Matilde tornou-se o rosto de uma doença que até há bem pouco tempo era quase desconhecida da maioria dos portugueses: a atrofia muscular espinhal (AME) do tipo 1. Carla Martins e Paulo Sande, os pais da bebé de 2 meses, tornaram público o sofrimento e o desespero que as famílias enfrentam quando recebem o diagnóstico desta doença rara, que causa perda de força, atrofia muscular e paralisia progressiva. Apelaram à solidariedade dos portugueses e, em pouco tempo, conseguiram reunir os dois milhões de euros necessários para comprar o medicamento mais caro do mundo, que ainda só está disponível nos EUA. Fala-se na possibilidade de o Estado português pagar o fármaco, mas os pais admitem que ainda não sabem de nada, garantindo que vão ser transparentes quanto ao destino dos donativos. Numa altura em que ainda existem muitas questões em aberto, o DN fez um P&R para perceber melhor o caso..Qual a razão pela qual os pais da bebé decidiram avançar para uma recolha de donativos? O medicamento em questão chama-se Zolgensma e é uma terapêutica genética experimental, administrada uma única vez, que custa perto de dois milhões de euros. Tal como o DN noticiou, foi aprovado em maio pela Food and Drug Administration (FDA) dos Estados Unidos, a agência federal do medicamento. Está a ser avaliado pela Agência Europeia do Medicamento (EMA), e espera-se que possa vir a estar disponível na Europa ainda neste ano. Assim sendo, a sua utilização em Portugal ainda não é, à partida, permitida.."É 'só' o medicamento mais caro do mundo e ainda vai demorar a chegar a Portugal (se chegar). Esta página é para partilhar a minha história e angariar fundos para ajudar, e quem sabe 'salvar' a minha vida", escreveram os pais da bebé na página de Facebook Matilde, uma bebé especial, quando lançaram a campanha de solidariedade..O medicamento não foi aprovado em Portugal porque tem um custo muito elevado? Não. "Há a noção de que o problema de não dar acesso ao medicamento está relacionado com o facto de custar dois milhões de euros, mas não é pelo preço que é tomada a decisão", explica Hélder Mota Filipe, professor associado da Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa. Segundo o antigo presidente do Infarmed, "há doentes a ser tratados com ciclos totais de tratamentos que ultrapassam esse valor". A dificuldade no acesso prende-se com o facto de o fármaco ainda não estar aprovado pela EMA..Como é que um medicamento que ainda não foi aprovado pela EMA pode ser usado em Portugal? Não existindo ainda uma autorização para introdução no mercado do Zolgensma, é possível que a equipa médica que segue a Matilde faça chegar ao Infarmed um pedido de utilização excecional de medicamento (AUE). Se a doente cumprir com as indicações para as quais o medicamento está aprovado e se a equipa médica considerar que o benefício compensa o risco - uma vez que se trata de um fármaco com um conjunto de evidências limitado -, a lei portuguesa prevê que seja dada uma AUE para o medicamento. "Se essas premissas estiverem cumpridas, então poderá ser dada uma autorização pelo SNS, através do Infarmed, para que o medicamento possa ser usado para aquela doente", explica Hélder Mota Filipe. Nesse caso, e à semelhança do que acontece com as outras AUE, será o Estado a suportar as despesas com o tratamento..Existem outras crianças com atrofia muscular espinhal do tipo 1 em Portugal. Também podem ter acesso ao mesmo medicamento? A AUE é um mecanismo disponível em Portugal para permitir que os doentes tenham acesso a medicamentos que ainda não foram aprovados. É dada a um doente específico, mas pode ser solicitada por qualquer médico, que entenda que aquela é a melhor terapêutica para o seu doente, tendo em conta as suas características e o custo-benefício do tratamento. "Independentemente do preço", ressalva Hélder Mota Filipe, destacando que o preço só é tido em conta mais tarde, na fase de negociação das comparticipações. Até então, o julgamento que é feito para a AUE é clínico e não baseado no preço das terapêuticas..A avaliação feita pelas equipas médicas e pelos peritos do Infarmed