Lembra-se da cena do E.T. - O Extraterrestre de Steven Spielberg em que o pequeno Elliot beija a rapariga mais gira da turma no meio de uma revolução de rãs, na aula de ciências? Ao mesmo tempo o E.T., em casa, assiste na televisão à outra icónica cena do beijo de John Wayne e Maureen O'Hara por entre um vendaval, no filme O Homem Tranquilo. A evocação desta encantadora referência de Spielberg leva-nos, sem desvios, à beleza irredutível da própria atriz, O'Hara, que faria 100 anos. A força da natureza que a definiu ficou registada por John Ford nesse mágico momento: um beijo impetuoso seguido de uma bofetada dela no rosto de Wayne, sem que o romantismo de tudo isto se perca por um segundo. ."Eu era dura. Era alta. Era forte. Não aceitava qualquer disparate de ninguém. Ele era duro, alto, forte e não aceitava disparates de ninguém. Como homem e ser humano, eu adorava-o." As palavras de O'Hara sobre Wayne, o seu companheiro de grande ecrã numa mão-cheia de filmes - entre eles, Rio Grande (1950) e A Águia Voa ao Sol (1957), ambos de Ford - podem cair mal perante as vozes que recentemente se levantaram contra a personalidade do Duke, na questão polémica do nome do Aeroporto John Wayne. Mas é mesmo assim: a amizade entre os dois foi uma inegável página feliz da crónica novelesca de Hollywood. .Nascida em Ranelagh, Dublin, O'Hara era uma irlandesa de corpo e alma, e o referido O Homem Tranquilo (1952), rodado na Irlanda, marcou o regresso dela à terra natal que havia trocado pelos estúdios americanos aos 19 anos. A viagem da sua carreira começou pela mão do ilustre ator inglês Charles Laughton, que a descobriu num screen test em Londres e a convenceu a mudar o nome - Maureen FitzSimons de nascimento - antes de fazer a recomendação da jovem atriz a Alfred Hitchcock para A Pousada da Jamaica (1939), o último filme do realizador rodado no Reino Unido, à beira da mudança para Hollywood. Essa adaptação do romance de Daphne du Maurier, produzida e protagonizada por um Laughton cheio de maneirismos, acabou por ser também o bilhete de passagem de Maureen O'Hara para a indústria do cinema americano, onde lhe foi logo dada a oportunidade de um papel principal em Nossa Senhora de Paris (1939), de William Dieterle. Apadrinhada por Laughton, que nesse filme interpreta Quasimodo, o Corcunda de Notre Dame, ela surge na pele da bela cigana Esmeralda. E claro que o seu brilho se fez notar, mesmo a preto e branco....Ainda partilharia o ecrã com Laughton em Esta Terra É Minha (1943), um dos títulos da fase americana de Jean Renoir, mas por essa altura já estava à vontade no sistema dos estúdios, depois da impressão que causou no oscarizado O Vale Era Verde (1941), de John Ford, o cineasta da sua eleição..Foi, porém, a transição para o cinema a cores que libertou o espanto da sua imagem de marca: cabelo muito ruivo, lábios sempre pintados de vermelho vivo, olhos verdes e uma pele de porcelana. O epíteto "Rainha do Technicolor" ser-lhe-ia atribuído, justamente, por um dos inventores desse processo de coloração das películas, Herbert Kalmus. E basta pôr os olhos em filmes de aventuras nos mares como O Pirata Negro (1942), de Henry King, ou No Reino dos Corsários (1952), de George Sherman, mas também, mais uma vez, em O Homem Tranquilo, para perceber o impacto dessa revelação cromática. Não admira, por isso, que a peça de teatro lançada em fevereiro na Irlanda, no âmbito das comemorações do seu centenário, tivesse por título Queen of Technicolor - The Story of Maureen O'Hara, uma biografia em palco que parte da simbologia do cabelo e lábios vermelhos da atriz..O'Hara fez muitas vezes de princesa ou de lady, mas na sua versatilidade de personagens cultivou sempre a postura da mulher firme que resiste às jogadas masculinas. Como se uma espécie de orgulho e retidão irlandesa lhe talhassem o perfil. Curiosamente, foi depois de interpretar a sensual Lady Godiva, num filme de Arthur Lubin, que veio a Portugal para a rodagem de Lisboa (1956), uma pequena produção de Ray Milland com fado, vinho e as paisagens da capital e arredores a serem puxadas ao ponto de rebuçado da fotogenia para inglês ver. Um thriller de espionagem que é, de facto, um objeto ficcional raro desses anos 1950, embelezado com o verniz da diplomacia luso-americana e, sobretudo, pela presença dela, Maureen, cujas cores fogosas desafiam, neste caso, o formato Trucolor..Maureen O'Hara morreu a 24 de outubro de 2015, aos 95 anos. Pouco antes tinha-lhe sido atribuído um Óscar honorário, que veio tarde mas serviu para recordar, no discurso de aceitação, a trindade que valorizou a sua carreira: Charles Laughton, John Wayne e John Ford. Os homens que viram as suas verdadeiras cores melhor do que ninguém.