bom desempenho" dos profissionais portugueses. Pretendem recrutar profissionais com um contrato de trabalho, embora exista sempre espaço para o voluntariado. Procuram pessoas para o terreno e para a organização na estrutura..Apenas 8% dos colaboradores permanentes são enviados para o terreno, que se juntam às equipas locais dos MSF, que constituem 82% efetivos..Cinquenta e um por cento dos trabalhadores são pessoas ligadas à área da saúde, o que significa que a estrutura vive com o trabalho de muitas outras formações profissionais. Além de médicos, precisam de psicólogos, já que a saúde mental é uma das áreas em que estão a apostar..Saúde mental é a aposta."Estamos a apostar cada vez mais na saúde mental, não só com os expatriados mas também com os pacientes, daí que os psicólogos e os psiquiatras sejam dos profissionais que mais precisamos. Há uma série de situações traumáticas que, se não são tratadas, degeneram e tornam-se problemas de saúde pública, como os campos de refugiados ou na situação do ébola", diz João Antunes. Têm equipas de saúde mental para os pacientes, para os familiares, para o staff nacional e para os expatriados..Dos fundos dos MSF, 96% vêm de privados - tem 6,3 milhões de doadores. "Pessoas como nós, que dão 20/30 euros por mês. Tudo junto faz a nossa independência; ver o que está a acontecer no mundo e dar uma resposta sem ter de perguntar a nenhum governo. Canalizamos as maiores necessidades da população em situação de emergência, independentemente das suas crenças, do grupo étnico, da política, etc.".Mas, para já, não é a recolha de fundos a maior preocupação em Portugal. "O objetivo é darmo-nos a conhecer à população portuguesa, falar das necessidades dos países onde estamos presentes. Se quiséssemos medir o sucesso da nossa presença aqui, seria o número de pessoas contratadas e que chegaram ao projeto dos MSF. E só depois a angariação de fundos", exemplifica João Antunes. Em resumo: comunicar, informar e ampliar os recursos humanos.".Presentes em Brumadinho e na fronteira com a Venezuela.Os MSF só atuam nos países de origem em caso de emergência, como está a acontecer com a rutura da barragem de Brumadinho, no estado de Minas Gerais, cujo número de mortes subiu para 65. Neste caso, trata-se de um apoio a nível da saúde mental. Têm ainda o Projeto Roraima, na fronteira com a Venezuela, para assistir aos refugiados venezuelanos.."Tentamos nunca substituir os governos até porque isso diminui as capacidades locais. Se um governo tem a capacidade de responder, não vamos responder por eles, agora se há pessoas que estão vulneráveis, a sofrer e não há ninguém que dê resposta, vemos o que está a acontecer e, se for necessário, ajudamos.".A intervenção na Europa tem sido no apoio aos refugiados, nomeadamente nos campos de acolhimento, que Ana Lemos se recusa a nomear de acolhimento. "Não têm condições dignas, 25% dos menores de 14 anos que ali vivem já pensaram ou tentaram suicidar-se, chegámos a fazer vacinação, o que é inadmissível num país europeu.".Críticas ao apoio a refugiados.A diretora dos MSF Brasil recorda outubro de 2015, quando do encerramento da fronteira da Sérvia com a Hungria. "Nunca esperei ver uma situação similar na Europa, famílias inteiras, crianças, idosos, sem nada. A fronteira a fechar, o tratamento policial, as mães do outro lado da fronteira a pedir que levassem os filhos da Sérvia para a Hungria, as condições degradantes e a falta de capacidade de resposta dos países europeus para lidar com uma situação que já vivemos [II Guerra Mundial]. Há uma falta de memória histórica que é dolorosa. Às vezes é mais doloroso ver isso acontecer no nosso próprio contexto. Estamos a deportar ilegalmente pessoas para a Líbia, onde se sabe que há tráfico de pessoas, que se chama escravatura, que há tortura, que há violações e não há um mínimo de condições de garantir a dignidade dessas pessoas.".Viveu junto à fronteira da Sérvia uma das piores situações que já viveu e são muitas as situações de emergência em que esteve envolvida. Por exemplo, no combate à epidemia do ébola, que matou mais de 7500 pessoas na Líbia em 2014. "Era uma epidemia do medo e a impotência de não poder tocar alguém, de não depender de ti se a pessoa vai morrer, é angustiante.".João Antunes viveu a mesma situação, mas noutro país. "Quando decretaram o fim do ébola na Serra Leoa era possível ver a euforia e ao mesmo tempo a tristeza na cara das pessoas. Esta doença tinha a particularidade de atingir toda uma família, famílias inteiras que foram levadas.".E, no meio de tanta catástrofe, há sempre exemplos de humanidade e que os fazem querer continuar. Como a Elisabete, uma enfermeira liberiana que trabalhou no maior centro de tratamento do mundo (Líbia) no pico da doença, que tinha quatro filhos e adotou 19 crianças órfãos de ébola..Para Ana Lemos, trabalhar no Brasil é "interessante", sobretudo pela diversidade da população, "uma sociedade com 200 milhões de pessoas e com muita vitalidade". E onde têm 500 mil doadores, o que lhes garante uma independência financeira que permite que as suas decisões não estejam dependentes dos políticos, como acontece atualmente com Jair Bolsonaro.."Agora, preocupa-nos as condições sociais do país e, há três anos, que temos vindo a observar o aumento da extrema pobreza, da mortalidade infantil, e isso é preocupante.".Preocupação que os leva a estar atentos com a saída de mais de oito mil cubanos do Brasil, em virtude de o atual presidente ter alterado as regras do contrato com Cuba - Ana Lemos diz que 90% destas vagas foram preenchidas, mas estão vigilantes em relação "às pessoas que vivem em zonas remotas vulneráveis e que poderão ficar sem acesso a cuidados de saúde"..A nível mundial, sente que há uma maior falta de respeito ao direito internacional humanitário. Salientando: "Antes, os hospitais eram sítios mais seguros, os exércitos não os bombardeavam, mas já não acontece tanto. Em 2015, o Exército americano bombardeou o nosso hospital no Afeganistão. Esta falta de respeito ao direito internacional humanitário faz-nos sentir mais inseguros."