não é afetada pela exposição mediática, sendo feita de igual maneira para todos os doentes. "Não é por este caso ter agitado consciências que a bebé vai ter o medicamento autorizado e outras crianças para as quais os médicos peçam AUE e que estejam nas mesmas condições clínicas não vão ter", assegura o ex-presidente do Infarmed. Isto quer dizer que, se os médicos que acompanham as outras "Matildes" fizerem um pedido de autorização especial para o mesmo fármaco, este vai ser avaliado da mesma forma. Mas importa realçar também que nem todas as crianças com atrofia muscular espinhal do tipo 1 serão elegíveis para receber o fármaco..Para a vice-presidente da Associação Portuguesa de Neuromusculares (APN), Ana Isabel Gonçalves, é importante que se consiga "chegar a acordo de uma forma igualitária para todas as pessoas que possam usufruir de uma medicação que pode trazer uma qualidade de vida bastante grande" aos doentes. Nesta altura, conta, a APN procura transmitir serenidade aos pais das crianças com esta doença "que veem uma luz que brilha muito ao fundo do túnel". Essa luz é o Zolgensma..De acordo com esta representante, que sofre de atrofia muscular espinhal do tipo 2, existem "mais nove crianças em Portugal nas mesmas condições da Matilde e com idade aproximada em condições para receber o Spinraza [nome com o qual é vendido o Nusinersen]". Todas sofrem do tipo 1 desta doença rara, o mais grave e fatal nos primeiros anos de vida, mas não se sabe se existem mais crianças com a mesma patologia em Portugal. Sabe-se, contudo, que não foi feito nenhum outro pedido de AUE para esta medicação, que ainda só está disponível nos EUA..O pedido para a utilização do medicamento na bebé Matilde já foi feito? O Infarmed diz que ainda não recebeu qualquer pedido para a utilização deste fármaco, considerado mais promissor do que aquele que atualmente é usado em Portugal - o Nusinersen. Houve reuniões para recolha de informações com o Hospital de Santa Maria e com a Novartis, que comprou a Avexis (que comercializa o fármaco), mas até à data não foi recebido nenhum pedido. A Visão diz que o Estado prepara-se para assumir a despesa com o medicamento, mas essa informação ainda não foi confirmada. Contactado pelo DN, o Hospital de Santa Maria, onde a bebé se encontra internada - mas já fora dos cuidados intensivos -, referiu apenas que "quanto a este caso e a tantos outros de menores o Centro Hospitalar não faz qualquer comentário e/ou esclarecimento"..Numa publicação feita nesta quarta-feira no Facebook, a família também não confirmou essa informação: "Temos estado a acompanhar as notícias, mas ainda ninguém falou connosco, não sabemos de nada... Temos sido e continuaremos a ser totalmente transparentes com vocês todos. Reforçamos que todo o dinheiro doado e que não for utilizado para o tratamento da Matilde será doado às famílias com outras 'Matildes'. Sabe-se que a médica que acompanha o caso esteve de férias até esta quarta-feira, pelo que é expectável que haja novidades quanto ao processo nos próximos dias..Quanto tempo pode demorar uma AUE? Segundo a informação divulgada em 2016 pelo Infarmed, as AUE têm resposta num prazo médio de dez dias, mas há pedidos que, pela sua urgência, são respondidos em 24 horas. "São despachadas em poucos dias. O processo é rápido porque há noção da urgência destas decisões", diz Hélder Mota Filipe..Que outras opções restam à família da Matilde para que a bebé tenha acesso ao medicamento? Se o medicamento não puder vir para Portugal, a outra opção para a família desta bebé é a viagem até aos EUA, onde este fármaco experimental está disponível. Para isso, é necessário garantir que a criança tem condições para fazer uma viagem intercontinental, que é admitida num centro de referência, que a família consegue suportar os custos do tratamento (fármaco, internamento, honorários de médicos e enfermeiros) e que se encontra numa condição clínica que lhe permite ser incluída no tratamento. Além disso, a família pode ainda esperar pela aprovação deste medicamento em Portugal, o que poderá vir a acontecer ainda neste ano.